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Terapia Intensiva16 julho 2024

Guia para o uso de vasopressores e inotrópicos em pacientes em choque

Conhecer os mecanismos dos diferentes tipos de choque e suas fases de progressão é essencial para o tratamento precoce e adequado.
Por Julia Vargas

Choque é uma falência circulatória resultante de perfusão e oxigenação inadequadas dos tecidos. O choque pode ser dividido em quatro categorias: distributivo, cardiogênico, hipovolêmico e obstrutivo. Cada um desses tipos tem sua própria etiologia; porém, a fisiopatologia envolvida em todos é similar. Essas categorias podem, ainda, ser subclassificadas em três estágios: compensado, progressivo e irreversível. 

No choque compensado, a homeostasia é mantida através de mecanismos compensatórios. Tanto o débito cardíaco (DC) quanto a resistência vascular sistêmica (RVS) aumentam para manter a pressão arterial dentro da normalidade. Esse estágio é reversível e reflete um desbalanço entre a oferta e a demanda de oxigênio, onde há a ativação de barorreceptores carotídeos e aórticos, que causam ativação simpática, vasoconstrição sistêmica e desvio do fluxo sanguíneo para órgãos vitais, como coração e cérebro. 

Já na fase progressiva (ou descompensada), o organismo já não é mais capaz de compensar esse desbalanço entre a oferta e a demanda de oxigênio e intervenções mais agressivas serão necessárias para evitar o desenvolvimento de disfunções orgânicas múltiplas. Nessa fase, existe uma hipoperfusão celular contínua, levando às alterações de permeabilidade, edema intersticial e hipovolemia. 

O estágio final do choque é caracterizado pela perfusão tecidual insuficiente devido à vasoconstrição periférica e à redução do DC, já levando ao metabolismo anaeróbio, o que causa elevação da lactatemia, aumento da permeabilidade vascular, perda de volume intravascular com hipovolemia e taquicardia, edema celular difuso e falência irreversível.  

Veja também: Desfecho de pacientes sépticos neutropênicos de acordo com a causa da neutropenia 

Profissionais de saúde monitorando paciente em choque em unidade de terapia intensiva

Os receptores 

Para entender a função dos vasopressores e inotrópicos, primeiro precisamos conhecer a função dos receptores, onde eles atuam. (Figura 1) 

  1. No miocárdio: receptores β1 aumentam a contratilidade e a frequência cardíaca. 
  2. No fígado: receptores β2 aumentam a glicose e o lactato. 
  3. No pulmão: receptores β2 causam broncodilatação. 
  4. Nos vasos: receptores β2 causam efluxo de cálcio das células, levando à vasodilatação.                    Receptores α1 e V1 causam influxo de células, levando à vasoconstrição. 

Choque distributivo 

É causado por uma vasodilatação sistêmica, que causa baixo fluxo aos órgãos. Essa vasodilatação resulta da diminuição da RVS e pós-carga. Seu exemplo mais característico é a sepse 

Choque séptico 

No choque séptico, o manejo inicial inclui a precoce ressuscitação volêmica (30ml/kg nas primeiras 3h), administração de antibióticos na primeira hora e os suportes orgânicos que se mostrarem necessários. Métodos de avaliação de fluido-responsividade devem ser empregados para avaliar a resposta a fluidos adicionais. A avaliação seriada do lactato e do débito urinário (>0.5ml/kg/h) podem auxiliar nessa análise.  

Se o paciente se mantiver hipotenso, apesar da ressuscitação volêmica, a terapia vasopressora está indicada; porém, o conceito de iniciá-la apenas após definir-se que o paciente não é mais fluido-responsivo já mudou. A administração precoce de vasopressores pode diminuir o excesso de fluidos, melhorar a oxigenação e o recrutamento da microvasculatura; porém, estudos ainda não foram conclusivos na análise do desfecho quando compararam as estratégias mais restritivas e as mais liberais na administração de fluidos. 

