Avaliação perioperatória de cirurgias não cardíacas: nova diretriz brasileira
Este mês foi publicada a nova diretriz de avaliação cardiovascular perioperatória da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC), com objetivos de uniformizar o conhecimento sobre a estratificação de risco e diagnóstico de complicações, orientar sobre as medicações e tempo seguro para realizar o procedimento cirúrgico após intervenção cardiovascular, além de oferecer recomendações sobre o local ideal para realização da intervenção quando o paciente for de maior risco. Abaixo seguem os principais pontos da diretriz.
Particularidades do perioperatório
As complicações mais graves do perioperatório são isquemia coronária, tromboembolismo pulmonar e insuficiência cardíaca (IC), muito relacionadas com mortalidade, aumento do tempo de internação e maior custo.
Essas complicações são mais frequentes nos pacientes idosos, que têm mais comorbidades e são cada vez mais submetidos a cirurgias, havendo necessidade de outros especialistas, além do cirurgião, envolvidos no seu cuidado. Logo, o acompanhamento desse paciente de maior risco deve ser interdisciplinar, desde o planejamento, avaliação do risco/benefício do procedimento e otimização do tratamento das doenças de base e suas complicações.
Assim, a diretriz coloca que, nos casos mais graves, muitas vezes é necessário um perioperative risk team com objetivo de oferecer a melhor decisão conjunta para o paciente e sua família.
Estratificação do risco pré-operatório
Especificamente em relação a avaliação do risco pré-operatório, em cirurgias eletivas, o primeiro passo é avaliar as condições basais do paciente e estabilizar condições de alto risco. Caso necessário, a cirurgia deve ser postergada.
O próximo passo é determinar o risco intrínseco da cirurgia, baseado no seu tipo e duração, independente das características do paciente. Está relacionada com duração, estresse hemodinâmico e perda de sangue e fluidos.
Risco da cirurgia
As cirurgias de baixo risco são as de mama, dentárias, tireoide, oculares, ginecologias, ortopédicas e urológicas menores, reconstrutivas, superficiais e a cirurgia torácica por videotoracoscopia menor.
As cirurgias de risco intermediário são as de carótida assintomática, endarterectomia de carótida sintomática, angioplastias arteriais periféricas, aneurismas de aorta via endovascular, cabeça e pescoço, intraperitoneais (colecistectomia, hernia de hiato, esplenectomia), intratorácica não maiores, neurológicas ou ortopedias maiores, transplante renal, urológicas e ginecológicas maiores.
As de risco alto são as de aorta e vasculares maiores, revascularização arterial periférica aberta por isquemia aguda ou amputação, angioplastia de carótida sintomática, ressecção de adrenal, pancreática, fígado e vias biliares, esofagectomia, pneumectomia, transplante pulmonar ou hepático, cistectomia total, reparo de perfuração intestinal.
Além do risco de acordo com o tipo de procedimento, devemos considerar o seu grau de urgência, pois as cirurgias de urgência e emergência têm maior ocorrência de complicações cardiovasculares e o papel do cardiologista deve ser restrito a sugerir medidas de monitorização e intervenções para redução do risco no intra e pós-operatório, não sendo recomendado exame complementar que atrase a cirurgia.
Na urgência, há tempo para otimizar a terapêutica e realizar ecocardiograma por exemplo, porém, não se deve solicitar avaliação de isquemia, já que o exame não mudará a conduta.
Existem ainda as cirurgias tempo-dependentes, que não são urgência, porém seu atraso pode causar piora no prognóstico, como as cirurgias oncológicas.
Quando a cirurgia é de baixo risco e o paciente está estável, sem condições cardíacas de alto risco, podem ser operados sem necessidade de avaliação adicional.
Risco do paciente
O risco do paciente deve ser estimado de forma objetiva e existem diversos índices para isso. Os mais práticos e acurados são o Revised Cardiac Risk Index (RCRI), ou escore de Lee, e o AUB (American University of Beirut)-HAS2.
O RCRI é composto por história de doença coronária, história de IC, história de doença cerebrovascular, creatinina > 2,0 mg/dL, cirurgia intraperitoneal, intratorácica ou vascular suprainguinal e diabetes com insulinoterapia. Cada um desses itens pontua 1 e quando o escore tem total de 0 ou 1 é baixo, 2 intermediário e 3 ou mais é alto. Esse índice estima o risco de infarto agudo do miocárdio (IAM), edema agudo dos pulmões, bloqueio atrioventricular (BAV) total e parada cardiorrespiratória (PCR) em 30 dias.
Já o AUB-HAS2 estima risco de IAM, acidente vascular cerebral (AVC) ou óbito em 30 dias e é composto também por 6 itens: história de doença cardíaca (IAM, revascularização miocárdica, IC, fibrilação atrial ou valvopatia moderada a grave), sintomas da doença cardíaca (angina ou dispneia), idade ≥ 75 anos, hemoglobina < 12 mg/dL, cirurgia vascular arterial ou cirurgia de emergência. Cada item também pontua 1 e quando o total é 0 ou 1 o risco é baixo, 2 ou 3 intermediário e 4 ou mais é alto.
