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Clínica Médica8 julho 2024

Entendendo a trombocitemia essencial

A Trombocitemia Essencial (TE) é uma neoplasia mieloproliferativa caracterizada pela produção excessiva e clonal de plaquetas.
Por Felipe Mesquita

A Trombocitemia Essencial (TE) é uma neoplasia mieloproliferativa caracterizada pela produção excessiva e clonal de plaquetas (podendo chegar a contagens superiores a 1.000.000/mm³), sendo um fator predisponente à trombose e à hemorragia. Como característica das alterações clonais, as citopenias tendem a ser progressivas e não respondem ao tratamento a outras causas de trombocitose reacional que porventura estejam presentes. A TE é responsável por aproximadamente um terço dos casos de neoplasias mieloproliferativas BCR-ABL negativas no mundo desenvolvido, havendo uma preponderância feminina, com uma proporção de incidência aproximada entre mulheres e homens de 2:1. A incidência da doença aumenta com o aumento da idade, e a idade média ao diagnóstico é de 60 anos. Até metade dos pacientes são descobertos acidentalmente quando a trombocitose é observada em um hemograma completo obtido por algum outro motivo.  A maioria dos casos de parece ser esporádico, apesar de relatos na literatura acometendo vários membros da mesma família. As alterações do receptor da trombopoetina são identificados em apenas 5% dos casos de TE, portanto mutações específicas associadas a doenças familiares podem fazer parte do diagnóstico diferencial de casos mais raros. 

trombocitemia essencial

Apresentação clínica 

Os sintomas classicamente associados à doença incluem: cefaleia, sintomas vertiginosos, síncope, precordialgia atípica, parestesia acral, livedo reticular, eritromelalgia (dor em queimação nas mãos ou pés associada a eritema e calor), distúrbios visuais transitórios (por exemplo, amaurose fugaz, escotoma cintilante, enxaqueca oftálmica) – sintomas esses entendidos como manifestações vasomotoras associadas à doença. Complicações podem estar presentes no momento do diagnóstico, trombose venosa ou arterial, sangramento ou perda fetal no primeiro trimestre. Em média, 40% dos pacientes apresentam esplenomegalia palpável, geralmente apenas de grau modesto, sendo que hepatomegalia e linfadenopatia são incomuns.  

Leia mais: Aumentam internações por trombose venosa profunda no Brasil

Fazendo o diagnóstico 

Deve-se suspeitar de TE em pacientes com trombocitose persistente inexplicada. Pode ser descrito no hemograma alterações em tamanho das plaquetas (anisocitose plaquetária), variando de plaquetas muito pequenas a gigantes. Normalmente não são observadas outras citopenias. Para pacientes com sangramento clínico ou contagem de plaquetas >1.000 x 10 9 /L (1.000.000/mm³), a atividade do cofator da ristocetina deve ser medida. Pacientes com atividade do cofator de ristocetina < 30% são classificados como portadores de síndrome de Von Willebrand adquirida (SVWa).  

A biópsia da medula óssea mostra classicamente normocelularidade ou hipercelularidade moderada para a idade, além de hiperplasia da série megacariocítica. A formação de colônias de megacariócitos é uma característica da TE. Ainda, essas estruturas celulares se apresentam com aumento do tamanho, citoplasma maduro abundante e núcleos profundamente lobulados e hiperlobulados. 

Aproximadamente 90% dos casos apresentam uma mutação somática adquirida nos genes JAK2 (60%), exon 9 CALR (20-25%) ou exon 10 MPL (5%). Existem os chamados “triplo negativos”, correspondendo a 10% a 15% dos casos. Se estes forem negativos e o diagnóstico ainda for suspeito, a identificação de outras mutações genéticas pode oferecer prova de clonalidade (por exemplo as mutações do ASXL1, EZH2, TET2, IDH1/IDH2, SRSF2 ou SR3B1). 

Critérios diagnósticos (5ª OMS) – Requer todos os quatro critérios principais a seguir ou os três primeiros critérios principais mais o critério menor. 

