Meningite bacteriana: evidências que auxiliam na prática clínica
A meningite bacteriana é uma doença com alta mortalidade e incapacidade a longo prazo. É importante destacar seu contexto epidemiológico, em que há uma discrepância na incidência dessa condição em países de países de baixa renda (em torno de 80 a cada 100 mil indivíduos-ano) ao comparar com países desenvolvidos (0.9 a cada 100mil indivíduos-ano).
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A mortalidade também varia de acordo com o contexto socioeconômico dos países. Enquanto a taxa de mortalidade em países desenvolvidos é estimada em 10%, em países de baixa renda essa taxa gira em torno de 58%.
Além da mortalidade atrelada à essa doença, o potencial de incapacidade atrelado a essa condição também é preocupante. Estima-se que 24% dos sobreviventes à meningite bacteriana possam apresentam sequelas neurológicas crônicas, como surdez ou déficits focais neurológicos (comprometimento cognitivo, hemiparesia, neuropatias cranianas etc.).
A revista JAMA em 2022 publicou interessante revisão acerca de progressos e de desafios no manejo da meningite bacteriana, acercando sobre evidências atuais na sua epidemiologia, no seu diagnóstico e no seu tratamento.
Foi realizada para essa publicação uma revisão bibliográfica de artigos em idioma inglês na plataforma PubMed entre junho de 2018 e outubro de 2022. Também foi optado por inclusão de referências mais antigas que possuíssem elevado número de citações. Entre os 3.501 artigos identificados, 60 foram incluídos, sendo: 39 estudos observacionais, 10 metanálises, 7 artigos de revisão e 4 diretrizes.
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Epidemiologia da meningite bacteriana
Ao longo dos anos, houve uma redução na incidência de meningite bacteriana e isso pode ser justificado através da maior cobertura vacinal.
Embora as vacinas disponíveis para meningite bacteriana sejam a vacina pneumocócica e a vacina meningocócica quadrivalente (A, C, Y, W135), os agentes etiológicos mais prevalentes dessa doença permanecem sendo o Streptococcus pneumoniae e a Neisseria meningitidis.
Na população neonatal, há uma peculiaridade quanto aos agentes etiológicos comumente associados à meningite bacteriana. Nessa população, é importante destacar o patógeno Streptococcus agalactiae ─ pertencente ao grupo de estreptococos B (GBS). Nesse contexto, a prevenção de meningite não ocorre através da vacinação, mas sim através de medidas no pré-natal como a coleta de culturas retais e vaginais para detecção desse agente aproximadamente em 36-37 semanas de gestação.
No caso de gestantes que apresentem colonização de estreptococos do grupo B, há administração de penicilina G intravenosa durante o parto, o que possibilita a redução de casos de início precoce de meningite por GBS ─ contudo, essa medida não interfere nos casos de meningite de início tardio.
Apesar de existir essa intervenção no pré-natal para redução nos casos de meningite por Streptococcus agalactiae, ainda há chances dessa infecção ocorrer visto que pode ocorrer culturas falso negativas no rastreio do pré-natal, parto prematuro ou trabalho de parto com extrema rapidez. Além disso, a administração de penicilina G intravenosa não reduz o início tardio dessa forma de meningite. Sendo assim, há grandes esforços para o desenvolvimento de uma vacina.
Em estudo de fase 2, publicado em 2022, foi avaliado vacina conjugada com cobertura para 6 sorotipos de meningite por GBS (que correspondem a 98% dos casos de meningite por esse agente etiológico). Para produção de uma vacina efetiva nessa área, deve haver indução de imunidade materna com produção de IgG que cruze a barreira placentária a fim de ofertar imunidade tanto para as formas de início precoce e tardio dessa forma de meningite.
A Listeria monocytogenes é agente mais raro associado à meningite bacteriana, sendo estimado sua prevalência em 1% dos neonatos e aproximadamente 5% em pacientes acima de 16 anos. Grande parte das meningites bacterianas associadas a esse agente patológico ocorrem em pacientes acima de 50 anos ou portadores de imunodeficiência celular.
Essa bactéria é incomum em países com higiene alimentar regulamentada por requisitos de segurança. Afinal, esse patógeno está presente em alimentos contaminados, assim como já foi isolado em poeira, solo, água, esgoto e matéria vegetal em decomposição.
Manifestações clínicas da meningite bacteriana
Em estudo observacional holândes publicado em 2006, os sintomas mais comuns avaliados em 1.412 indivíduos com meningite bacteriana foram: cefaleia (84%), febre (74%), rigidez nucal (74%), alteração do nível de consciência e náusea (62%).
