A prevalência crescente de doenças gastrointestinais (GI) crônicas em crianças tem sido uma preocupação global. Entre as condições mais comuns estão os distúrbios funcionais, alergias alimentares, doença celíaca, doenças inflamatórias intestinais (DII) e esofagite eosinofílica (EOE).
Embora cada uma apresente manifestações clínicas distintas, muitas compartilham alterações semelhantes na microbiota, na barreira intestinal, na imunidade e no eixo intestino-cérebro. Um fator ambiental central e crescente em todo o mundo é a exposição excessiva a alimentos ultraprocessados (AUP), cada vez mais consumidos desde os primeiros meses de vida.
Esse tema foi amplamente discutido durante uma plenária do congresso da European Society for Paediatric Gastroenterology, Hepatology and Nutrition (ESPGHAN 2025), trazendo informações atuais e evidências de como os AUP podem impactar diretamente nas doenças GI. Veja abaixo os principais destaques:
Alergias alimentares e proctocolite alérgica
- Crianças com alergias alimentares consomem significativamente mais AUPs do que aquelas sem alergias;
- Produtos de glicação avançada (AGEs), abundantes em AUPs, promovem inflamação, aumentam a permeabilidade intestinal e afetam a tolerância oral;
- Estudos demonstram níveis mais altos de AGEs na pele e no leite materno de mães cujos filhos apresentam proctocolite alérgica, mesmo em lactentes exclusivamente amamentados;
- A dieta materna durante a gestação e lactação influencia a composição do leite, afetando diretamente o microbioma e o sistema imunológico do bebê.
Doença celíaca
- Dietas ricas em AUPs foram associadas a maior risco de progressão da doença celíaca em crianças geneticamente predispostas;
- Estudos mostraram que um maior IMC (frequentemente associado a dietas ocidentais) correlaciona-se com marcadores pró-inflamatórios como a leptina, favorecendo o desenvolvimento da doença;
- Em contraste, a adesão à dieta mediterrânea mostrou efeito protetor contra a ativação da doença celíaca.
Esofagite eosinofílica (EOE)
- Crianças com EOE consomem mais AUPs e têm maior exposição a AGEs, comparadas a controles saudáveis;
- Experimentos com biópsias esofágicas mostram que AGEs aumentam significativamente a infiltração eosinofílica e a expressão de citocinas inflamatórias como IL-5, IL-13 e TSLP;
- Evidências sugerem que os AUPs podem não apenas atrair eosinófilos da circulação, mas também induzir sua diferenciação local na mucosa esofágica.
Doenças inflamatórias intestinais (DII)
- O consumo elevado de AUPs foi associado a maior risco de desenvolver DII e agravamento da atividade clínica da doença;
- A carne ultraprocessada foi identificada como um dos alimentos mais fortemente ligados a exacerbação da DII;
- Por outro lado, dietas baseadas em alimentos minimamente processados mostraram efeito protetor contra surtos.
Leia também: Desafios no acesso a novos tratamentos nas DII
Síndrome do intestino irritável (SII)
- Em adultos, um aumento de 10% no consumo de AUP está associado a um risco 8% maior de desenvolver SII;
- Hipóteses envolvem maior fermentação de FODMAPs presentes nos AUPs, além de alterações na motilidade, microbiota e barreira intestinal;
- Apesar dos estudos em adultos, as conclusões são altamente relevantes para populações pediátricas.
Obesidade e efeitos sistêmicos
- Mais de 50% das crianças com EOE em certos centros também têm obesidade;
- Adipócitos nos linfonodos mesentéricos produzem leptina, que inibe células T reguladoras, favorecendo alergias e inflamação;
- A exposição mitocondrial a AUPs, mesmo por curtos períodos, reproduz disfunções metabólicas observadas em crianças obesas.
Conclusão
Há evidência robusta de que os alimentos ultraprocessados são mais do que uma escolha dietética pobre: são agentes ambientais potentes, capazes de modular o microbioma, desregular o sistema imune, enfraquecer a barreira intestinal e promover inflamação. Seu consumo excessivo desde os primeiros meses de vida pode contribuir de forma decisiva para o surgimento e agravamento de diversas doenças gastrointestinais crônicas na infância.
É papel do pediatra e de todos aqueles envolvidos nos cuidados de saúde de criança, sejam profissionais ou familiares, entenderem essa relação e disseminar essa informação para que se fomente um consumo alimentar mais consciente.
Mensagens práticas
- Investigue a dieta em todas as crianças com doenças GI crônicas, visto que o padrão alimentar pode ser parte do problema;
- Promova desde cedo uma alimentação baseada em comida de verdade, com baixa presença de AUPs e alta densidade nutricional
- Inclua a dieta materna como fator de risco e prevenção, tanto na gestação quanto na lactação;
- Considere intervenções dietéticas como parte do tratamento de DII, EOE e alergias alimentares, não apenas suporte;
- Reconheça o AUP como um agente inflamatório ambiental relevante, comparável a poluentes ou alérgenos, com impacto sistêmico.
Confira os principais destaques do ESPGHAN 2025!
Como você avalia este conteúdo?
Sua opinião ajudará outros médicos a encontrar conteúdos mais relevantes.