Síndrome de abstinência iatrogênica em crianças em UTIP
Em julho deste ano, a Egyptian Pediatric Association Gazette publicou uma revisão narrativa abordando a “Síndrome de Abstinência Iatrogênica (SAI) em Unidades de Terapia Intensiva Pediátrica (UTIP)”, destacando a relevância desse tema no contexto dos cuidados intensivos pediátricos. Embora a SAI seja um problema amplamente reconhecido, ainda se apresenta como um desafio significativo na prática clínica. Nesta matéria, discutiremos os principais tópicos abordados na revisão, com ênfase nas implicações clínicas, na importância do diagnóstico precoce e nas estratégias de manejo para minimizar os impactos dessa condição em pacientes pediátricos.
Definição da Síndrome de Abstinência Iatrogênica
A SAI é definida como uma reação clínica ou fenômeno que ocorre quando opioides ou benzodiazepínicos são descontinuados abruptamente ou reduzidos rapidamente após um longo período de uso. No entanto, pode ocorrer em períodos mais curtos, como em três dias, se o paciente receber altas doses cumulativas.
Prevalência
A prevalência relatada de SAI na literatura é bastante variável, de 5-87%. Um estudo multicêntrico prospectivo realizado nos Estados Unidos e que incluiu mais de 1.000 pacientes mostrou uma prevalência de 47%. Esta grande variabilidade pode ser atribuída às escassas diretrizes universais de prática clínica para prevenção de SAI em pacientes gravemente enfermos, manifestações clínicas pouco claras e diferenças em medicamentos, duração do tratamento e ferramentas de avaliação.
Manifestações clínicas
Em geral, as manifestações clínicas surgem entre 8 e 48 h após a descontinuação, incluindo alterações gastrointestinais, desregulação autonômica, excitação do sistema nervoso central e anormalidades motoras. Sinais e sintomas de SAI incluem:
- Estressores fisiológicos:
- Dispneia, febre, dificuldades de alimentação, hipertensão e taquicardia;
- Manifestações neurológicas:
- Agitação, alucinações e convulsões.
É importante lembrar que os sintomas de delirium e SAI podem se sobrepor significativamente em relação à dor e à sedação. Ademais, complicações da SAI incluem internação prolongada na UTIP e no hospital e duração da ventilação mecânica.
Fatores de risco
Os principais fatores de risco associados à Síndrome de Abstinência Iatrogênica (SAI) incluem:
- Idade jovem (principalmente lactentes menores de seis meses);
- Atraso cognitivo prévio;
- Maior gravidade da doença;
- Dose cumulativa de opioide ou benzodiazepínico administrada;
- Duração da terapia com opioide ou benzodiazepínico;
- Exposição regular por ≥ 72 h;
- Duração da terapia com oxigenação por membrana extracorpórea (ECMO);
- Maior carga de trabalho de enfermagem;
- Falta de um protocolo de desmame dos medicamentos analgosedativos.
De acordo com a Academia Americana de Pediatria (AAP), 50-100% dos pacientes expostos a sete dias de fentanil ou um limiar de dose cumulativa de fentanil de 2 mg/kg provavelmente desenvolverão a SAI.
Escalas de avaliação
As escalas mais amplamente utilizadas para avaliar o risco de SAI são:
- Withdrawal Assessment Tool-1 (WAT-1) (Franck et al., 2008)
- Composta por 11 itens;
- Pontuação de 0 a 12;
- Pontuação ≥ 3 indica SAI.
- Sophia Observation withdrawal Symptoms (SOS) (Ista et al., 2013)
Ambas possuem altas sensibilidades e especificidades e têm características psicométricas semelhantes. No entanto, a WAT-1 é mais eficaz na detecção de SAI por opioides do que por benzodiazepínicos.
De acordo com as recomendações de 2022 da Society of Critical Care Medicine para UTIP (Pandem Guidelines), as escalas para avaliação de SAI devem ser empregadas de rotina.
Prevenção
O primeiro passo consiste na avaliação de rotina de dor e de sedação para se evitar o uso excessivo de medicamentos. O segundo passo se refere ao desmame lento para se prevenir a Síndrome de Abstinência Iatrogênica (SAI). No caso do opioide (como o fentanil), parte-se do pressuposto de que devemos fazer a mudança para um opioide de ação prolongada, como a metadona.