Ainda nesse estudo, foi evidenciado que a presença da tríade clássica (febre + cefaleia + rigidez nucal) apresenta baixa sensibilidade, correspondendo a 41% dos pacientes com meningite bacteriana.
Os sinais de meningismo, como os sinais de Kernig e de Brudzinski, foram originalmente descritos e testados em pacientes com meningite bacteriana em estágios mais tardios/graves ou em casos de meningite tuberculosa. Sendo assim, a acurácia diagnóstica desses sinais meníngeos em adultos com suspeita de meningite é baixa, com sensibilidade em torno de 5% para sinais de Kernig e Brudzinski e de 30% para rigidez nucal.
Diagnóstico da meningite bacteriana
De acordo com a diretriz da Infectious Diseases Society of America (IDSA) em 2004, em casos de suspeita de meningite bacteriana, a indicação de tomografia de crânio antes de raquicentese deve ocorrer nos pacientes com as seguintes características: imunossupressão, história de doença do sistema nervoso central como neoplasias ou AVC, surgimento de crises epilépticas, papiledema, rebaixamento do nível de consciência e déficits neurológicos focais.
Apesar da indicação de neuroimagem nesse contexto clínico possuir restrições, é evidenciado, através de estudos observacionais, uma tendência na supersolicitação desses exames, o que pode prejudicar a assistência dos pacientes com suspeita de meningite bacteriana.
Em estudo observacional conduzido entre 2005 e 2010, 91% de 614 adultos com meningite foram submetidos à neuroimagem antes de punção lombar. Contudo, 65% desses pacientes não apresentavam indicação clínica para tal solicitação de acordo com as diretrizes do IDSA e apenas 2 pacientes apresentaram pequenos achados intracranianos que não alteraram a abordagem terapêutica.
Além disso, em estudo retrospectivo com 123 pacientes com meningite bacteriana, a realização de neuroimagem antes de punção lombar apresentou associação com atraso de início de antibioticoterapia em mais de 6 horas. A taxa de mortalidade pode aumentar para 45% quando antibióticos são administrados após 6 horas do início das manifestações clínicas; por outro lado, essa taxa ficaria em torno de 4-6% se esses pacientes recebessem essa terapia prontamente. Portanto, a neuroimagem não deve ser realizada em pacientes sem indicação para tal solicitação e a terapia antibiótica empírica não deve ser postergada por conta dessa medida.
O perfil liquórico de pacientes com meningite bacteriana geralmente apresenta contagem de células brancas acima de 1000/μL com pleocitose neutrofílica na contagem diferencial, hiperproteinorraquia (usualmente > 100mg/dl) e hipoglicorraquia (<30 mg/dl). A sensibilidade da bacterioscopia pelo método de Gram é aproximadamente entre 50-90% dos casos de meningite bacteriana.
Em 2023, foi validado para adultos um escore de estratificação de risco para auxiliar na diferenciação de meningite bacteriana com Gram negativo de infecções virais de sistema nervoso central. Esse modelo inclui variáveis como: leucocitose sérica acima de 10 ×109/L, leucócitos em líquor acima de 2000/μL, granulócitos em líquor acima de 1180/μL, proteinorraquia acima de 2.2 g/L, glicorraquia inferior 34.23mg/dL e febre na admissão. Pacientes com nenhuma dessas variáveis são categorizados como “baixo risco” para meningite bacteriana, com sensibilidade estimada em 99.5 a 100%.
Além disso, outro biomarcador que auxilia na diferenciação de meningite bacteriana para outras etiologias é a dosagem de lactato sérico. Em duas metanálises prévias, foi demonstrado que o lactato no líquor apresentou maior associação com acurácia diagnóstica para meningite bacteriana do que os outros marcadores liquóricos (como contagem de células, glicose e proteínas). Contudo, importante destacar que a sensibilidade do lactato no líquor pode reduzir para 49% em pacientes que receberam antibioticoterapia antes da punção lombar.
A dosagem de proteína C-reativa e pró-calcitonina podem também auxiliar na discriminação entre meningite bacteriana e viral. Em metanálise recente, com 2.058 pacientes, foi demonstrado que o aumento de pró-calcitonina sérica apresentou sensibilidade de 95% e especificidade de 97% a favor de etiologia bacteriana para quadros de meningite.
A terapia antibiótica pode reduzir a sensibilidade de Gram e de culturas para bactérias no líquor, dificultando o esclarecimento etiológico de uma meningite. Nesses casos, a realização de painel filmarray para meningites pode auxiliar.
