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Pediatria11 dezembro 2023

Tuberculose perinatal e os desafios da abordagem

A tuberculose perinatal ocorre em qualquer bebê com menos de três meses de vida e com uma lesão de TB confirmada.

A tuberculose (TB) em bebês com menos de três meses de idade pode ser de origem congênita ou pós-natal e é denominada tuberculose perinatal (TBP). A TB congênita é caracterizada por ser transmitida no útero por disseminação hematogênica através da veia umbilical ou ingestão/aspiração de líquido amniótico infectado por Mycobacterium tuberculosis durante o nascimento. Já a transmissão pós-natal ocorre pela inalação de bacilos M. tuberculosis disseminados pela via aérea de uma mãe ou outro paciente próximo com TB pulmonar infecciosa logo após o nascimento.  

Infelizmente, é um grande desafio distinguir clinicamente entre TB congênita e pós-natal. Uma recente revisão publicada no jornal Frontiers in Public Health focou em fornecer orientações sobre a avaliação e o manejo de bebês quando em contato com mães com TB durante ou logo após a gravidez. O objetivo é aumentar a conscientização sobre a TB em neonatos e bebês pequenos. 

Veja também: Existe associação entre tratamento para infertilidade e TEA?

tuberculose perinatal

Epidemiologia 

  • Modelos epidemiológicos estimaram que, em 2011, havia 216.500 gestantes com TB em todo o mundo; 
  • As mulheres correm maior risco de desenvolver TB após infecção por M. tuberculosis durante a gravidez e no período pós-parto imediato (a infecção pelo VIH aumenta ainda mais esse risco); 
  • Gestantes com TB apresentam um risco aumentado de: 
    • Parto prematuro; 
    • Bebê com baixo peso ao nascer; 
    • Asfixia perinatal; 
    • Óbito perinatal. 

Fatores de risco 

Os possíveis fatores de risco para TB congênita são:  

  • Bebês nascidos de mães com TB primária, que geralmente tem uma fase hematogênica (bacilemia); 
  • Mães infectadas com TB e VIH (vírus da imunodeficiência humana); 
  • Mães que foram submetidas à fertilização in vitro (FIV) com TB (em trato genitourinário) como causa de infertilidade. 

Apresentação clínica 

Os critérios revistos de Cantwell podem ajudar a distinguir a TB congênita da TB pós-natal. A tuberculose perinatal ocorre em qualquer bebê com menos de três meses de vida e com uma lesão de TB confirmada.  

      Um ou mais dos seguintes sintomas têm maior probabilidade de ser TB congênita: 

  1. Apresenta-se na 1ª semana de vida; 
  2. Presença de complexo hepático primário ou granuloma hepático caseoso; 
  3. Bacilos micobacterianos identificados na placenta ou TB endometrial na mãe; 
  4. Exclusão da possível transmissão pós-natal, excluindo a TB em outros contatos.

Pacientes com TB congênita apresentam mais frequentemente dificuldade respiratória aguda, hepatomegalia e/ou sinais abdominais e suas principais manifestações clínicas estão resumidas no Quadro 1:  

Quadro 1:   Principais manifestações clínicas da TBP congênita 

Ocorrência Sinais e sintomas 
 

 

Muito comuns (>60%) 

Desconforto respiratório, incluindo taquipneia 
Febre (geralmente baixa) 
Hepatomegalia 
 

 

 

Comuns (40 a 60%) 

A tosse pode ser aguda ou crônica (especificamente >2 semanas de idade) 
Esplenomegalia 
Falha no crescimento 
Prematuridade/baixo peso ao nascer 
 

Frequentes (25 a 40%) 

Distensão abdominal, incluindo ascite 
Dificuldade de alimentação 
 

 

 

Infrequentes (10 a 25%) 

Convulsões 
Irritabilidade e letargia 
Linfadenopatia periférica 
Sepse 
 

 

 

 

 

 

 

Raras (<10%) 

Chiado ou estridor 
Choque 
Episódios de apneia ou cianose 
Icterícia (obstrutiva) 
Lesões cutâneas papulares/pustulosas ou ulcerativas 
Linfohistiocitose hemofagocítica 
Otorreia/mastoidite 
Paralisia do nervo facial 
Vômitos 
Legenda: TBP – tuberculose perinatal. 
Fonte: adaptado de SCHAAF; BEKKER & RABIE (2023).   

