ACP 2024: Dicas sobre MASLD para o clínico
Durante o congresso de Medicina Interna do American College of Physicians (ACP 2024), o Dr. Elliot Tapper, hepatologista da faculdade de medicina de Michigan, nos trouxe dicas preciosas sobre o manejo da doença hepática esteatótica relacionada ao metabolismo (MASLD), e os principais pontos sintetizamos na sequência.
Doenças hepáticas
Na investigação de pacientes com alterações de enzimas hepáticas, frequentemente opta-se pela solicitação de exames extensos em paralelo, muitas vezes sem levar em conta a probabilidade pré-teste.
Dessa forma, é comum que o indivíduo leve, ao término de uma consulta motivada por aumento de enzimas hepatocelulares e/ou canaliculares, com uma propedêutica ampla, incluindo sorologias virais, cinética do ferro, autoanticorpos, alfa-1-antitripsina e ceruloplasmina, entre outros.
Essa abordagem traz alguns riscos, e para fugir das armadilhas diagnósticas, a epidemiologia e a análise correta do terreno sobre o qual se instala o agravo são ferramentas essenciais.
MASLD
A MASLD é a causa subjacente à alterações de enzimas hepáticas motivadoras de biópsias hepáticas em até três quartos dos casos, com maior proporção entre mulheres, além de indivíduos com mais de 60 anos e com síndrome metabólica. Entre os portadores de MASLD, é muito comum encontrarmos um FAN positivo ou um aumento pronunciado de ferritina, sem que representem doença que não a esteatótica. O diagnóstico inadequado de hepatite autoimune ou hemocromatose nesses cenários, portanto, levará a condutas inadequadas, como o emprego de corticoides e sua miríade de efeitos colaterais, que impactarão negativamente sobre a evolução da MASLD.
Ainda na investigação etiológica, sabemos que os relatos sobre consumo de álcool nem sempre são confiáveis, seja por tabus ou limitações do entrevistador médico. A inconsistência sobre o uso abusivo de álcool pode desencadear propedêuticas extensas, e por vezes desnecessárias. Nesse cenário, os biomarcadores do álcool, frequentemente empregados na medicina legal, ganham destaque, como o etinil glucuronido dosado no fio de cabelo ou o fosfatidil etanol (PEth), mensurado em amostra de sangue, que permite inferência sobre o padrão de consumo nas últimas 2 a 3 semanas, podendo surpreender até 25% dos casos de lesão hepática de natureza incerta com sensibilidade de 97%.
Um detalhe importante para se evitar confusões diagnósticas, é a correta interpretação da hiperferritinemia, levando em conta que a sua principal causa é síndrome metabólica, seguida por uso abusivo de álcool e processos inflamatórios. A homozigose C282Y tem prevalência de 1:300 nos EUA, que embora expressiva, tem penetrância que não ultrapassa 40%, e não deve ser a primeira hipótese diante de hiperferritinemia. Mais uma vez, focar na epidemiologia é um guia útil para fugir de vieses diagnósticos.
Uma forma racional de conduzir a propedêutica inicial da doença hepática crônica indiferenciada é considerar fortemente MASH e hepatopatia alcoólica como etiologias; e realizar o rastreamento para HBV e HCV, motivado pelo baixo custo, alta prevalência, disponibilidade de tratamento eficaz para ambas condições e de imunização para o vírus B.
O principal fator prognóstico na MASLD/MASH é a presença de fibrose avançada (F3-F4), que aumenta acelera a evolução para cirrose e doença hepática crônica avançada e suas complicações. Todavia, nos dias de hoje, a obtenção desse dado não depende mais da biópsia hepática, sendo um importante instrumento preditivo o escore FIB4, que leva em consideração a idade, AST, ALT e contagem de plaquetas. A elastografia transitória controlada por vibração (FibroScan®) é destacada pelo grande valor preditivo negativo com ponto de corte de 15 kPa, mas devemos ter atenção aos falsos positivos e as limitações diante de obesidade grave ou hepatite ativa; e a elastografia hepática por ressonância magnética, com pontos de corte de 5 kPa.
A periodicidade dos exames de elastografia pode ser a cada 10 anos na ausência de preditores de fibrose avançada no primeiro exame; 3 a 5 anos se valores intermediários ou a cada 1 ou 2 anos na suspeita de fibrose avançada.
