Entres os dias 22 e 29 de abril de 2023, está sendo comemorada a semana mundial dos erros inatos da imunidade (imunodeficiências primárias). Como acontece anualmente, esse é um momento em que buscamos conscientizar profissionais da saúde e a população geral sobre as doenças deste grupo, já que embora já somem mais de 500 doenças, o desconhecimento segue sendo uma grande barreira para o diagnóstico precoce. O não diagnóstico ou atraso do mesmo pode acarretar complicações muitas vezes irreversíveis e até mesmo o óbito.
Este ano, o tema escolhido é “Transformando dados do mundo real em conhecimento para melhorar o cuidado nas imunodeficiências primárias”, buscando o uso colaborativo de informação no diagnóstico, tratamento e cuidado desses pacientes.
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O que são os erros inatos da imunidade
Embora o nome mais conhecido para este grupo de doenças seja imunodeficiências primárias (IDP), o termo erros inatos da imunidade (EII) tem sido preferido por ser mais fidedigno, já que nem todas as patologias envolvem uma redução (deficiência) na função imune. As doenças autoinflamatórias e relacionadas a desregulação imune, por exemplo, envolvem de uma forma geral resposta imune exagerada, desproporcional e inapropriada, mas não uma função reduzida.
A partir disso, nota-se quão grande, heterogêneo e complexo é o grupo dos EII. Os sinais e sintomas variam de acordo com a porção do sistema imune relacionada à cada doença, podendo variar desde as clássicas infecções de repetição e/ou graves até quadros de febre periódica sem etiologia infecciosa e manifestações relacionadas a diversos órgãos e sistemas. Por isso, muitas vezes o primeiro profissional a atender o paciente portador de EII não é o imunologista e sim o médico especialista responsável pela manifestação clínica da doença.
Em geral, os sintomas se iniciam ainda nos primeiros meses ou anos de vida, embora síndromes como a imunodeficiência comum variável se apresentem mais comumente em crianças mais velhas ou adultos jovens.
Na maior parte dos casos, essas doenças são de origem monogênica, ou seja, variantes genéticas em um único gene são responsáveis pelo fenótipo do paciente. Sendo assim, por vezes há história familiar positiva, embora geralmente sem diagnóstico definitivo.
Dentre estas manifestações, estão queixas hematológicas (leucocitose inexplicável, linfoproliferação, plaquetopenia), neurológicas (meningite ou encefalite, ataxia), endocrinológicas (diabetes mellitus de início precoce, insuficiência adrenal, failure do thrive), gastroenterológicas (giardíase de repetição, dor abdominal intensa) e outras, resumidas na tabela 1.
Tabela 1 – Exemplos de manifestações clínicas relacionadas a diferentes especialidades e EII mais frequentemente associados a elas.
Especialidade | Sinal ou Sintoma | EII mais relacionados |
Hematologia | Leucocitose inexplicável Linfoproliferação Plaquetopenia | Deficiência de adesão leucocitária Síndrome linfoproliferativa autoimune Síndrome de Wiskott-Aldrich |
Neurologia | Meningite de repetição Ataxia | Defeitos de via final do complemento Ataxia-telangiectasia |
Endocrinologia | Diabetes mellitus precoce Insuficiência adrenal | Síndrome IPEX APECED (autoimmunepolyen- docrinopathy-candidiasis- ectoderdystrophy) |
Gastroenterologia | Giardíase de repetição Dor abdominal intensa | Deficiência de anticorpos (especialmente IgA) Angioedema hereditário |
Pneumologia | Asma de difícil controle Pneumonite intersticial Pneumonias bacterianas | Deficiência de anticorpos Imunodeficiência comum variável Deficiência de anticorpos |
Dermatologia | Eczema grave Abscessos cutâneos Albinismo parcial | Síndrome de hiper-IgE e de Wiskott-Aldrich Doença granulomatosa crônica Síndrome de Chediak-Higashi |
Neonatologia | Ausência de timo ao raio-x Lesão cutânea extensa Tetania neonatal | Imunodeficiência combina grave (SCID) SCID (Síndrome de Omenn) Síndrome de Di George |
Adaptado do BRAGID (Brazilian Group of Immunodeficiency)
Sinais de alarme para EII
Devido à presença de manifestações clínicas comuns a diversos tipos de EII, foram criadas listas de sinais de alarme que devem chamar atenção para a possibilidade desse diagnóstico. É importante ressaltar que não são critérios diagnósticos, mas um guia de sinais e sintomas que devem indicar um olhar mais atento sobre o paciente.
O BRAGID (Brazilian Group of Immunodeficiency) disponibiliza esses e outros documentos em sua sessão de materiais educativos, sendo destacado na Tabela 2 os sinais de EII em crianças.
Tabela 2 – Os 10 sinais de alarme para EII em crianças
10 Sinais de EII em Crianças |
Quatro ou mais otites médias agudas em um ano |
Duas ou mais pneumonias em um ano |
Dois ou mais meses de antibiótico com pouco efeito |
Duas ou mais sinusites graves em um ano |
Dificuldade de ganhar peso e crescer normalmente |
Infecções cutâneas recorrentes (especialmente abscesso e ectima) |
Estomatite, monilíase oral ou infecção fúngica de pele persistente/recorrente |
Necessidade de antibioticoterapia venosa para tratar infecções |
Duas ou mais infecções generalizadas, incluindo sepse |
História familiar de erro inato da imunidade |
Fundação Jeffrey Modell
Principais dificuldades no diagnóstico e tratamento
Além do desconhecimento sobre a doença, a maior parte dos exames específicos indicados na investigação dos pacientes com suspeita de EII é pouco disponível, mesmo em grandes centros terciários. Também carecemos de centros de tratamento, especialmente para transplante de células tronco hematopoiéticas deste grupo de pacientes, tratamento indicado para uma parcela dos EII. Por fim, por se tratar de um grupo heterogêneo, por vezes o diagnóstico de certeza é possível apenas através de métodos de sequenciamento genético, estratégias ainda caras e indisponíveis para muitos dos que precisam.
Nos últimos anos passou a ser disponível a triagem neonatal para EII, na forma de contagem de cópia de TRECs (subprodutos do desenvolvimento de células B) e KRECs (subprodutos do desenvolvimento de células T). Embora frequentemente se refiram ao exame como triagem para SCID, a maior urgência diagnóstica dentro dos EII, a verdade é que esta avaliação é capaz de muito mais do que isso, identificando causas de linfopenia de uma maneira geral e podendo servir como ferramenta de triagem para quadros de agamaglobulinemia, ataxia telangiectasia, síndrome de Wiskott-Aldrich e outras dezenas de causas de linfopenia relacionada a EII.
Infelizmente, o teste ainda não está disponível para a maior parte da população, embora haja um planejamento para que esse e outros exames possam ser disponibilizados no Sistema Único de Saúde nos próximos anos. Embora o exame esteja disponível na rede particular, ainda não faz parte do rol de procedimentos da agência nacional de saúde suplementar (ANS) e por isso não é coberto pelos planos de saúde.
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Comentários
A conscientização sobre esse grupo de doenças é imprescindível para identificação e tratamento dos pacientes, já que na maioria das vezes eles chegam ao imunologista encaminhados por outro profissional.
Embora tratem-se de patologias raras isoladamente, em conjunto essas doenças tem uma frequência razoável, sendo provável que você, leitor, já tenha atendido ou venha a atender um paciente com EII. Contamos com você para mudar a história dos EII no Brasil!
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