Critérios principais: 

  • Contagem de plaquetas ≥450 x 10 9 /L (≥450.000/mm³)
  • Biópsia de medula óssea mostrando proliferação principalmente da linhagem de megacariócitos com número aumentado de megacariócitos maduros e aumentados, com núcleos hiperlobulados. Nenhum aumento significativo ou desvio à esquerda na granulopoiese ou eritropoiese. Um aumento menor (grau 1) nas fibras de reticulina pode estar presente.
  • Critérios para leucemia mieloide crônica (presença do gene de fusão BCR:ABL), policitemia vera, mielofibrose primária, síndrome mielodisplásica ou outra neoplasia mieloide não devem ser atendidos
  • Demonstração de uma mutação  JAK2, CALR ou MPL

Critério menor: 

  • Demonstração de outro marcador clonal (mutação ASXL1, EZH2, TET2, IDH1/IDH2, SRSF2 ou SRF3B1) ou nenhuma causa identificável de trombocitose (por exemplo, infecção, inflamação, anemia por deficiência de ferro)

Os itens a seguir não são característicos de TE e, se presentes, sugerem um diagnóstico alternativo: 

  • Megacariócitos com morfologia altamente atípica
  • Aumento de mieloblastos
  • Características mielodisplásicas
  • Fibrose de reticulina ou fibrose de colágeno significativa (> grau 1)

Saiba mais: Atualização das diretrizes da ISTH para o tratamento antitrombótico na covid-19 

Estratificação de risco de trombose e tratamento

A avaliação do risco trombótico é um aspecto fundamental do manejo de pacientes com TE, haja vista que esses apresentam um risco aumentado de eventos tromboembólicos, tanto arteriais quanto venosos (por exemplo, evento cerebrovascular, infarto do miocárdio, tromboflebite superficial, trombose venosa profunda, embolia pulmonar e trombose de veio central da retina). Como mencionado previamente, estes pacientes apresentam ainda risco aumentado de sangramento, provavelmente devido a alterações plaquetárias qualitativas e quantitativas.  

As manifestações hemorrágicas estão significativamente associadas à trombocitose extrema (contagem de plaquetas> 1 milhão/mm³), ao uso de aspirina em doses > 325 mg/dia, ou após tratamento com anti-inflamatórios não esteroidais (AINES).  Pacientes com SVWa devem ser cuidadosamente avaliados quanto à necessidade do uso de aspirina, pelo aumento do risco de sangramento. Em um estudo retrospectivo de 300 pacientes com TE de baixo risco, pacientes com plaquetas > 1.000 x 10 9 /L tiveram um risco aumentado de sangramento maior (risco relativo [RR] 5,4 [IC 95% 1,7-17,2]). 

O escore prognóstico internacional revisado para trombose em TE (trombose IPSET revisado) é utilizado para avaliar o risco trombótico desses pacientes. O risco trombótico está diretamente relacionado à escolha das drogas para instituição do tratamento. As diferentes drogas disponíveis são usadas ​​para aliviar os sintomas vasomotores, controlar a esplenomegalia e reduzir complicações trombohemorrágicas, sendo que nenhum deles demonstrou reduzir a transformação para mielofibrose secundária ou progressão leucêmica. Dessa forma, o tratamento deve ser adaptado ao risco do paciente e nem todos deverão utilizar terapia citorredutora.  

  • Doença de alto risco – História de trombose ou idade >60 anos com JAK2 V617F. A estes pacientes é oferecido o tratamento pleno com hidroxiuréia associado a AAS em dose baixa (máximo de 100mg diário).
  • Doença de risco intermediário – Idade >60 anos, sem mutação JAK2 e sem história de trombose. Estes indivíduos podem ser tratados com AAS isolado ou associado a hidroxiuréia.
  • Doença de baixo risco – Idade ≤60, JAK2 V617F e sem histórico de trombose. O tratamento de preferência é AAS em baixas doses de maneira isolada.
  • Doença de muito baixo risco – Idade ≤60 anos, sem mutação JAK2 e sem história de trombose. Esses pacientes podem receber AAS isolado ou serem somente observados.

É importante usar uma dose diária total de aspirina ≤ 100 mg (por exemplo, aspirina 42 mg duas vezes ao dia por via oral) para evitar sangramento excessivo que pode ser exacerbado por anormalidades da função plaquetária associadas à ET. 

Pacientes com história de trombose prévia 

O manejo de pacientes com evento trombótico prévio é influenciado pelo tipo de trombose prévia. Nos casos de trombose arterial prévia, opta-se pelo uso de AAS associado a um agente citorredutor. Para história de trombose venosa prévia, optamos por agente citorredutor mais anticoagulação sistêmica. 

