ACP 2024: Pérolas no manejo hospitalar da insuficiência cardíaca
A Dra. Nancy Schweitzer, editora-chefe do periódico Circulation: Heart Failure e professora da faculdade de medicina da Universidade de Washington em St. Louis, nos brindou com uma revisão da literatura sobre a abordagem hospitalar da insuficiência cardíaca (IC) descompensada.
As admissões por IC têm aumentado nos últimos anos, em parte por conta do envelhecimento populacional e da maior sobrevida dos pacientes cardiológicos com a adoção das terapias recomendadas pelos guidelines (TRGs). Os custos esperados para 2030 com a entidade estão próximos aos 200 bilhões de dólares.
O momento da internação deve ser a oportunidade para a introdução e otimização das TRGs. Entretanto, infelizmente ainda temos visto a desprescrição inadvertida de medicamentos, muitas vezes atrelada ao receio dos eventos adversos, o que condiciona piores desfechos e maior taxa de readmissões: 2% em 2 dias, 20% em 1 mês e 50% em 6 meses. Por que não aproveitar a ocasião de monitorização hospitalar para testar a tolerância às drogas que aumentam a sobrevida na IC?
Fisiologia
O tratamento da insuficiência cardíaca com fração de ejeção reduzida (ICFER) nos permite alinhar de maneira muito contundente os conceitos da fisiologia com a prática médica.
A lesão miocárdica, com suas diversas etiologias, é o ponto de partida da insuficiência cardíaca. Os sinais e sintomas são atribuíveis às alterações hemodinâmicas baseadas em pressões, volumes e fluxos. Em paralelo ocorrem as alterações neuro-hormonais, por meio da ativação do sistema nervoso simpático e sistema renina-angiotensina aldosterona, promovendo o remodelamento cardíaco, disfunção do ventrículo esquerdo e progressão da morbimortalidade.
Esperamos, por ocasião da descompensação motivadora da internação hospitalar, a presença de intensa vasoconstrição periférica, acoplada com redução do débito cardíaco e sobrecarga volêmica. O resultado final é congestão venocapilar pulmonar e sistêmica.
Metas da terapia da IC descompensada
Os principais objetivos do tratamento da insuficiência cardíaca estão sintetizados na tabela abaixo:
Objetivos do tratamento da IC |
|
A diureticoterapia, especialmente a de alça, é a pedra fundamental da descongestão, uma condição necessária para a retomada do equilíbrio hemodinâmico.
O estudo ESCAPE avaliou a correlação de dados do exame físico com uma pressão capilar pulmonar acima de 22 mmHg obtida por meio de cateteres de artéria pulmonar, um ponto de corte relacionado a complicações da IC.
As crepitações, hepatomegalia e edema apresentam sensibilidade baixa para o diagnóstico de IC crônica descompensada, em parte por conta de mecanismos adaptativos, como a hipertrofia linfática, que permitem contornar gradualmente a sobrecarga volêmica. Por outro lado, a ortopneia e o refluxo hepatojugular são achados muito sensíveis (86% e 83%, respectivamente).
A professora Schweitzer nos ofereceu algumas dicas preciosas para a realização do exame físico das veias do pescoço. Melhor do que iniciar a avaliação com a inclinação da cabeceira da maca a 45°, como orientado na maioria dos livros de semiologia, encoraja-se a iniciar a 90°, com o paciente sentado. Caso não seja identificada a coluna de água no pulso venoso jugular, a angulação é gradualmente reduzida, até que os marcos anatômicos sejam notáveis. É válido avaliar ambos os lados, direita e esquerda, bem como se atentar para a pulsação, por vezes mais facilmente identificada.
A farmacologia dos diuréticos foi explicada a partir da curva de resposta à furosemida, com ênfase no limiar de natriurese para a excreção de sódio e o efeito do teto. A curva tende a se deslocar para a direita, ou seja, há demanda por níveis séricos cada vez maiores de furosemida para alcançar o limiar de natriurese a medida em que há progressão da resistência aos diuréticos, fenômeno que tem, entre outras explicações, a hipertrofia e remodelamento dos túbulos contornados distais.
De uma forma geral, se há dúvidas sobre a dose a ser iniciada, a sugestão foi de administrar 100 mg de furosemida em bolus. Caso não tenha a resposta desejada (conforme os guidelines da ESC, > 100 a 150 mL/h de diurese), deve-se dobrar a dose, mantendo em mente que as doses máximas toleráveis se aproximam de 500 mg/dia.
O bloqueio sequencial do néfron é uma possibilidade quando a progressão das doses de furosemida, de forma isolada, não está surtindo os efeitos desejados. A sugestão foi de iniciar pelos inibidores de SGLT2, postergando os diuréticos tiazídicos, em virtude do risco aumentado de distúrbios eletrolíticos graves, notadamente a hipocalemia e a hipomagnesemia.
O estudo DOSE, que comparou a administração de furosemida em bolus vs. infusão contínua, não demonstrou diferenças em termos de mortalidade, mas identificou que doses mais elevadas tendem a reduzir a mortalidade e induzir perda de peso e melhora dos sintomas congestivos de forma mais precoce.
A creatinina foi, mais uma vez, apontada como uma “vilã” do manejo da IC descompensada. Na fase de compensação é esperado que ela aumente, e isso não caracteriza uma injúria renal aguda verdadeira, desde que o paciente esteja, de fato, descongestionando. Na verdade, diante da melhora dos sintomas congestivos e perda ponderal dentro das metas, o grupo que apresenta aumento da creatinina evoluiu com um melhor prognóstico, e uma das explicações é o fato de se ter alcançado a hemoconcentração. Portanto, não interprete, a rigor, a ascensão esperada da creatinina como desidratação.