        A TB pós-natal geralmente apresenta: 

  • Tosse; 
  • Taquipneia; 
  • Sibilos ou estridor. 

Outros sintomas e sinais apresentados, como baixo ganho de peso, são semelhantes. Apresentações tardias raras podem incluir lesões osteoarticulares     

Diagnóstico 

O diagnóstico de tuberculose perinatal está sintetizado nos Quadros 2, 3 e 4 

Quadro 2: Diagnóstico clínico da TBP 

Avaliação Características 
 

Anamnese 

Contato com um adulto com TB, especialmente a mãe 
FIV 
 

Exame físico 

Avaliação do crescimento (prematuridade, PIG, baixo peso ao nascer, ganho de peso ao longo do tempo) 
Exame geral completo e avaliação de sistemas 
 

 

Evolução clínica 

Contagem elevada de linfócitos no LCR 
Distensão abdominal com ascite  
Febre persistente e/ou hepatoesplenomegalia com ou sem icterícia 
Pneumonia que não responde a antibióticos 
Legenda: FIVFertilização in vitro; LCR – líquido cefalorraquidiano; PIG – pequeno para a idade gestacional; TB – tuberculose; TBP – tuberculose perinatal. 

Fonte: adaptado de SCHAAF; BEKKER & RABIE (2023).

Leia ainda: Dermatite atópica tem relação com uso de emolientes no primeiro ano de vida?

Quadro 3: Diagnóstico por imagem de TBP  

Exame Características 
 

 

 

 

 

 

 

 

 

RX de tórax 

TBP congênita:  

  • Infiltrados miliares (30–40%) 
  • Opacificação pneumônica alveolar (30–40%) 
  • Infiltrados broncopneumônicos bilaterais (15–20%) 
  • Linfonodos intratorácicos (10–15%) 
  • Radiografia de tórax normal (5 a 10%) 
  • Cavidades (<5%) 
  • Derrame pleural (<5%) 
TBP pós-natal: 

  • Podem ser semelhantes à TB congênita 
  • Colapso devido à obstrução parcial ou completa das grandes vias aéreas por linfonodos mediastinais aumentados 
  • Compressão das grandes vias aéreas 
  • Focos de Ghon  
  • Hiperinsuflação lobar ou unilateral 
  • Linfadenopatia mediastinal 
 

TC de tórax 

Para melhor identificação de linfonodos intratorácicos  
Para diferenciar a TB de outras condições, incluindo anomalias congênitas 
 

 

 

USG de abdome 

Biópsia guiada pode confirmar o diagnóstico se forem encontradas lesões microbiologicamente positivas ou granulomatosas hepáticas 
Confirmação de ascite em bebês com distensão abdominal 
Identificação de lesões hipoecóicas no fígado e baço 
Identificação de linfadenopatia intra-abdominal ou retroperitoneal 
TC ou RNM de crânio Se considerar envolvimento do SNC ou se o RX de tórax mostrar TB miliar. 
Legenda: RNM – ressonância magnética; SNC – sistema nervoso central; TBP – tuberculose perinatal; TC – tomografia computadorizada; USG – ultrassonografia. 

