A tuberculose (TB) em bebês com menos de três meses de idade pode ser de origem congênita ou pós-natal e é denominada tuberculose perinatal (TBP). A TB congênita é caracterizada por ser transmitida no útero por disseminação hematogênica através da veia umbilical ou ingestão/aspiração de líquido amniótico infectado por Mycobacterium tuberculosis durante o nascimento. Já a transmissão pós-natal ocorre pela inalação de bacilos M. tuberculosis disseminados pela via aérea de uma mãe ou outro paciente próximo com TB pulmonar infecciosa logo após o nascimento.
Infelizmente, é um grande desafio distinguir clinicamente entre TB congênita e pós-natal. Uma recente revisão publicada no jornal Frontiers in Public Health focou em fornecer orientações sobre a avaliação e o manejo de bebês quando em contato com mães com TB durante ou logo após a gravidez. O objetivo é aumentar a conscientização sobre a TB em neonatos e bebês pequenos.
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Epidemiologia
- Modelos epidemiológicos estimaram que, em 2011, havia 216.500 gestantes com TB em todo o mundo;
- As mulheres correm maior risco de desenvolver TB após infecção por M. tuberculosis durante a gravidez e no período pós-parto imediato (a infecção pelo VIH aumenta ainda mais esse risco);
- Gestantes com TB apresentam um risco aumentado de:
- Parto prematuro;
- Bebê com baixo peso ao nascer;
- Asfixia perinatal;
- Óbito perinatal.
Fatores de risco
Os possíveis fatores de risco para TB congênita são:
- Bebês nascidos de mães com TB primária, que geralmente tem uma fase hematogênica (bacilemia);
- Mães infectadas com TB e VIH (vírus da imunodeficiência humana);
- Mães que foram submetidas à fertilização in vitro (FIV) com TB (em trato genitourinário) como causa de infertilidade.
Apresentação clínica
Os critérios revistos de Cantwell podem ajudar a distinguir a TB congênita da TB pós-natal. A tuberculose perinatal ocorre em qualquer bebê com menos de três meses de vida e com uma lesão de TB confirmada.
Um ou mais dos seguintes sintomas têm maior probabilidade de ser TB congênita:
- Apresenta-se na 1ª semana de vida;
- Presença de complexo hepático primário ou granuloma hepático caseoso;
- Bacilos micobacterianos identificados na placenta ou TB endometrial na mãe;
- Exclusão da possível transmissão pós-natal, excluindo a TB em outros contatos.
Pacientes com TB congênita apresentam mais frequentemente dificuldade respiratória aguda, hepatomegalia e/ou sinais abdominais e suas principais manifestações clínicas estão resumidas no Quadro 1:
Quadro 1: Principais manifestações clínicas da TBP congênita
Ocorrência | Sinais e sintomas |
Muito comuns (>60%) | Desconforto respiratório, incluindo taquipneia |
Febre (geralmente baixa) | |
Hepatomegalia | |
Comuns (40 a 60%) | A tosse pode ser aguda ou crônica (especificamente >2 semanas de idade) |
Esplenomegalia | |
Falha no crescimento | |
Prematuridade/baixo peso ao nascer | |
Frequentes (25 a 40%) | Distensão abdominal, incluindo ascite |
Dificuldade de alimentação | |
Infrequentes (10 a 25%) | Convulsões |
Irritabilidade e letargia | |
Linfadenopatia periférica | |
Sepse | |
Raras (<10%) | Chiado ou estridor |
Choque | |
Episódios de apneia ou cianose | |
Icterícia (obstrutiva) | |
Lesões cutâneas papulares/pustulosas ou ulcerativas | |
Linfohistiocitose hemofagocítica | |
Otorreia/mastoidite | |
Paralisia do nervo facial | |
Vômitos |
Legenda: TBP – tuberculose perinatal.
Fonte: adaptado de SCHAAF; BEKKER & RABIE (2023).
A TB pós-natal geralmente apresenta:
- Tosse;
- Taquipneia;
- Sibilos ou estridor.
Outros sintomas e sinais apresentados, como baixo ganho de peso, são semelhantes. Apresentações tardias raras podem incluir lesões osteoarticulares
Diagnóstico
O diagnóstico de tuberculose perinatal está sintetizado nos Quadros 2, 3 e 4
Quadro 2: Diagnóstico clínico da TBP
Avaliação | Características |
Anamnese | Contato com um adulto com TB, especialmente a mãe |
FIV | |
Exame físico | Avaliação do crescimento (prematuridade, PIG, baixo peso ao nascer, ganho de peso ao longo do tempo) |
Exame geral completo e avaliação de sistemas | |
Evolução clínica | Contagem elevada de linfócitos no LCR |
Distensão abdominal com ascite | |
Febre persistente e/ou hepatoesplenomegalia com ou sem icterícia | |
Pneumonia que não responde a antibióticos |
Legenda: FIV – Fertilização in vitro; LCR – líquido cefalorraquidiano; PIG – pequeno para a idade gestacional; TB – tuberculose; TBP – tuberculose perinatal.
