Logotipo Afya
Anúncio
Oncologia16 abril 2024

Cannabis e canabinoides em adultos com câncer: Diretriz da ASCO 

Diretriz apresenta estratégias para uma comunicação aberta entre médicos e adultos com câncer sobre o uso de cannabis e/ou canabinoides.
Por Felipe Mesquita

A Cannabis é um gênero de ‘planta-com-flores’ que os seres humanos têm utilizado como fibra (cânhamo), medicinalmente e por seus efeitos psicoativos (por exemplo, euforia, relaxamento, experiência sensorial amplificada e alteração na percepção do tempo). Os dois canabinoides mais estudados incluem o delta-9-tetraidrocanabinol (THC), bem reconhecido por seus efeitos psicoativos, e o canabidiol (CBD). No entanto, a Cannabis contém centenas de ingredientes bioativos — muitos não totalmente caracterizados. Portanto, a Cannabis e os canabinoides não são um único produto ou medicamento, e as evidências científicas dos impactos biológicos do THC podem não capturar completamente os efeitos da planta em sua totalidade. 

Os canabinoides são compostos que interagem com os receptores endocanabinoides em todo o sistema nervoso central e periférico, em células e órgãos do sistema imunológico e em outras partes do corpo. Eles podem ser endógenos (endocanabinoides), baseados em plantas (fitocanabinoides) ou sintéticos (por exemplo, dronabinol, nabilona). 

As razões médicas mais comuns para o uso clínico da Cannabis e abordadas pelos estudos foram: os efeitos antineoplásicos, dor, insônia, ansiedade, náuseas, vômitos e falta de apetite. De fato, tanto pesquisas qualitativas quanto quantitativas sugerem que adultos com o diagnóstico de neoplasias usam cannabis e/ou canabinoides para o manejo multissintomático ou por seus efeitos eufóricos. Como as equipes médicas de oncologistas e hematologistas não abordam de maneira científica e satisfatória o assunto com seus pacientes, esses acabam por procurar aconselhamento com fornecedores de compostos à base de canabinoides, o que não se mostra a prática clínica mais adequada, levando a desfechos indesejáveis e a condução inapropriada do tratamento. 

Cannabis e canabinoides em adultos com câncer Diretriz da ASCO 

Metodologia  

Este guideline, baseado em revisão sistemática, foi desenvolvido por um painel multidisciplinar de especialistas, que incluiu um representante de pacientes e um membro da equipe de diretrizes da American Society of Clinical Oncology (ASCO) com experiência em metodologia de pesquisa em saúde. Todas as diretrizes da ASCO são revisadas e aprovadas pelo painel de especialistas e pelo Comitê de Medicina Baseada em Evidências da ASCO (EBMC) antes da publicação. Uma revisão sistemática da literatura forneceu a base de evidências para a elaboração deste guideline. Tanto o PubMed quanto a Cochrane Library foram pesquisados por revisões sistemáticas, ensaios clínicos randomizados (ECRs) e estudos de coorte publicados desde a criação dos bancos de dados até 27 de janeiro de 2023.  

A população alvo foi de adultos (18 anos ou mais) com tumores sólidos ou neoplasias hematológicas, incluindo sobreviventes de longo prazo e aqueles em terapia de final da vida. Os desfechos mais comumente avaliados estão dispostos a seguir. 

  • Efeitos antineoplásicos: taxa de resposta, sobrevida livre de progressão, sobrevida livre de doença, sobrevida global; 
  • Sintomas do câncer; 
  • Toxicidade do tratamento do câncer: náuseas e vômitos induzidos pela quimioterapia (NVIQ); caquexia, falta de apetite e perda de peso; e dor; 
  • QV (Qualidade de Vida — avaliada pelo questionário QoL validado na literatura), sono, distúrbios de humor. 

A qualidade das evidências para cada desfecho foi avaliada utilizando a ferramenta Cochrane de Risco de Viés e elementos do processo de avaliação de qualidade e desenvolvimento de recomendações GRADE.  