Importante ressaltar que o AUB-HAS2 ainda não foi validado na população brasileira. Além disso, ambos podem ser menos acurados nos pacientes com baixa capacidade funcional, que tem pior prognóstico perioperatório, pois podem ser assintomáticos por não atingirem limiar para deflagrar sintomas. Assim, esses pacientes podem ter necessidade de complementação da avaliação para doença coronária ou IC antes de cirurgias de alto risco intrínseco.
Especificamente para cirurgias vasculares, propõe-se a utilização do índice proposto pelo Vascular Study Group of New England (VSG), o VSG Cardiac Risk Index (VSG-CRI), que mostrou melhor acurácia na predição de IAM, arritmia clinicamente relevante ou IC nas cirurgias vasculares arteriais.
Outros índices de risco validados são o do American College of Physicians (ACP) e o do Estudo Multicêntrico de Avaliação Perioperatória (EMAPO) e quando o objetivo for a avaliação de risco global, não só desfechos cardiovasculares, pode-se utilizar o índice do American College of Surgeons (ACS NSQIP), desenvolvido a partir de mais de 1 milhão de cirurgias realizadas nos Estados Unidos. A desvantagem dessa ferramenta é que necessita da utilização de uma calculadora específica.
Pacientes com baixa capacidade funcional (< 4 METS), medida objetivamente por teste ergométrico ou estimada pela histórica clínica, têm maior chance de complicações no perioperatório. Quando o paciente consegue subir 2 lances de escada, tem taxa menor de eventos e quando a capacidade funcional é associada ao escore RCRI a acurácia é melhor para predição de eventos que o uso do escore isoladamente.
Avaliação de fragilidade
Além dos índices de risco, devemos avaliar a síndrome de fragilidade, associada ao aumento de mortalidade e desfechos adversos. A fragilidade é definida como uma redução da reserva fisiológica do organismo, levando a maior vulnerabilidade a agentes estressores, como doenças agudas e procedimentos cirúrgicos.
Não há um método padrão-ouro para seu diagnóstico e o Fenótipo de Fragilidade Física e o Índice de Fragilidade são considerados os de maior validade para identificar essa síndrome. Também podem ser utilizados outros como o Clinical Frailty Scale, o Essential Frailty Toolset e a escala FRAIL. A utilização dos instrumentos validados permite uma avaliação mais detalhada do status do paciente e não somente a dicotomização frágil e não frágil.
Essa avaliação pode auxiliar no processo de tomada de decisão pela avaliação mais completa dos riscos envolvidos com o procedimento cirúrgico, melhorando o diálogo entre o paciente, família e profissionais envolvidos nos cuidados perioperatórios. Além disso, auxilia na identificação de um subgrupo de pacientes com maior risco de complicações nos quais intervenções precoces podem sem implementadas.
Exames complementares
- Eletrocardiograma (ECG): seu principal papel é servir como traçado basal para comparação no caso da suspeita de um evento no pós-operatório. Está indicado para os pacientes com história e/ou exame físico sugestivo de doença cardiovascular, cirurgia de risco intermediário ou alto, pacientes de risco intermediário ou alto, com diabetes, obesidade ou idade > 40 anos.
- Ecocardiograma (eco): não deve ser realizado de rotina, mas sim quando a cirurgia é de risco intermediário ou alto e há IC suspeita ou conhecida sem avaliação no último ano ou quando o paciente tem valvopatia moderada a importante suspeita ou conhecida sem avaliação nos últimos 6 a 12 meses.
Além disso, deve ser feito quando o paciente tem prótese valvar e sintomas ou será submetido a cirurgia de risco intermediário ou alto e não tem avaliação no último ano. Também está indicado para pacientes que serão submetidos a transplante hepático.
- Teste ergométrico (TE): não há evidência de que auxilie na redução de eventos do perioperatório. Atualmente recomenda-se apenas para pacientes de risco intermediário ou alto que têm baixa capacidade funcional e serão submetidos a cirurgia de risco intermediário ou alto, quando o resultado poderá alterar a conduta. Não deve ser realizado para os que serão submetidos a cirurgia de baixo risco ou para os que tem baixo risco estimado.
- Cintilografia de perfusão miocárdica com estresse: mais acurada que o TE, podendo ser útil para os pacientes com baixa capacidade funcional, doença coronária estabelecida ou alta probabilidade pré-teste sem diagnóstico de doença coronária crônica.
Deve ser utilizada com cautela no perioperatório, pois pode desencadear revascularização coronariana antes de cirurgia não cardíaca, o que não mostrou superioridade em comparação ao tratamento clínico em estudos prévios e pode atrasar a cirurgia.
