O último dia de conferências do congresso de Internal Medicine Meeting da American College of Physicians (IM/ACP 2021) trouxe excelentes temas. O uso medicinal da cannabis foi tema central da palestra, “Cannabis in Clinical Practice: Where’s the Green Light?”, ministrada pela Dra. Bree Johnson, diretora de Cuidados Paliativos da Universidade do Arizona.
A cannabis, planta da família Cannabaceae, é alvo constante de estudos. São mais de 104 compostos identificados, todos biologicamente ativos. Os compostos mais abundantemente estudados são o tetra-hidrocanabinol (THC) e o canabidiol (CBD). Sabe-se que o THC tem maior efeito psicoativo, com maior número de efeitos na sedação, apetite e relaxamento muscular. O CBD, por sua vez, tem menor efeito psicoativo e maior número de propriedades anticonvulsivantes e anti-inflamatórias. Pode ajudar a reduzir os efeitos psicoativos do THC, quando utilizado em associação.
A conferencista abordou algumas barreiras para a utilização da cannabis na prática clínica e pesquisa no tema. Existem várias restrições em relação à pesquisa, além de atrasos no desenvolvimento dos compostos para ensaios clínicos randomizados pelas produções pequenas para pesquisa. Nos Estados Unidos, a mesma relata que existe apenas uma fonte de cannabis para investigação médica, na Universidade do Mississipi. Como resultado, muitos médicos se sentem desconfortáveis em recomendar canabinoides, mesmo quando percebem benefícios em potenciais.
A legalização da cannabis e a redução de mortes por abuso de opioides
Um outro ponto interessante levantado pela conferência foi a associação da legalização da marijuana com a redução de mortes por abuso de opioides. Os estados americanos que instituíram o uso medicinal da cannabis apresentaram uma redução de 25% na taxa de mortalidade anual por opioides. Em pacientes utilizando opioides de forma crônica, o uso reduziu em 64%¹.
Veja abaixo um resumo dos principais efeitos clínicos dos canabinoides:
- Evidência substancial: dor neuropática, náuseas e vômitos (associados à quimioterapia), síndromes convulsivas refratárias;
- Evidência moderada: espasticidade na esclerose múltipla, distúrbios secundários do sono, síndrome de Tourette;
- Evidência ainda limitada: dor não neuropática, ganho de peso em pacientes portadores HIV.
Dor neuropática
De acordo com a conferencista, a melhor evidência no momento é para a dor neuropática². A eficácia para a dor não neuropática ainda não está estabelecida. No entanto, considera-se o uso completo da planta quando existem vários outros sintomas associados à dor (distúrbio do sono, ansiedade, náusea).
A sugestão da Dra. Johnson seria pelo extrato da planta sublingual como primeira linha ou produtos compostos com THC e CBD.
Náuseas e vômitos
Canabinoides parecem efetivos para náuseas e vômitos induzidas por quimioterapia². A conferencista sugere a oferta para qualquer paciente com náuseas e vômitos, principalmente para aqueles com neoplasia, além de dor ou outros sintomas que os canabinoides possam ter benefício.
A sugestão da Dra. Johnson seria pelo extrato da planta sublingual como primeira linha ou produtos compostos com THC e CBD.
Espasticidade e sono
A evidência para espasticidade² e distúrbios do sono³ ainda é borderline. Alguns estudos de fase III em andamento. Até o momento, a melhor evidência² é para compostos com THC e CBD.
Efeitos negativos
Alguns efeitos negativos também já foram descritos na literatura:
- Risco de intoxicação aguda e dependência²;
- Psicose²;
- Alterações no desempenho neurocognitivo²;
- Eventos cardiovasculares possíveis4;
- Fertilidade e desfechos perinatais5.
Cannabis no Brasil
No Brasil, produtos medicinais à base de cannabis podem ser registrados e produzidos no país desde o final de 2019, porém apenas com insumos importados, já que o plantio não é permitido. Mas a autorização fez com que crescessem os pedidos judiciais de liberação de medicamentos à base de canabidiol e, segundo noticiado na Folha de S. Paulo, o Ministério da Saúde está analisando a possibilidade de incorporação de um deles no SUS.