A probabilidade pré-teste de fibrose entre os pacientes com MASLD encontra-se entre 2 e 5%. A predição de baixa probabilidade de fibrose avançada traz maior tranquilidade quanto ao risco de desenvolvimento de carcinoma hepatocelular (CHC) ou ascite, por exemplo. Entretanto, os pacientes com FIB4 > 2,67 devem ser referenciados ao gastroenterologista ou hepatologista, para seguimento, triagens e tratamentos.
Tendo-se por base a classificação acima, na situação de alto risco para fibrose avançada, a probabilidade elevada de hipertensão portal clinicamente significativa (HPCS) autoriza a introdução de betabloqueador (sendo o carvedilol o não seletivo preferencial), sem a necessidade de realização de endoscopia digestiva alta para a realização de rastreio de varizes esofagogástricas, além da necessidade de iniciar o rastreamento para CHC com ultrassonografia e alfafetoproteína semestral, pois a sua incidência anual é de até 1-2%.
O tratamento mais eficaz para o tratamento da MASLD é o emagrecimento, geralmente sendo suficiente a redução de pelo menos 5% do peso corporal para resolução da esteatose; 7,5% para a resolução da MASH; e 10% para a reversão da fibrose e remoção de colágeno. A dieta deve primar pela redução de carboidratos, com destaque para o papel estressor da frutose sobre o fígado, por depletar o ATP.
Um novo medicamento foi aprovado pelo FDA para o tratamento de MASH com fibrose avançada em 2024: o resmetiron, um agonista do receptor do hormônio tireoidiano (THR) que promove lipólise e beta-oxidação de ácidos graxos hepáticos, sendo capaz de reduzir o estágio da fibrose com significância estatística em relação ao placebo (24% vs. 10%), sem aumentar o risco de inflamação e com duração de tratamento proposta para ao menos 1 ano.
Os análogos de GLP-1, eficazes no tratamento da obesidade, se associam a melhora da MASH provada por biópsia, reduzindo o depósito de gordura e inflamação, contudo sem atingir melhora da fibrose hepática, um parâmetro necessário para a aprovação pelo FDA para essa finalidade.
A vitamina E e a pioglitazona, avaliadas há 15 anos, demonstram capacidade de reduzir a inflamação e a fibrose, mas a pioglitazona pode se associar a ganho de peso e ambas apresentam magnitude de efeito limitada e com eficácia desconhecida no longo prazo. Nenhuma das drogas foi aprovada pelo FDA para o tratamento de MASH.
Mensagens finais e aplicações práticas
- Os pacientes que se consulta por alterações de enzimas hepáticas têm alta probabilidade pré-teste para doença hepática esteatótica relacionada ao metabolismo (MASLD) e doença hepática crônica alcoólica (ALD).
- A entrevista médica tem sensibilidade limitada para mensuração do padrão de consumo etílico diário, especialmente quando uma boa relação médico-paciente não pode ser construída. Nesse sentido, o uso de biomarcadores para exposição ao álcool é útil e pode evitar propedêutica extensiva desnecessária.
- A solicitação desenfreada de exames na investigação de hepatopatia visando contemplar exaustivamente suas causas geralmente implica em resultados falso-negativos que podem induzir a propedêuticas e tratamentos desnecessários e por vezes deletérios.
- A epidemiologia é um dos alicerces para driblar os vieses diagnósticos.
- O principal fator prognóstico na MASH é a presença de fibrose avançada (F3-F4). Atualmente, não dependemos mais da biópsia hepática para obter essa informação, sendo encorajada a utilização de ferramentas preditivas não invasivas, como o escore FIB4 e a elastografia hepática transitória por vibração ou por ressonância magnética.
- O principal tratamento para MASLD é o emagrecimento, às custas de redução da ingestão de carboidratos, com destaque para a frutose, com alvo de perda ponderal de ao menos 5%, mas cientes de que a reversão da fibrose exige perdas próximas a 10%.
- A estratificação não invasiva permite a inferência de pacientes com alto risco de hipertensão portal clinicamente significativa e de desenvolvimento de carcinoma hepatocelular (CHC), permitindo selecionar pacientes para a introdução de carvedilol e rastreio semestral com ultrassonografia do abdome e alfafetoproteína.
Acompanhe o congresso com a gente. Confira outros destaques:
- Colocando as diretrizes em prática na ICFEr
- Reposição de testosterona para o clínico
- Atualizações sobre pneumonia
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