Medicamento Dose Receptor 
Norepinefrina Inicial: 0.01-0.05µg/kg/min 

Manutenção: 0.01-1 µg/kg/min 

α1>β1>β2 

 

 

Epinefrina Inicial: 0.01-0.05µg/kg/min 

Manutenção:0.01-0.3µg/kg/min 

 

Α1=β1>β2 
Dopamina Inicial:2-10µg/kg/min 

Manutenção: 2-20µg/kg/min 

 

DA>β1>α1 

 

Fenilefrina Inicial: 0.1-0.3µg/kg/min 

Manutenção: 0.1-1 µg/kg/min 

 

α1 
Vasopressina Inicial: 0.01-0.04 U/min 

Manutenção: 0.01-0.06 U/min 

 

V1 
Dobutamina Inicial: 2-5µg/kg/min 

Manutenção: 2-10 µg/kg/min 

 

β1>β2>α1 
Milrinona Inicial: 0.1-0.25µg/kg/min 

Manutenção: 0.1-0.5 µg/kg/min 

 

Inibidor da fosfodiesterase 3 

Fig.1 Doses e receptores dos medicamentos  

A noradrenalina é a primeira linha de tratamento vasopressor no choque séptico e deve ser titulada a cada 5 a 15min a fim de atingir uma pressão arterial média de 65 mmHg. A vasopressina é a segunda escolha e deve ser associada quando a noradrenalina estiver em doses < 0.2 µg/kg/min.

Alguns estudos retrospectivos mostraram melhora da mortalidade quando a administração de noradrenalina pré-hospitalar (ou seja, precoce) foi realizada e quando a vasopressina foi associada ainda em doses menores de noradrenalina (< 0,2 µg/kg/min); porém, o mesmo resultado não se confirmou em doses de noradrenalina > 0.2 µg/kg/min. Além disso, a vasopressina é capaz de causar vasoconstrição em estados acidóticos, quando os α-agonistas são menos eficientes. 

A epinefrina é outro vasopressor de segunda linha que pode ser utilizado especialmente nos casos de DC reduzido e disfunção miocárdica, já que possui efeitos inotrópicos e cronotrópicos positivos.  

Choque neurogênico 

O choque neurogênico é a perda do controle simpático do tônus vascular. É normalmente visto em lesões medulares altas, especialmente acima do nível de T6, já que as raízes nervosas simpáticas que inervam o coração saem de T1 a T4.  

Para esses casos, a cirurgia precoce para descomprimir e estabilizar a coluna vertebral é a chave do tratamento. Porém, é importante corrigir a hipotensão (PA sistólica < 90mmHg) para prevenir lesão secundária por isquemia da medula, o que pode piorar os desfechos.  

Vasopressores com ação tanto α quanto β, como a dopamina ou a norepinefrina são comumente utilizados para o manejo do choque neurogênico quando a reposição de fluidos não é suficiente. Estudos mostraram que a noradrenalina foi capaz de manter a pressão de perfusão medular maior, sem elevar tanto a pressão intratecal, quando comparada à dopamina. O

utro estudo mostrou que as complicações (especialmente taquiarritmias) foram maiores com o uso da dopamina. Sendo assim, eles propõem que a noradrenalina seja o vasopressor de escolha. 

Outro vasopressor comumente utilizado, a Fenilefrina, pode induzir bradicardia, o que pode ser perigoso nesse tipo de paciente que já é predisposto a apresentar bradicardia pela disfunção simpática.  

Leia ainda: Ventilação mecânica: Qual o impacto da profilaxia de úlcera de estresse? 

Choque anafilático 

O choque por anafilaxia ocorre por liberação IgE mediada e não mediada de moléculas vasoativas (histamina, por exemplo) por basófilos e mastócitos, resultando em hipotensão. A vasodilatação, broncoconstrição e depressão miocárdica são neutralizadas pelo uso de epinefrina, sendo, portanto, o vasopressor de escolha no choque anafilático por via IM, inicialmente e, depois, sendo mantida e titulada em infusão venosa, a fim de manter uma PAM>65mmHg.  

Pacientes que utilizam β-bloqueadores apresentam uma resposta inadequada à infusão de epinefrina e, neste cenário, o uso do Glucagon pode aumentar o inotropismo e o cronotropismo sem depender da ativação de receptores β.  

Choque cardiogênico 

Resultante da disfunção cardíaca que prejudica o fluxo sanguíneo e a perfusão orgânica. Tem como principal causa o infarto agudo do miocárdio. Os sinais clássicos são taquicardia, alteração mental, oligúria, saturação venosa de O2 (SvO2) baixa, pressão venosa central (PVC) elevada, índice cardíaco reduzido e alterações funcionais vistas no ecocardiograma.  