Estudos incluídos: Um total de 366 publicações foram identificadas na busca bibliográfica. Após aplicar os critérios de elegibilidade, restaram apenas 16: 11 revisões sistemáticas e cinco ECRs. Estudos de coorte não incluídos nas revisões sistemáticas selecionadas, além de duas novas revisões sistemáticas sobre cannabis da Associação Multinacional de Cuidados de Suporte em Câncer (MASCC) foram abordados a partir da busca por referências nos trabalhos inicialmente elegíveis. 

Para os canabinoides que não são produtos aprovados pela Food and Drug Administration (FDA) dos EUA, a evidência foi muito baixa ou baixa para todos os desfechos. 

Principais limitações encontradas nos estudos 

Intervenções e doses variadas, falta de prática de fabricação dos compostos universalmente padronizada, tamanhos amostrais pequenos, falta de poder estatístico para avaliação de desfechos secundários, tempo de seguimento curto e informações limitadas sobre a eficácia no contexto das práticas atuais de cuidados de suporte foram as principais limitações. Diversos vieses metodológicos puderam ser observados, principalmente em ensaios clínicos pequenos e estudos observacionais. 

Respostas às questões clínicas 

1) O uso de cannabis e/ou canabinoides por adultos melhora o tratamento direcionado ao câncer? 

Os clínicos devem desaconselhar o uso de cannabis e/ou canabinoides para potencializar o tratamento direcionado ao câncer, a menos que seja no contexto de um ensaio clínico, e devem desaconselhar o uso de cannabis e/ou canabinoides como substituto para o tratamento direcionado ao câncer (este último com força de recomendação alta devido aos potenciais malefícios na condução de doenças graves e ameaçadoras à vida). A falta de dados baseados em evidências que apoiam o uso de canabinoides e/ou cannabis como tratamentos anticâncer fundamentou tal recomendação. 

A possibilidade de que a cannabis e/ou canabinoides possam piorar os resultados entre adultos com câncer tratados com imunoterapia foi relatada na literatura. O consumo prolongado de cannabis poderia interferir com a imunoterapia e prejudicar a imunidade humoral, incluindo, mas não se limitando à supressão da imunidade antitumoral das células T, inibindo a sinalização da Janus kinase/signal transducers e ativadores da transcrição (JAK/STAT) por meio do receptor de canabinoides tipo 2. Com base nos dados disponíveis, os clínicos devem aconselhar cautela para adultos que recebem imunoterapia usando ou considerando o uso de canabinoides e/ou cannabis. 

Uma diretriz da MASCC de 2023 recomendou contra o uso de canabinoides para qualquer indicação entre adultos com câncer que recebem um inibidor de checkpoint. As informações online sobre cannabis e/ou canabinoides como curas para o câncer são amplamente difundidas, muitas vezes desalinhadas com a evidência científica. Essas informações incorretas podem estimular expectativas irrealistas para o tratamento do câncer, que é natural e livre de efeitos colaterais. Em uma revisão recente, a principal notícia falsa que afirmava que a cannabis e/ou canabinoides eram uma cura para o câncer gerou mais de 100 vezes mais engajamento nas mídias sociais do que o principal artigo de notícias baseado em evidências que desmentia a história. 

2) O uso de cannabis e/ou canabinoides por adultos com câncer reduz as toxicidades relacionadas ao tratamento, alivia os sintomas do câncer ou melhora a qualidade de vida? 

As evidências clínicas de alta qualidade são extremamente limitadas quando o assunto é o uso de cannabis e/ou canabinoides para o manejo das toxicidades relacionadas ao tratamento do câncer, alívio dos sintomas provocados pela neoplasia ou melhora na qualidade de vida dos pacientes oncológicos. Os estudos com THC mostram efeitos variados e conflitantes, que vão desde o alívio da dor, melhora do apetite e do sono até a disforia e leve piora da qualidade de vida. Poucos são os estudos com boa metodologia que abordam o CBD ou outros compostos ativos. 