Esse exame é um teste de PCR multiplex que, na prática clínica, consegue auxiliar na detecção das etiologias virais e bacterianas mais comuns das meningites em um tempo aproximado de 2.9 horas na prática clínica. Em metanálise realizada em 2022 com avaliação de 19 estudos, o PCR multiplex apresentou sensibilidade de 89.5% e especificidade de 97.4% para etiologias bacterianas, enquanto sensibilidade de 75.5-93.8% e especificidade de 99% para patógenos virais.
Atualmente, novas potenciais ferramentas têm sido estudadas como o sequenciamento metagenômico de nova geração (NGS) e a detecção laboratorial de mutações resistentes. Tais exames, futuramente, podem ajudar em melhorias no diagnóstico e no tratamento das meningites bacterianas.
Terapia farmacológica para meningite bacteriana
Antibióticos
A antibioticoterapia empírica deve ser iniciada prontamente quando o paciente apresenta suspeita de meningite bacteriana e mantida se o perfil liquórico for sugestivo de meningite bacteriana.
O atraso no início da antibioticoterapia após seis horas do início dos sintomas pode não apenas aumentar a taxa de mortalidade como já citado anteriormente, mas também pode aumentar a taxa de sequelas neurológicas de 10% para 30%.
Em países com prevalência de Streptococcus pneumoniae resistente à ceftriaxona (definido como concentração inibitória mínima >2 mg/L), recomenda-se associação de vancomicina ao esquema antibiótico empírico enquanto houver pendências no resultado do antibiograma.
Em casos de pacientes acima de 50 anos ou imunossuprimidos ou neonatos, deve considerar tratamento empírico para Listeria monocytogenes através da associação de ampicilina intravenosa. A antibioticoterapia deve ser modificada assim que o patógeno for identificado e houver o resultado do antibiograma.
Dexametasona
A dexametasona reduz a inflamação no líquor provocada por antibióticos bacteriolíticos (como as cefalosporinas de terceira geração e a vancomicina), podendo, portanto, melhorar o desfecho clínico dos pacientes com meningite bacteriana.
A corticoterapia apresentou associação com redução de mortalidade no caso de meningite por Streptococcus pneumonia. Contudo, essa associação não foi observada nos casos de etiologias por Haemophilus influenzae ou Neisseira meningitidis. Na população pediátrica, não houve benefício de corticotide para outros patógenos senão Haemophilus influenzae.
A dose de dexametasona adjuntiva é de 10mg a cada 6 horas durante 4 dias, segundo diretrizes internacionais para a população adulta. A administração dessa intervenção deve ocorrer antes ou durante a administração da primeira dose de antibiótico.
Em casos de meningite por Listeria monocytogenes, a dexametasona deve ser suspensa imediatamente, visto que esse tratamento não é benéfico para essa população e há potencial eventos adversos.
Prognóstico da meningite bacteriana
O risco de sequela neurológica pode variar conforme o patógeno. Há estimativas de prevalência de sequela neurológica de 7.2% em meningites por Neisseria meningitidis, de 9.5% por Haemophilus influenzae tipo B e 24.7% por Streptococcus pneumoniae.
Os fatores de risco para desfecho clínico adverso descritos na literatura foram: idade avançada, hipotensão, crises epilépticas, pneumonia concomitante, rash cutâneo, taquicardia, baixo resultado na escala de coma de Glasgow, déficits neurológicos focais, resultado positivo em culturas séricas e alta concentração sérica de proteína C-reativa.
Mensagens práticas
▪ A cobertura vacinal é imprescindível para redução na incidência de meningite. Ainda que as vacinas existentes possuam cobertura para pneumococo e meningococo, os patógenos mais prevalentes dessa condição permanecem sendo o Streptococcus pneumoniae e a Neisseria meningitidis.
▪ Considerar o agente Listeria monocytogenes em casos de pacientes acima de 50 anos ou imunossuprimidos.
▪ A presença da tríade clássica de meningite possui baixa sensibilidade, estando presente em 41% dos pacientes com meningite bacteriana.
▪ Não se deve postergar antibioticoterapia empírica em pacientes com suspeita de meningite bacteriana e que necessitem de neuroimagem antes de procedimentos como punção lombar.
▪ Antibioticoterapia nos casos de suspeita de meningite bacteriana deve ser iniciada assim que possível, essa medida reduz taxa de mortalidade assim como taxa de sequelas neurológicas.
▪ Dexametasona é capaz de melhorar desfecho clínico das meningites bacterianas. Deve ser iniciado antes ou no mesmo tempo da primeira dose do antibiótico.
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