Fonte: adaptado de SCHAAF; BEKKER & RABIE (2023).
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Quadro 3: Diagnóstico por imagem de TBP
Exame | Características |
RX de tórax | TBP congênita:
|
TBP pós-natal:
| |
TC de tórax | Para melhor identificação de linfonodos intratorácicos |
Para diferenciar a TB de outras condições, incluindo anomalias congênitas | |
USG de abdome | Biópsia guiada pode confirmar o diagnóstico se forem encontradas lesões microbiologicamente positivas ou granulomatosas hepáticas |
Confirmação de ascite em bebês com distensão abdominal | |
Identificação de lesões hipoecóicas no fígado e baço | |
Identificação de linfadenopatia intra-abdominal ou retroperitoneal | |
TC ou RNM de crânio | Se considerar envolvimento do SNC ou se o RX de tórax mostrar TB miliar. |
Legenda: RNM – ressonância magnética; SNC – sistema nervoso central; TBP – tuberculose perinatal; TC – tomografia computadorizada; USG – ultrassonografia.
Quadro 4: Diagnóstico laboratorial de TBP
Avaliação | Características |
BAAR | Pode ser positivo |
Confirmação microbiológica |
|
Exame da placenta | Pode ser útil |
NAAT para o complexo M. tuberculosis |
|
PPD-TST e IGRA | Podem ser úteis, mas são menos frequentemente positivos em bebês, pois pode levar de 6 a 8 semanas para se converter em positivo após a infecção. |
Punção lombar | Excluir lesões de SNC (TB meníngea e tuberculoma) |
Teste para VIH | Se ainda não tiver sido feito |
Exames maternos |
|
Legenda: BAAR – baciloscopia para bacilos álcool-ácido resistentes; IGRA – ensaio de liberação de interferon gama (IGRA); NAAT – os testes moleculares rápidos baseados na amplificação de ácido nucleico; PPD – proteína purificada derivativa; TB – tuberculose; TBP – tuberculose perinatal; TSA – teste de suscetibilidade a antimicrobianos; TST – teste cutâneo de tuberculina; VIH – vírus da imunodeficiência humana.
Prevenção da TB em mães e seus bebês
Envolve quatro componentes:
- Prevenção primária da TB entre gestantes, especialmente através da prestação de TPT após infecção ou exposição à TB de alto risco;
- Prevenção de gravidezes indesejadas em mulheres que recebem terapia para TB;
- Identificação precoce e tratamento da TB com apoio ao tratamento em mulheres durante a gravidez e pós-parto;
- Fornecer TPT pós-exposição à TB apropriado para bebês, quando indicado.
Terapia preventiva da TB em neonatos e bebês expostos/infectados
- Quando as mães são diagnosticadas e/ou tratadas para TB durante a gravidez, os seus recém-nascidos (RN) devem ser avaliados para TB ao nascimento ou nos primeiros dias de vida;
- Em neonatos triados para TB com exposição ou infecção conhecida, a terapia preventiva da TB (TPT) deve ser fornecida assim que a doença TB for excluída;
- A escolha da TPT depende do padrão de suscetibilidade confirmado ou presumido do paciente fonte e da possibilidade de outras interações medicamentosas;
- Exposição à TB suscetível a antimicrobianos: seis meses de isoniazida (inclusive em crianças expostas ao VIG em uso de tratamento antirretroviral [TARV]) ou três meses de isoniazida-rifampicina;
- Exposição à TB monorresistente à isoniazida: quatro meses de rifampicina;
- Exposição à TB resistente à rifampicina (RR) ou multirresistente (TB-MDR; resistência à isoniazida mais rifampicina): usar levofloxacina isoladamente ou em combinação com outro medicamento com suscetibilidade conhecida ou presumida;
- Exposição a cepas MDR com resistência às fluoroquinolonas (TB pré-extensiva resistente a medicamentos [pré-XDR]) ou XDR-TB (pré-XDR-TB mais resistência à bedaquilina ou linezolida): a TPT pode não ser possível e a opinião de especialistas deve ser buscada;
- Exposição a pacientes fonte pré-XDR/XDRTB com baixo nível de resistência à isoniazida, conferida apenas por uma mutação inhA: altas doses de isoniazida de 15 mg/kg por 6 meses;
- Delamanida: como opção de TPT, atualmente sendo investigada para contatos de pacientes com TB MDR a XDR;
- Em todos os bebês expostos/infectados, independentemente do TPT: acompanhamento rigoroso em longo prazo durante pelo menos 1 ano;
- Após a conclusão da TPT, a vacina Bacillus Calmette-Guérin (BCG) deve ser administrada a todos os bebês que não converteram TST ou IGRA (ou se TST/IGRA não estiver disponível) e que vivam em países onde a BCG faz parte da vacinação de rotina.