 Quadro 4: Diagnóstico laboratorial de TBP  

Avaliação Características 
BAAR Pode ser positivo           
Confirmação microbiológica 
  • Sempre que possível 
  • As amostras devem ser obtidas de qualquer local afetado, como secreções respiratórias, LCR, líquido pleural ou ascítico, urina (se TB disseminada), esfregaços de ouvido, gânglios linfáticos, fígado e pele 
  • Neonatos assintomáticos podem apresentar testes microbiológicos positivos em aspirados gástricos (provavelmente devido à ingestão de líquido amniótico infectado) 
Exame da placenta Pode ser útil 
NAAT para o complexo M. tuberculosis  
  • Amostras submetidas a TSA 
  • Mais sensíveis que o BAAR 
  • Exemplos: ensaio Xpert MTB/RIF Ultra e Truenat  
  • A taxa de confirmação microbiológica de M. tuberculosis em crianças pequenas com TB é geralmente elevada, normalmente 70-80% 
PPD-TST e IGRA Podem ser úteis, mas são menos frequentemente positivos em bebês, pois pode levar de 6 a 8 semanas para se converter em positivo após a infecção. 
Punção lombar Excluir lesões de SNC (TB meníngea e tuberculoma) 
Teste para VIH Se ainda não tiver sido feito 
Exames maternos 
  • RX de tórax e o exame microbiológico do escarro (ou outra amostra relevante) caso ainda não tenham sido realizados 
  • A biópsia endometrial da mãe como provável paciente fonte é necessária se outras avaliações forem negativas 
  • Teste para VIH (se ainda não tiver sido feito)
Legenda: BAAR – baciloscopia para bacilos álcool-ácido resistentes; IGRA – ensaio de liberação de interferon gama (IGRA); NAAT – os testes moleculares rápidos baseados na amplificação de ácido nucleico; PPD – proteína purificada derivativa; TB – tuberculose; TBP – tuberculose perinatal; TSA – teste de suscetibilidade a antimicrobianos; TST – teste cutâneo de tuberculina; VIH – vírus da imunodeficiência humana. 

Prevenção da TB em mães e seus bebês    

Envolve quatro componentes: 

  1. Prevenção primária da TB entre gestantes, especialmente através da prestação de TPT após infecção ou exposição à TB de alto risco; 
  2. Prevenção de gravidezes indesejadas em mulheres que recebem terapia para TB; 
  3. Identificação precoce e tratamento da TB com apoio ao tratamento em mulheres durante a gravidez e pós-parto;  
  4. Fornecer TPT pós-exposição à TB apropriado para bebês, quando indicado.

Terapia preventiva da TB em neonatos e bebês expostos/infectados 

  • Quando as mães são diagnosticadas e/ou tratadas para TB durante a gravidez, os seus recém-nascidos (RN) devem ser avaliados para TB ao nascimento ou nos primeiros dias de vida; 
  • Em neonatos triados para TB com exposição ou infecção conhecida, a terapia preventiva da TB (TPT) deve ser fornecida assim que a doença TB for excluída; 
  • A escolha da TPT depende do padrão de suscetibilidade confirmado ou presumido do paciente fonte e da possibilidade de outras interações medicamentosas; 
  • Exposição à TB suscetível a antimicrobianos:  seis meses de isoniazida (inclusive em crianças expostas ao VIG em uso de tratamento antirretroviral [TARV]) ou três meses de isoniazida-rifampicina;  
  • Exposição à TB monorresistente à isoniazida: quatro meses de rifampicina; 
  • Exposição à TB resistente à rifampicina (RR) ou multirresistente (TB-MDR; resistência à isoniazida mais rifampicina): usar levofloxacina isoladamente ou em combinação com outro medicamento com suscetibilidade conhecida ou presumida; 
  • Exposição a cepas MDR com resistência às fluoroquinolonas (TB pré-extensiva resistente a medicamentos [pré-XDR]) ou XDR-TB (pré-XDR-TB mais resistência à bedaquilina ou linezolida): a TPT pode não ser possível e a opinião de especialistas deve ser buscada; 
  • Exposição a pacientes fonte pré-XDR/XDRTB com baixo nível de resistência à isoniazida, conferida apenas por uma mutação inhA: altas doses de isoniazida de 15 mg/kg por 6 meses; 
  • Delamanida: como opção de TPT, atualmente sendo investigada para contatos de pacientes com TB MDR a XDR; 
  • Em todos os bebês expostos/infectados, independentemente do TPT: acompanhamento rigoroso em longo prazo durante pelo menos 1 ano; 
  • Após a conclusão da TPT, a vacina Bacillus Calmette-Guérin (BCG) deve ser administrada a todos os bebês que não converteram TST ou IGRA (ou se TST/IGRA não estiver disponível) e que vivam em países onde a BCG faz parte da vacinação de rotina.