- Eco de estresse com dobutamina: a ausência de alteração de contração segmentar tem boa correção com ausência de obstruções coronarianas críticas. Esse exame já está bem documentado na avaliação perioperatória e tem VPN 92-100% para eventos cardíacos em pacientes que são submetidos a cirurgia não cardíaca. Os resultados ajudam na decisão de realizar revascularização cirúrgica ou percutânea antes ou após o procedimento eletivo.
Assim, a recomendação para cintilografia e eco de estresse são: pacientes com risco intermediário ou alto com baixa capacidade funcional que realizarão cirurgia de risco intermediário ou alto, nos quais o resultado poderá influenciar na conduta. Também podem ser pedidos nos pacientes com baixa capacidade funcional, assintomáticos, com diagnóstico prévio ou alta probabilidade de doença coronária. Não devem ser pedidos de rotina para pacientes de baixo risco ou que serão submetidos a procedimento de baixo risco.
- Cineangiocoronariografia: não deve ser realizada de rotina e não deve substituir os testes não invasivos, quando indicados. Esse exame atrasa o procedimento proposto, não mostrou aumentar a sobrevida dos pacientes ou diminuir o risco de infarto periprocedimento. Deve ser pedido se houver indicação independente do perioperatório, como na síndrome coronariana aguda de alto risco e na isquemia extensa em prova funcional.
- Angiotomografia de coronárias: tem alta sensibilidade para detecção de estenose coronariana, porém o benefício antes de cirurgias não cardíacas ainda é incerto. Alguns estudos mostraram que pode superestimar o risco de eventos no perioperatório e um estudo pequeno sugeriu que pode estimar o risco melhor que o eco estresse, mas com número limitado de pacientes. Atualmente não se recomenda angiotomografia de rotina para estratificação de risco antes de cirurgias não cardíacas.
O que fazer com as medicações?
Os estudos com antagonistas do sistema renina angiotensina aldosterona têm resultados conflitantes, não havendo na literatura atual uma resposta definitiva sobre o que fazer com essas classes de medicações. Assim, devemos avaliar o tipo de cirurgia, a variabilidade pressórica do paciente e a previsão de sangramento. Caso optado por suspensão de IECA ou BRA, este deve ser reintroduzido assim que possível.
Os bloqueadores de canal de cálcio devem ser mantidos nos pacientes que já os utilizam cronicamente, porém a decisão pode ser individualizada, já que há riscos associados à hipotensão e ausência de efeitos deletérios de sua suspensão.
Também não há evidências robustas em relação a diuréticos, sabemos que sua manutenção é segura e não há aumento de hipotensão ou necessidade de reposição de fluidos e drogas vasopressoras.
Em relação a simpatolíticos de ação central, a clonidina deve ser mantida nos que a utilizam, porém não deve ser iniciada com objetivo de reduzir eventos. Os betabloqueadores devem sempre ser mantidos, pois sua suspensão, assim como a da clonidina, pode ser deletéria. A introdução do betabloqueador é contraindicada no intervalo de até 7 dias da data do procedimento.
A manutenção de antiagregantes e anticoagulantes vai depender do motivo e tempo de uso, risco trombótico e risco de sangramento do procedimento a que o paciente será submetido. Assim, deverá ser avaliado caso a caso.
As estatinas devem ser mantidas em todos os pacientes que já usam e devem ser introduzidas nas cirurgias vasculares arteriais ou quando há indicação clínica de seu uso.
Monitorização no perioperatório
Os peptídeos natriuréticos e a troponina ultrassensível têm sido testados como marcadores de risco no perioperatório, no intuito de melhorar a estratificação do risco, porém ainda há muito a ser definido. Atualmente a recomendação é coletar BNP/NT-proBNP de pacientes com idade > 65 anos ou entre 45 e 64 anos com doença cardiovascular estabelecida ou fator de risco para doença cardiovascular.
Já a troponina deve ser coletada no pré-operatório e no primeiro e segundo dias de pós-operatório, junto a realização de ECG, em pacientes com risco intermediário ou alto de complicações submetidos a cirurgia de risco intermediário ou alto.
Monitorização em UTI por 48 horas é recomendada para pacientes com risco alto de complicações submetidos a cirurgias de risco intermediário ou alto e pode ser considerada para os de risco intermediário submetidos a procedimentos de risco intermediário ou alto.
Não se recomenda dosar troponina em pacientes de baixo risco ou os que serão submetidos a cirurgias de baixo risco.
Comentários e conclusão
A diretriz comenta ainda sobre doenças específicas dos pacientes, como os que já tem doença coronária, IC e valvopatias e sobre o manejo específico doas anticoagulantes. Além disso, há considerações em relação às complicações ocorridas no pós-operatório e seu manejo.
A avaliação perioperatória é uma área bastante ampla e nos últimos anos tivemos grande avanço em relação a estratificação de risco dos pacientes e seu manejo no perioperatório.
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