Separação de bebês das mães e outras medidas preventivas:
- De acordo com a revisão, em ambientes de baixa renda, os bebês raramente são separados das mães após o nascimento, mesmo que se saiba que as mães ainda são contagiosas, pois é importante estabelecer a amamentação e o vínculo com RN;
- Os cuidados com o bebê incluem:
- Aconselhamento sobre medidas de prevenção e controle de infecções, como usar máscara ao manusear ou alimentar o bebê até que a mãe esteja em terapia eficaz por pelo menos duas semanas e/ou baciloscopia de escarro negativa para bacilos ácidos;
- Dormir em um quarto separado;
- Permitir ventilação no domicílio;
- Adesão do tratamento pela própria mãe e do TPT do bebê;
- A separação temporária de bebês de mães infecciosas até que não sejam infecciosas pode ser indicada em mães com TB-MDR, pré-XDR ou XDR-TB se não houver opções de TPT disponíveis; infelizmente, isso só é possível se houver um cuidador alternativo confiável disponível;
- Com a possível exceção da bedaquilina, onde foram relatadas concentrações elevadas em apenas um lactente, muito pouco medicamento é excretado no leite materno e a amamentação não é contraindicada;
- Bedaquilina: O monitoramento por eletrocardiograma (ECG) de bebês amamentados deve ser feito se as mães estiverem tomando bedaquilina.
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Tratamento
Os regimes de tratamento de lactentes com TB congênita ou adquirida pós-natal são semelhantes ao tratamento da TB infantil. No entanto, o novo regime de quatro meses para TB não grave suscetível a antimicrobianos não é recomendado para lactentes com menos de três meses de idade.
O local e a gravidade da doença, bem como o caso fonte ou o resultado do TSA do isolado de M. tuberculosis do lactente devem ser considerados. Uma combinação de isoniazida, rifampicina e pirazinamida com ou sem um quarto medicamento, como etambutol, um aminoglicosídeo (estreptomicina ou amicacina), levofloxacina, etionamida ou mesmo linezolida, tem sido usada principalmente para a fase intensiva na TB suscetível a antimicrobianos, com uma fase de continuação de isoniazida e rifampicina variando de quatro a dez meses, dependendo da gravidade da doença e da resposta ao tratamento.
- Aminoglicosídeos: devem ser evitados devido ao risco de perda auditiva permanente e à necessidade de administrá-los por via parenteral;
- Etambutol: apesar das preocupações com a neurite óptica, o etambutol na dose atual recomendada raramente é tóxico, mas a acuidade visual não pode ser avaliada;
- Etionamida ou levofloxacina: são preferíveis devido à elevada taxa de TB miliar e envolvimento do SNC – nesses casos, a fase intensiva com todos os quatro medicamentos deve ser continuada durante todo o tratamento;
- Testes basais de função hepática: devem ser realizados, pois a TB e outras condições podem afetar o fígado em crianças pequenas, o que pode ser mal interpretado como hepatotoxicidade relacionada ao medicamento;
- Todos os bebés coinfectados com VIH necessitam do início urgente do TARV. A TPT ou o tratamento da TB não deve atrasar o início da TARV, embora a escolha do regime possa ser um desafio nos bebês mais novos e menores. A Organização Mundial de Saúde (OMS) recomenda o início da TARV dentro de duas semanas, a menos que haja meningite;
- Todos os bebês coinfectados com mais de 4 semanas de idade devem receber terapia preventiva com cotrimoxazol contra a pneumonia por Pneumocystis jirovecii, independentemente da contagem de CD4;
- Os níveis de piridoxina foram vistos como consistentemente baixos em crianças que vivem com VIH; portanto, essas crianças devem receber piridoxina para prevenir a toxicidade da isoniazida;
- Corticosteroides: indicados em lactentes com compressão linfonodal das grandes vias aéreas por TB ou na meningite tuberculosa;
- Após a conclusão do tratamento: considerar a vacinação BCG em bebês que vivem em locais com elevada carga de TB se o diagnóstico de TB não tiver sido confirmado, incluindo bebês que vivem com VIH clínica e imunologicamente estáveis em TARV (CD4 > 25%);
- O acompanhamento clínico da recorrência da TB, seja recidiva ou reinfecção, e da doença pós-TB é importante.
No Brasil, as recomendações para TBP constam no Manual de Recomendacoes e Controle da Tuberculose no Brasil, 2ª ed.
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