Separação de bebês das mães e outras medidas preventivas:

  • De acordo com a revisão, em ambientes de baixa renda, os bebês raramente são separados das mães após o nascimento, mesmo que se saiba que as mães ainda são contagiosas, pois é importante estabelecer a amamentação e o vínculo com RN; 
  • Os cuidados com o bebê incluem: 
    • Aconselhamento sobre medidas de prevenção e controle de infecções, como usar máscara ao manusear ou alimentar o bebê até que a mãe esteja em terapia eficaz por pelo menos duas semanas e/ou baciloscopia de escarro negativa para bacilos ácidos; 
    • Dormir em um quarto separado; 
    • Permitir ventilação no domicílio; 
    • Adesão do tratamento pela própria mãe e do TPT do bebê; 
    • A separação temporária de bebês de mães infecciosas até que não sejam infecciosas pode ser indicada em mães com TB-MDR, pré-XDR ou XDR-TB se não houver opções de TPT disponíveis; infelizmente, isso só é possível se houver um cuidador alternativo confiável disponível; 
    • Com a possível exceção da bedaquilina, onde foram relatadas concentrações elevadas em apenas um lactente, muito pouco medicamento é excretado no leite materno e a amamentação não é contraindicada; 
    • Bedaquilina:  O monitoramento por eletrocardiograma (ECG) de bebês amamentados deve ser feito se as mães estiverem tomando bedaquilina. 

Saiba mais: Aplicação clínica de probióticos, prebióticos e posbióticos em pediatria

Tratamento 

Os regimes de tratamento de lactentes com TB congênita ou adquirida pós-natal são semelhantes ao tratamento da TB infantil. No entanto, o novo regime de quatro meses para TB não grave suscetível a antimicrobianos não é recomendado para lactentes com menos de três meses de idade. 

O local e a gravidade da doença, bem como o caso fonte ou o resultado do TSA do isolado de M. tuberculosis do lactente devem ser considerados. Uma combinação de isoniazida, rifampicina e pirazinamida com ou sem um quarto medicamento, como etambutol, um aminoglicosídeo (estreptomicina ou amicacina), levofloxacina, etionamida ou mesmo linezolida, tem sido usada principalmente para a fase intensiva na TB suscetível a antimicrobianos, com uma fase de continuação de isoniazida e rifampicina variando de quatro a dez meses, dependendo da gravidade da doença e da resposta ao tratamento. 

  • Aminoglicosídeos: devem ser evitados devido ao risco de perda auditiva permanente e à necessidade de administrá-los por via parenteral; 
  • Etambutol: apesar das preocupações com a neurite óptica, o etambutol na dose atual recomendada raramente é tóxico, mas a acuidade visual não pode ser avaliada; 
  • Etionamida ou levofloxacina: são preferíveis devido à elevada taxa de TB miliar e envolvimento do SNC – nesses casos, a fase intensiva com todos os quatro medicamentos deve ser continuada durante todo o tratamento;  
  • Testes basais de função hepática:  devem ser realizados, pois a TB e outras condições podem afetar o fígado em crianças pequenas, o que pode ser mal interpretado como hepatotoxicidade relacionada ao medicamento; 
  • Todos os bebés coinfectados com VIH necessitam do início urgente do TARV. A TPT ou o tratamento da TB não deve atrasar o início da TARV, embora a escolha do regime possa ser um desafio nos bebês mais novos e menores. A Organização Mundial de Saúde (OMS) recomenda o início da TARV dentro de duas semanas, a menos que haja meningite; 
  • Todos os bebês coinfectados com mais de 4 semanas de idade devem receber terapia preventiva com cotrimoxazol contra a pneumonia por Pneumocystis jirovecii, independentemente da contagem de CD4; 
  • Os níveis de piridoxina foram vistos como consistentemente baixos em crianças que vivem com VIH; portanto, essas crianças devem receber piridoxina para prevenir a toxicidade da isoniazida; 
  • Corticosteroides: indicados em lactentes com compressão linfonodal das grandes vias aéreas por TB ou na meningite tuberculosa; 
  • Após a conclusão do tratamento: considerar a vacinação BCG em bebês que vivem em locais com elevada carga de TB se o diagnóstico de TB não tiver sido confirmado, incluindo bebês que vivem com VIH clínica e imunologicamente estáveis em TARV (CD4 > 25%); 
  • O acompanhamento clínico da recorrência da TB, seja recidiva ou reinfecção, e da doença pós-TB é importante. 

No Brasil, as recomendações para TBP constam no Manual de Recomendacoes e Controle da Tuberculose no Brasil, 2ª ed 

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Referências bibliográficas

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