Adultos que recebem agentes antineoplásicos moderadamente ou altamente emetogênicos com profilaxia antiemética adequada (tripla ou quádrupla) e que experimentam náuseas ou vômitos refratários podem complementar seu regime antiemético com dronabinol, nabilona ou um extrato oral (com controle de qualidade) de THC:CBD em proporção de 1:1 (Qualidade da evidência: Moderada para dronabinol e nabilona, Baixa para extrato de THC:CBD 1:1; Força da recomendação: fraca). Os clínicos não devem recomendar que adultos com câncer usem 300 mg ou mais por dia de CBD oral para gerenciar a carga de sintomas devido à falta de eficácia comprovada e ao risco de anormalidades reversíveis transaminases hepáticas. A evidência permanece insuficiente para recomendar a favor ou contra o uso de cannabis e/ou canabinoides no manejo de toxicidades relacionadas ao tratamento antineoplásico ou sintomas relacionados à própria neoplasia, exceto nos cenários clínicos abordados acima ou dentro do contexto de um ensaio clínico.  

Uma revisão Cochrane de 2015 sobre nabilona e dronabinol em relação aos quadros emetogênicos refratários relatou benefícios em algumas medidas, assim como uma revisão sistemática de 2020 sobre canabinoides orais. A maioria dos estudos incluídos nessas análises, no entanto, foi publicada nas décadas de 1970 e 1980, antes da disponibilidade de diretrizes baseadas em evidências e de regimes profiláticos modernos antieméticos. Apesar disso, uma evidência sugestiva do benefício de adicionar cannabis e/ou canabinoides aos regimes antieméticos atuais é fornecida por um ensaio clínico randomizado de fase II de 2020, com uma atualização de fase II/III recentemente apresentada na Reunião Anual da ASCO de 2023. 

A diretriz de 2022 da MASCC sobre canabinoides para sintomas gastrointestinais recomenda contra o uso de canabinoides nas seguintes circunstâncias: tratamento de náuseas e vômitos não relacionados à quimioterapia; tratamento de primeira linha na prevenção de náuseas e vômitos induzidos pela quimioterapia; e prevenção de náuseas e vômitos induzidos por radioterapia. A diretriz da MASCC sugere que os canabinoides podem ser considerados para o tratamento dos quadros de náuseas e vômitos induzidos pela quimioterapia refratários em adultos que não estejam em inibidores de checkpoint. 

Peso e apetite 

Uma revisão sistemática e meta-análise de 2022 avaliou o uso da cannabis e/ou canabinoides com desfechos relacionados à caquexia. Os quatro ensaios clínicos randomizados (ECRs) incluídos avaliaram: (1) THC 2,5 mg; (2) um extrato de cannabis com THC 2,5 mg e CBD 1 mg; (3) dronabinol; (4) e nabilona. Canabinoides não tiveram um efeito estatisticamente significativo sobre o apetite com base em uma meta-análise de três ECRs e na qualidade muito baixa da evidência. A falta de benefício relatada para os desfechos de caquexia é consistente com a diretriz de caquexia da ASCO de 2020, que forneceu uma recomendação fraca contra canabinoides para o tratamento de caquexia em adultos com câncer avançado.  

Dor 

Uma revisão sistemática de 2021 avaliou cannabis medicinal não inalada ou canabinoides em adultos com dor crônica relacionada ao câncer ou não. Quatro ECRs focados na dor do câncer (resultados não significativos). Um efeito não significativo de canabinoides na dor do câncer também foi relatado em uma meta-análise de 2020 de cinco ECRs. A diretriz da MASCC de 2023 sobre dor relacionada ao câncer não recomenda canabinoides para dor relacionada ao câncer fora de um ECR. 

Sono 

Com base em cinco ECRs, os canabinoides foram associados a uma melhora muito pequena no sono em adultos com dor relacionada ao câncer (diferença média ponderada [DMP] em uma EAV de 10 cm, -0,19 [IC 95%, -0,36 a -0,03], evidência de certeza moderada).  

