A doença celíaca (DC) é uma condição autoimune desencadeada pela ingestão de glúten, levando à inflamação crônica e atrofia das vilosidades intestinais em indivíduos geneticamente predispostos, resultando em um espectro de manifestações, que podem incluir sintomas gastrointestinais como diarreia crônica, dor abdominal, vômitos e distensão abdominal, além de manifestações extraintestinais, como fadiga, déficit de crescimento, anemia e osteopenia, nas fases mais avançadas da doença. Estima-se que a prevalência global da doença varie entre 1% e 3%, sendo uma das doenças autoimunes mais comuns na infância, logo é fundamental o seu seguimento de forma correta.
O tratamento da DC baseia-se na adesão estrita e vitalícia a uma dieta isenta de glúten (DIG), o que geralmente leva à remissão dos sintomas e à recuperação das vilosidades intestinais em algumas semanas. No entanto, a literatura aponta que algumas alterações laboratoriais podem persistir ou surgir ao longo do acompanhamento, mesmo em pacientes com boa adesão à dieta. A escassez de diretrizes baseadas em evidências para o monitoramento laboratorial de longo prazo levanta dúvidas sobre quais exames são essenciais para prevenir deficiências nutricionais e complicações metabólicas, especialmente nos pacientes pediátricos.
Diante desse cenário, um estudo retrospectivo avaliou a necessidade do acompanhamento laboratorial prolongado em pacientes pediátricos com DC e foi conduzido em um centro de referência em gastroenterologia pediátrica em Israel e incluiu 500 crianças diagnosticadas com DC entre 1999 e 2018. A metodologia envolveu uma revisão retrospectiva de prontuários médicos, incluindo dados demográficos, clínicos e laboratoriais desde o diagnóstico até um período médio de 5,5 anos de acompanhamento. Pacientes com doenças endócrinas concomitantes, como diabetes tipo 1 e hipotireoidismo, foram excluídos para evitar viés nos resultados.
Os principais resultados foram os seguintes:
-

Deficiências nutricionais no momento do diagnóstico
No momento do diagnóstico, foram observadas altas taxas de deficiências nutricionais e metabólicas, reforçando a necessidade de um rastreamento abrangente em todos os pacientes recém-diagnosticados. Os exames laboratoriais anormais mais frequentes foram:
- Ferritina baixa em 64,3% dos pacientes;
- Vitamina D deficiente em 33,6%;
- Deficiência de zinco em 29,9%;
- Anemia (hemoglobina baixa) em 29,2%;
- Deficiência de folato em 14,7%;
- Elevação de transaminases (AST e ALT) em 12,7% e 5,3%, respectivamente;
- Elevação do TSH em apenas 0,7% dos casos.
A ferritina baixa e a anemia foram os achados mais comuns, sugerindo que a má absorção de ferro e outros micronutrientes pode ser um dos primeiros sinais laboratoriais da doença celíaca em crianças.
-
Emergência de novas deficiências durante o acompanhamento
Apesar da melhora clínica com a dieta isenta de glúten, o estudo identificou que novas deficiências surgem ao longo do tempo. Entre os achados mais relevantes:
- Anemia desenvolvida após o diagnóstico em 14,8% dos pacientes;
- Recorrência da anemia em 36,8% daqueles cuja anemia havia sido corrigida;
- Deficiência de folato emergindo em 29,4% dos pacientes após uma média de 3,9 anos;
- Elevação do TSH foi observada em 5% dos pacientes após uma média de 2,2 anos do diagnóstico;
- Elevação de transaminases reapareceu em 5,1% dos casos.
Além disso, os pacientes diagnosticados na adolescência (12-18 anos) apresentaram intervalos mais curtos para a recorrência da anemia e deficiência de folato. Isso sugere uma maior necessidade nutricional durante o crescimento acelerado dessa fase ou uma possível menor adesão à dieta isenta de glúten, ponto que merece muita atenção nessa população.
-
Importância da adesão à dieta isenta de glúten
O estudo revelou que a adesão à DIG foi reportada como “boa” em 82,7% dos pacientes, com normalização da sorologia (anticorpos anti-transglutaminase) em 83,4%. No entanto, mesmo entre os pacientes com boa adesão, algumas deficiências nutricionais ainda foram observadas, sugerindo que a alimentação sem glúten pode ser inadequada em termos de ingestão de ferro, folato e zinco.
-
Implicações para o Acompanhamento Laboratorial
Com base nesses achados, os autores recomendam um acompanhamento laboratorial contínuo que vá além da sorologia para DC. Além da monitorização dos anticorpos anti-transglutaminase, os seguintes exames devem ser realizados regularmente:
- Hemoglobina e ferritina: para detecção precoce de anemia e deficiência de ferro;
- Folate e vitamina D: essenciais para o metabolismo ósseo e a função celular;
- Zinco: devido à sua importância na imunidade e no crescimento;
- Enzimas hepáticas (AST e ALT): para avaliar alterações hepáticas;
- TSH: devido à associação com doenças autoimunes da tireoide.
Saiba mais: Como monitorar os portadores de doença celíaca?
Conclusão
O estudo reforça que o acompanhamento laboratorial de longo prazo é essencial para pacientes pediátricos com doença celíaca, pois muitas deficiências nutricionais podem persistir ou surgir mesmo em pacientes com boa adesão à dieta isenta de glúten. A anemia e a deficiência de ferro continuam sendo os achados mais comuns, tanto no diagnóstico quanto durante o acompanhamento, destacando a importância do monitoramento contínuo.
Mensagem prática
Embora a atual diretriz da ESPGHAN (Sociedade Europeia de Gastroenterologia Pediátrica, Hepatologia e Nutrição) recomende exames laboratoriais apenas no diagnóstico e em casos específicos, os achados deste estudo indicam que um monitoramento periódico da hemoglobina, ferritina, folato, vitamina D, zinco, função hepática e tireoidiana deve ser incorporado à rotina de acompanhamento desses pacientes.
A implementação de protocolos de monitoramento mais rigorosos pode contribuir significativamente para a prevenção de complicações, otimização do crescimento e desenvolvimento na infância e adolescência, além de melhorar a qualidade de vida a longo prazo.
Autoria

Jôbert Neves
Médico do Departamento de Pediatria e Puericultura da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo (ISCMSP), Pediatria e Gastroenterologia Pediátrica pela ISCMSP, Título de Especialista em Gastroenterologia Pediátrica pela Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP). Médico formado pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Coordenador Young LASPGHAN do grupo de trabalho de probióticos e microbiota da Sociedade Latino-Americana de Gastroenterologia, Hepatologia e Nutrição Pediátrica (LASPGHAN).
Como você avalia este conteúdo?
Sua opinião ajudará outros médicos a encontrar conteúdos mais relevantes.