Outro alicerce fundamental da diureticoterapia é a vasodilatação. O alívio da vasoconstrição arterial reduz as pressões de enchimento do ventrículo esquerdo e otimiza o débito cardíaco.
A terapia quádrupla |
Inibidores dos receptores de neprilisina e angiotensina (ARNi) Ou iECA / BRA |
Betabloqueadores |
Antagonistas dos receptores mineralocorticoides |
Inibidores do cotransportador de sódio e glicose (SGLT2i) |
Mais uma vez destacamos: a hospitalização é oportunidade para otimizar o tratamento. Sem os medicamentos, o risco de morte é maior. Portanto, não se deve temer a hipotensão ou a piora da função renal. Aproveite a estadia no hospital para testar a tolerância às drogas e evite a inércia terapêutica.
O estudo PIONEER-HF comparou o sacubitril-valsartana (dose alvo de 97/103 mg de 12/12 horas) com o enalapril (dose alvo de 10 mg de 12/12 horas) entre pacientes internados com insuficiência cardíaca aguda descompensada. A média de idade foi 61 anos, com 70% de homens e alocação de 440 indivíduos para o grupo ARNi e 441 para o IECA.
O desfecho primário, de redução do NT-pró-BNP, foi alcançado. Em relação aos desfechos secundários, foi notável a redução de novas hospitalizações, já perceptível no curto tempo de seguimento de 8 semanas (RR 0,56 – IC 95%: 0,37 a 0,84). A hipotensão arterial sintomática e hipercalemia foram mais comuns no grupo do ARNi.
O estudo EMPULSE avaliou o emprego da empagliflozina, comparada ao placebo, entre 566 indivíduos internados com IC descompensada. A média de idade foi de 71 anos, com 34% de mulheres e tempo médio de alocação de 3 dias.
O desfecho primário foi combinado, denominado de “benefício clínico”, e incluiu os seguintes elementos: morte, número de eventos de IC, tempo para o primeiro evento de IC e mudanças em um questionário de qualidade de vida em 90 dias. Em relação aos desfechos secundários, houve benefícios em termos de mortalidade (4,2 vs. 8,3%), eventos de IC (10,6 vs. 14,7%), IRA (7,7 vs. 12,%) e mudança do peso (- 1,5 kg em relação ao placebo). A taxa de descontinuação foi favorável (8,5% vs. 12,9%) à intervenção.
É interessante destacar que a introdução da gliflozina, em concordância com os dados do estudo EMPA-REG, é capaz de gerar distanciamento das curvas de mortalidade em pacientes com IC internados de forma muito precoce, com benefícios perceptíveis já em 2 ou 3 semanas.
Houve comentários sobre a possibilidade de se rever os alvos de pressão arterial sistólica (PAS), especialmente entre mulheres.
O estudo SPRINT demonstrou que o tratamento intensivo da hipertensão, com alvo de pressão arterial sistólica inferior a 120 mmHg, se traduziu em redução do risco de IAM, síndrome coronariana aguda, AVC, IC ou morte cardiovascular. Contudo, deve-se manter a vigilância para eventos adversos, como hipotensão, síncope e IRA.
Em estudo publicado em 2021, foram apresentados dados da coorte de Framingham, englobando 27.000 pacientes com tempo de seguimento de 28 anos. Foi observado que os homens começam a desenvolver doença cardiovascular com PAS > 130 mmHg, enquanto as mulheres o fazem a partir de 100 mmHg.
A apresentadora teceu ainda breves comentários em relação ao choque cardiogênico, pincelando os elementos para reconhecer um “super doente”: pressão colapsante, disfunção renal e hepática, FC > 100 bpm, alteração do sensório, extremidades frias, lactato > 2 mmol/L e índice cardíaco < 1,8 L/min/m².
Nesses casos se faz necessário o suporte circulatório em terapia intensiva, valendo-se de inotrópicos, diuréticos e vasodilatadores. Entretanto, muitas vezes será necessário recorrer a recursos mais invasivos, como o balão de contrapulsação aórtico, Impella 2,5® (uma bomba de fluxo centrífuga que aspira o sangue do ventrículo esquerdo e expele para a aorta ascendente), Tandem Heart® (um dispositivo de assistência ventricular externa percutâneo) e ECMO veno-arterial.
Principais pontos e mensagens práticas:
- As internações por insuficiência cardíaca estão aumentado.
- A hospitalização é uma excelente oportunidade para a otimização do tratamento recomendado pelas diretrizes.
- A hipotensão e piora da creatinina não são motivos para a inércia terapêutica. Devem ser avaliadas com cuidado, mas na ausência de sinais de má perfusão periférica e nos pacientes que estão descongestionado efetivamente não devem ser supervalorizadas.
- A diureticoterapia, em especial a de alça, é o alicerce terapêutico, amparado pela terapia vasodilatadora, realizada preferencialmente com sacubitril-valsartana e com a introdução precoce de inibidores de cotransportadores de sódio e glicose.
Acompanhe o congresso do ACP com a gente! Confira outros destaques:
- Injúria renal aguda durante a internação
- Dicas sobre MASLD para o clínico
- Revisando os principais estudos de endocrinologia de 2023
- Vitaminas – precisamos suplementá-las?
- Artigos de destaque na Medicina Interna
Como você avalia este conteúdo?
Sua opinião ajudará outros médicos a encontrar conteúdos mais relevantes.