A noradrenalina é o vasopressor de escolha nesses casos. Alguns estudos observacionais mostraram que o seu uso reduziu a recorrência de PCR e diminuiu a mortalidade em comparação com a epinefrina em pacientes com choque cardiogênico pós PCR extra-hospitalar.

A noradrenalina melhora a PAM sem alterar significativamente a frequência cardíaca, diferente da epinefrina, que tem esse efeito às custas de um gasto energético miocárdico maior, o que pode levar a complicações como isquemia. Além disso, a epinefrina eleva o lactato hepático; portanto, esse marcador não pode ser utilizado para acompanhar a resposta ao tratamento do choque. 

Dopamina não é recomendada no choque cardiogênico pelos seus efeitos cronotrópicos, sendo a noradrenalina superior na redução da mortalidade, quando comparada. 

Agentes inotrópicos devem ser considerados quando a contratilidade reduzida estiver contribuindo para a hipoperfusão dos órgãos. Dobutamina é um b1 agonista, que aumenta o inotropismo com efeitos limitados na pressão sanguínea, sendo, portanto, comumente associada à noradrenalina, quando um vasopressor é necessário.

Milrinona é outro inotrópico, que age através da inibição da fosfodiesterase 3. Esse mecanismo permite que a ação ocorra, mesmo em pacientes que utilizam β-bloqueadores. A dobutamina possui efeitos mais rápidos e um inotropismo mais intenso, quando comparada à milrinona; porém, estudos não mostraram diferença nos desfechos, quando compararam as duas drogas.   

Choque hipovolêmico 

Ocorre por um fornecimento inadequado de oxigênio e fluxo sanguíneo por perda do volume sanguíneo efetivo, podendo ser hemorrágico ou não hemorrágico. A ressuscitação volêmica é crucial nesses pacientes, podendo ser feita com cristaloides na dose de 30ml/kg em 3h, como utilizamos na sepse. Muito cuidado é necessário na infusão de cristaloides no choque hemorrágico, uma vez que a hemodiluição pode alterar a concentração de fatores de coagulação e exacerbar a hipotermia e a acidose.

Deve-se minimizar a perda do sangue, limitar a infusão de fluidos a fim de manter o pulso radial palpável, evitar hipotermia e acidose, e realizar rapidamente o protocolo de transfusão maciça, além da utilização de agentes hemostáticos como o ácido tranexâmico.

O uso de vasopressores no choque hipovolêmico deve ser limitado, uma vez que não corrigem a causa do choque e podem piorar a perfusão dos tecidos. Nos pacientes em risco de vida, noradrenalina ou vasopressina podem ser utilizadas, objetivando uma hipotensão permissiva com PAM entre 50-60mmHg até que a causa básica seja tratada.   

Choque obstrutivo 

Resulta da redução do débito cardíaco por causas extracardíacas, como o tromboembolismo pulmonar (TEP) e o pneumotórax hipertensivo. Sendo assim, o tratamento de escolha é resolver a obstrução, restabelecendo, portanto, o DC. Mas a infusão de fluidos e vasopressores deve ser utilizada até que a causa base seja resolvida. 

A infusão de cristaloides pode ser feita, considerando sempre que se a obstrução for consequência de um TEP, o excesso de fluidos pode distender o ventrículo direito, reduzindo o volume sistólico do lado esquerdo e piorando a hipotensão e o choque. 

A noradrenalina é o vasopressor de escolha, podendo ser adicionada a vasopressina para terapia dupla. A vasopressina não aumenta a resistência vascular pulmonar como os a1 agonistas, o que pode ser útil nos pacientes com falência de bomba direita.  

Saiba mais: Pré-oxigenação com máscara de oxigênio vs ventilação não invasiva na intubação 

Conclusão 

Conhecer os mecanismos dos diferentes tipos de choque e em que fase de progressão ele se encontra é essencial para o tratamento precoce e adequado, levando a melhores desfechos, com pouca ou nenhuma sequela. O uso de vasopressores pode ajudar a restabelecer o fluxo sanguíneo no momento do choque, e conhecer as diferentes opções, seus efeitos e doses é importante para realizar a melhor escolha possível para cada caso. 

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Referências bibliográficas

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