Atualmente, três produtos têm sua comercialização autorizada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa): um fitofármaco com concentração de THC de até 0,2% e duas soluções de uso oral à base de CBD nas concentrações de 17,18 mg/mL e 34,36 mg/mL, com até 0,2% de THC. Todos esses produtos devem ser prescritos através de um receituário tipo B.
Mensagens práticas
- Canabinoides estão cada vez mais sendo utilizados para uma variedade de indicações clínicas;
- No momento, a evidência mais forte é para o controle de dor neuropática, espasticidade na esclerose múltipla, distúrbios do sono, náuseas e vômitos (associados à quimioterapia), ganho de peso no paciente HIV, convulsões refratárias;
- As equipes de Medicina Interna devem incorporar cada vez mais as novas evidências relacionadas aos canabinoides, visando maior elucidação sobre perspectivas de uso e aconselhamento dos pacientes;
- No Brasil, alguns produtos são autorizados pela Anvisa para comercialização, mas o Ministério da Saúde está avaliando a incorporação de um deles ao SUS.
Veja mais do congresso:
- IM/ACP 2021: telemedicina e estratégias para o exame físico
- IM/ACP 2021: como manejar urgências e emergências hipertensivas?
- IM/ACP 2021: como fazer o manejo ambulatorial da dor crônica?
- IM/ACP 2021: atualizações práticas sobre o ultrassom point-of-care (POCUS)
- IM/ACP 2021: avaliação de risco cardiovascular e imagem
- IM/ACP 2021: dicas práticas sobre intoxicações agudas
- IM/ACP 2021: abordagem da dor musculoesquelética aguda
- IM/ACP 2021: quais as novidades no manejo agudo das cefaleias primárias?
- IM/ACP 2021: novidades no tratamento preventivo das cefaleias primárias
- IM/ACP 2021: rastreio de câncer colorretal e efeitos do kiwi para constipação
- IM/ACP 2021: na internação, quando suspender antidiabéticos orais e como realizar o controle glicêmico?
- IM/ACP 2021: como manejar pacientes diabéticos no cenário perioperatório?
Referências bibliográficas:
- Bachhuber MA, Saloner B, Cunningham CO, Barry CL. Medical cannabis laws and opioid analgesic overdose mortality in the United States, 1999-2010 [published correction appears in JAMA Intern Med. 2014 Nov;174(11):1875]. JAMA Intern Med. 2014;174(10):1668-1673. doi: 10.1001/jamainternmed.2014.4005
- Whiting PF, Wolff RF, Deshpande S, et al. Cannabinoids for Medical Use: A Systematic Review and Meta-analysis [published correction appears in JAMA. 2015 Aug 4;314(5):520] [published correction appears in JAMA. 2015 Aug 25;314(8):837] [published correction appears in JAMA. 2015 Dec 1;314(21):2308] [published correction appears in JAMA. 2016 Apr 12;315(14):1522]. JAMA. 2015;313(24):2456-2473. doi: 10.1001/jama.2015.6358
- Gates PJ, Albertella L, Copeland J. The effects of cannabinoid administration on sleep: a systematic review of human studies. Sleep Med Rev. 2014;18(6):477-487. doi: 10.1016/j.smrv.2014.02.005
- Ghasemiesfe M, Ravi D, Vali M, et al. Marijuana Use, Respiratory Symptoms, and Pulmonary Function: A Systematic Review and Meta-analysis. Ann Intern Med. 2018;169(2):106-115. doi:10.7326/M18-0522
- Payne KS, Mazur DJ, Hotaling JM, Pastuszak AW. Cannabis and Male Fertility: A Systematic Review. J Urol. 2019;202(4):674-681. doi: 10.1097/JU.0000000000000248
- Com alta da judicialização, Ministério da Saúde avalia ofertar canabidiol no SUS. Folha de S. Paulo. https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2021/05/com-alta-da-judicializacao-ministerio-da-saude-avalia-ofertar-canabidiol-no-sus.shtml
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