Veja também: Caso Clínico: Trombose Venosa Cerebral 

Drogas disponíveis para uso 

  • Hidroxiureia – A hidroxiureia é um agente oral que reduz efetivamente a contagem de plaquetas, controla os sintomas vasomotores e a esplenomegalia e reduz o risco de tromboses principalmente arteriais. É a primeira escolha no tratamento dos pacientes com TE. A hidroxiureia inibe a síntese do ácido desoxirribonucléico (DNA) agindo na ribonucleotídeo redutase. É contraindicada em pacientes gestantes.
  • Administração – A dose inicial é de 15 mg/kg por dia por via oral. Em geral iniciamos o tratamento com um ou dois comprimidos de 500 mg por dia. A dose deve ser reduzida em 50% em pacientes com depuração de creatinina < 60 mL/min/1,73m². A suplementação de ácido fólico deve ser considerada (para evitar deficiência mascarada de folato).
  • Monitoramento da resposta – A dose é ajustada para atingir uma meta de contagem de plaquetas de 100.000/mm³ a 400.000/mm³, limitando ao mesmo tempo a neutropenia e a anemia. Testes de função hepática e renal devem ser obtidos periodicamente. O início da ação é rápido e os hemogramas geralmente diminuem três a cinco dias após o início do tratamento; da mesma forma, o efeito é de curta duração quando ela é interrompida. 
  • Anagrelida  –  A anagrelida é uma droga oral que reduz efetivamente a contagem de plaquetas e reduz os sintomas relacionados ao TE. A anagrelida também inibe a agregação plaquetária, mas seu efeito na função plaquetária só é observado com doses mais altas do que aquelas usadas para controlar a trombocitose. O uso de anagrelida está mais associado a eventos cardiovasculares e sangramentos, devendo ser evitada nos pacientes com apresentam fenótipos de risco. Também é descrito um maior risco de transformação para mielofibrose. É contraindicada em pacientes gestantes.
  • Administração – A dose inicial é de 0,5 mg por via oral, duas a quatro vezes ao dia. A dose é titulada para manter a contagem de plaquetas entre 100 x 10 9 /L e 400 x 10 9 /L. A dose habitual de manutenção é de 1 a 4 mg/dia.
  • Interferon peguilado  —  O interferon alfa (IFNa) é uma droga liberada para uso em gestantes e é considerado 3ª escolha devido ao seu perfil de toxicidade. O IFNa peguilado proporciona um perfil de toxicidade mais favorável do que o IFNa convencional, e a sua atividade prolongada é compatível com a administração uma vez por semana. 
  • Administração – A dose inicial de IFNa peguilado é de 45 mcg/semana por via subcutânea durante as primeiras duas semanas. A dose é aumentada, conforme tolerado, até uma dose máxima de 180 mcg/semana. A dose de IFNa é titulada para manter a contagem de plaquetas entre 100 x 10 9 /L e 400 x 10 9 /L.
  • Aspirina em baixas doses – A aspirina em baixas doses pode reduzir os sintomas vasomotores e as complicações trombohemorrágicas na maioria dos pacientes com TE e pode ser administrada em monoterapia naqueles pacientes de risco intermediário ou menor e que não tenham apresentado episódios prévios de trombose ou perda gestacional recorrente.
  • Administração – Doses de 40 a 100 mg por dia.

Opções alternativas para pacientes selecionados 

  • Ruxolitinibe – As taxas de resposta foram comparáveis ​​entre o ruxolitinibe versus a melhor terapia disponível em pacientes que não respondem ou são intolerantes à hidroxiureia com TE de alto risco em um estudo randomizado de fase 2. Em termos de acesso, ainda é mais difícil em países com recursos limitados. Os dois braços do estudo foram associados a taxas comparáveis ​​de resposta completa em taxas de trombose, hemorragia e transformação leucêmica/fibrótica em um e dois anos.
  • Aférese – A aférese pode reduzir transitoriamente a trombocitose extrema em associação com eventos trombóticos ou hemorrágicos agudos e graves. Contudo, isto deve ser seguido por tratamento com um agente citorredutor para manter o controle da contagem de plaquetas.

Leia também: Terapia de reposição hormonal em mulheres com histórico de trombose ou trombofilia

Critérios de resistência à hidroxiureia 

Um grupo de especialistas internacionais publicou em 2007 critérios que definiriam a resistência/intolerância à Hidroxiureia e que são seguidos até os dias de hoje.  Pelo menos um dos seguintes critérios deve estar presente: 

  • Contagem de plaquetas superior a 600.000/microlitro após 3 meses de pelo menos 2 g/dia de HU (2,5 g/dia em pacientes com peso corporal acima de 80 kg); 
  • Contagem de plaquetas superior a 400.000/microlitro e contagem de leucócitos inferior a 2500/microlitro ou hemoglobina inferior a 10 g/dl em qualquer dose de HU; 
  • Presença de úlceras nas pernas ou outras manifestações mucocutâneas inaceitáveis em qualquer dose de HU
  • Febre relacionada ao uso de HU.

O agente preferido em caso de resistência/intolerância depende de tratamentos anteriores, condições comórbidas, toxicidade e preferência do paciente. As opções mais comuns são hidroxiureia, IFNα e anagrelida. 

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Referências bibliográficas

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