A farmacocinética da metadona em recém-nascidos (RN) e crianças é semelhante à dos adultos, com excelente biodisponibilidade oral e meia-vida prolongada. Essas características possibilitam o alcance de níveis séricos estáveis com dosagem intermitente, incluindo regimes de uso de uso oral uma vez ao dia, com poucos efeitos colaterais. Para Johnson e colaboradores (2012), a dose de metadona deve ser prescrita em intervalos de administração mais frequentes, variando de 3,8 a 62 h. Todavia, dados da literatura mostram que parece ser mais eficaz aplicar intervalos menores entre as doses para atingir níveis terapêuticos de forma mais precoce.
Estratégia de desmame de Lugo e colaboradores (2001):
- Iniciar metadona enteral na dose de 0,1 mg/kg a cada seis horas;
- Aumentar a dose de metadona de acordo com a necessidade.
Estratégia de desmame de Siddappa e colaboradores (2003):
- Realizar a conversão da dose intravenosa (IV) de fentanil em doses equipotentes de metadona enteral;
- Considerar, ao mudar a via de administração:
- A potência do fentanil (100 vezes maior que a da metadona);
- A meia-vida média da metadona (75-100%);
- A biodisponibilidade da metadona (75-80%).
- Ajustar a dose de metadona para 2,4 vezes a dose de fentanil a cada seis horas.
Tratamento da sintomatologia
Estratégia de desmame de Finkel e colaboradores (2005):
- A dexmedetomidina foi usada para facilitar a retirada de opiáceos em duas crianças com corações desnervados devido a transplante cardíaco, hospitalizadas em uma UTIP Doses adicionais eram administradas se houvesse sintomas de SAI;
- A dexmedetomidina controlou efetivamente as manifestações de SAI sem distúrbios hemodinâmicos.
Estratégia de desmame de Weber e colaboradores (2013):
- O uso de fenobarbital em combinação com clonidina cessaram movimentos coreiformes. A febre e o estresse diminuíram dois dias após a administração do fenobarbital;
- Houve redução da necessidade de doses adicionais de sedativos e analgésicos, sendo a retirada finalizada em menos de uma semana sem efeitos adversos.
Uso de clonidina
- A clonidina enteral ou transdérmica mostrou ser útil no manejo de sintomas de SAI durante o desmame;
- A clonidina transdérmica é ligeiramente mais eficaz do que a enteral:
- Pacientes graves podem apresentar redução da absorção gastrointestinal;
- A forma transdérmica fornece doses constantes, reduzindo as doses máximas e as reações adversas.
Comentário
Revisão bem objetiva, pincelando pontos bem práticos usados no dia a dia do pediatra intensivista. Deixo aqui observações relevantes que não ficaram muito claras no artigo:
- Apesar de, inicialmente, ter sido observada em pacientes em uso de opioides e/ou benzodiazepínicos, sabe-se hoje que qualquer medicamento analgésico e/ou sedativo administrado em infusão contínua pode ocasionar SAI. Infelizmente, ainda há poucos dados, em especial referentes à SAI por dexmedetomidina. Dessa forma, as escalas de avaliação WAT-1 e SOS devem ser aplicadas até que haja a disponibilidade de instrumentos diagnósticos específicos para diferentes fármacos.
Leia mais sobre a SAI por dexmedetomidina: Metanálise aborda a síndrome de abstinência por dexmedetomidina em pediatria - A SAI não se refere somente a um diagnóstico diferencial de delirium, mas sim, um fator de risco relevante para o desenvolvimento de delirium em UTIP. Dessa forma, podemos ter um paciente com SAI com ou sem delirium. Além disso, podemos ter delirium em pacientes que não preenchem critérios para SAI e que sequer foram submetidos à infusão contínua de medicamentos analgésicos e/ou sedativos;
- Apesar de ter sido mencionada, no texto, a SAI por benzodiazepínicos, o autor não comentou sobre estratégias de desmame. Mesmo o benzodiazepínico sendo um fator de risco independente para delirium (e um dos principais em adultos e em crianças), a sua retirada rápida ou abrupta não é recomendada. SAI por benzodiazepínico é um fator de risco relevante para delirium.
Leia mais sobre o desmame de benzodiazepínicos: Desmame de benzodiazepínicos em UTIP: o que precisamos saber
Como você avalia este conteúdo?
Sua opinião ajudará outros médicos a encontrar conteúdos mais relevantes.