Ansiedade e depressão 

Uma revisão sistemática da MASCC de 2023 avaliou a cannabis em relação à ansiedade, depressão e insônia. A revisão observou que nenhum dos estudos incluídos abordou os sintomas psicológicos como desfechos primários em adultos com câncer. Os autores concluíram que não foi possível fazer uma recomendação sobre o uso de cannabis para ansiedade ou depressão 

Sintomatologia em cuidados paliativos 

O desfecho primário — mudança no Escore de Distúrbio Total de Sintomas, medido pela Escala de Avaliação de Sintomas de Edmonton (ESAS) — de um ECR de fase IIb comparando óleo de CBD (dose média do paciente selecionada de 400 mg por dia) com placebo, não diferiu significativamente entre os grupos de estudo. 

Qualidade de vida 

Uma revisão sistemática de 2022 avaliou a cannabis em relação à qualidade de vida e aos sintomas entre pacientes com câncer avançado em cuidados paliativos. Seis ECRs relataram sobre a qualidade de vida, sem evidências claras de benefício. A qualidade de vida também foi relatada em uma revisão sistemática de 2022 sobre THC, THC mais CBD, dronabinol e nabilona em relação ao apetite e peso. A intervenção não melhorou o apetite ou o peso e teve um pequeno efeito prejudicial na qualidade de vida (diferença média padronizada, -0,25 [IC 95%, -0,43 a -0,07]). Embora o THC pareça ter uma redução dose-dependente de náuseas e melhora do sono, isso pode ocorrer às custas de efeitos adversos, possivelmente explicando os resultados ruins na qualidade de vida. Além disso, o THC sintético pode levar a uma superestimulação do sistema endocanabinoide devido aos seus efeitos bifásicos, resultando em efeitos negativos sobre toxicidades relacionadas ao tratamento, alívio de sintomas do câncer ou efeitos na qualidade de vida. 

Efeitos adversos e interações medicamentosas 

Desafios comuns ao usar cannabis e/ou canabinoides incluem sensação de euforia, sonolência, tontura, vertigem e alucinações. Hepatotoxicidade foi descrita em doses de CBD > 300 mg/dia. A síndrome hiperemética causada por canabinoides após uso prolongado de cannabis (ou seja, > 4 vezes por semana por mais de um ano) é uma preocupação importante. Efeitos colaterais cardiovasculares podem incluir arritmias e hipotensão ortostática, mas não há evidências de que o uso cumulativo ao longo da vida esteja associado a uma incidência maior de doença cardiovascular ou mortalidade associada. Ainda não está claro se o uso de cannabis está associado a função pulmonar prejudicada, asma, doença pulmonar obstrutiva crônica e riscos de pneumonia.  

Considerações 

A associação entre o uso de cannabis e o desenvolvimento de câncer permanece incerta, exceto por uma possível ligação com câncer testicular. O uso de cannabis e/ou canabinoides pode estar associado a um maior risco de desenvolvimento de transtornos depressivos e pode exacerbar transtornos psiquiátricos em indivíduos vulneráveis. A escassez de dados disponíveis sobre interações medicamentosas é uma preocupação, pois, na maioria dos casos, os clínicos não serão capazes de fornecer respostas informadas e cientificamente embasadas quanto ao potencial de interações de cannabis e/ou canabinoides com terapias anticâncer aprovadas. No entanto, interações medicamentosas com varfarina foram classificadas como de risco muito alto e com buprenorfina e tacrolimo como de alto risco.

Anúncio

Assine nossa newsletter

Aproveite o benefício de manter-se atualizado sem esforço.

Ao assinar a newsletter, você está de acordo com a Política de Privacidade.

Como você avalia este conteúdo?

Sua opinião ajudará outros médicos a encontrar conteúdos mais relevantes.

Referências bibliográficas

Compartilhar artigo