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Gastroenterologia14 março 2024

Como monitorar os portadores de doença celíaca?

Os sintomas atribuíveis à doença celíaca tendem a melhorar em algumas poucas semanas de instituição da DLG.
Por Leandro Lima
A doença celíaca (DCe) é uma condição imunológica engatilhada pelo consumo de glúten entre indivíduos geneticamente predispostos. Embora os seus critérios diagnósticos estejam bem estabelecidos, há carência de evidências para guiar o seu monitoramento. Dessa forma, foi publicado, em março/2024, o documento intitulado “Guidelines for best practices in monitoring established coeliac disease in adult patients”, cujos principais aspectos abordaremos aqui.    A introdução da dieta livre de glúten (DLG) é o marco temporal a partir do qual uma agenda é traçada, esperando-se, de forma sequencial:  
  1. Resolução dos sintomas (poucas semanas); 
  2. Normalização sorológica (meses); 
  3. Normalização endoscópica e histológica (anos); 
  4. Prevenção das comorbidades (anos). 
Veja também: Tratamento padrão versus Octreotide em sangramento relacionado à angiodisplasia

A aderência à DLG  

A intervenção dietética é o principal alicerce terapêutico no manejo da doença celíaca. Dessa forma, o primeiro passo é recomendar o adequado seguimento nutricional, preferencialmente realizado por profissionais experientes. Os nutricionistas são capazes de surpreender fontes de glúten em até metade dos casos de atrofia vilositária persistente, sendo recomendada a aplicação de questionários específicos, como o escore Biagi e o Coeliac Dietary Adherence Test (CDAT).   

Sintomas  

Os sintomas atribuíveis à doença celíaca tendem a melhorar em algumas poucas semanas de instituição da DLG. Com a finalidade de permitir uma análise seriada mais objetiva, recomenda-se o emprego de ferramentas específicas, como o Celiac Symptom Index.  

Sorologia  

A avaliação sorológica rotineira deve ser realizada com a antitransglutaminase tecidual IgA (anti-TG2 IgA). Os valores persistentemente positivos, com ausência de queda expressiva em 6 a 12 meses, são sugestivos de má adesão dietética ou contaminação cruzada. Entretanto, a normalização não é garantia de ausência de exposição persistente ao glúten.   Os outros anticorpos, como o antiendomísio IgA (EMA IgA) e a antigliadina deaminada IgA, podem ser utilizados de forma semelhante, destacando-se a maior especificidade do primeiro.    Na deficiência seletiva de IgA, que acomete 3% dos celíacos, deve-se solicitar a anti-TG2 IgG, embora tenha utilidade limitada no monitoramento, com falha de normalização em aproximadamente 80% dos casos.   

Histologia 

As biópsias de controle não são rotineiramente recomendadas, uma vez que as alterações histológicas são heterogêneas ao longo do duodeno, não respondem de maneira uniforme à DLG e a remissão completa ocorre em apenas um terço dos casos.    Por outro lado, alguns poucos estudos identificam uma relação entre o status da mucosa duodenal ao seguimento e o prognóstico quanto à síndrome de má absorção, risco de linfoma e mortalidade, com persistência do achatamento da mucosa se associando a risco aumentado de malignidades e fraturas de quadril.   

Quais seriam as indicações para biópsias de controle na doença celíaca? 

  • Sintomas persistentes 
  • Surgimento de sinais de alerta adicionais ou deficiências hematimétricas (anemia, diarreia, mal-absorção e emagrecimento) 
  • Sorologia positiva para anti-TG2 IgA; 
  • Escolha ou preferência do paciente.  
Uma vez optado pelas biópsias de controle, elas devem ser realizadas 12 a 24 meses após o início da DLG, com coleta de 4 biópsias individualizadas da 2ª porção duodenal e 2 do bulbo.    

Evidências da má absorção  

A avaliação seriada do hemograma, cinética do ferro, folato, vitamina B12 e 25-OH-vitamina D é recomendada. Espera-se, com a DLG, a restauração das vilosidades intestinais e a recuperação da sua capacidade absortiva. Como a recuperação da mucosa não é universal, a vigilância das deficiências nutricionais é encorajada.    Em relação aos micronutrientes, entre os quais zinco, cobre, selênio, magnésio e fósforo, os estudos são escassos e não encontraram diferenças significativas nos níveis séricos entre os celíacos e o grupo controle, não existindo a recomendação para a testagem desses eletrólitos entre os portadores de DCe.   Leia ainda: O papel dos biomarcadores no manejo da doença de Crohn

A doença metabólica  

Nas coortes de celíacos observa-se aumento do risco cardiovascular e maior incidência de doença hepática esteatótica relacionada ao metabolismo (MASLD), a despeito da menor prevalência de fatores de risco tradicionais. O risco de morte cardiovascular em um registro sueco foi de 3,5/1.000 pessoas-ano entre celíacos (HR 1,08 – IC 95%: 1,02 a 1,13, quando comparados à população normal).    Dessa forma, recomenda-se a mitigação de fatores de risco cardiovasculares, com a necessidade de avaliação seriada da glicose, lipidograma e enzimas hepáticas.   Em relação ao risco de osteopenia e fratura, recomenda-se a densitometria óssea ao diagnóstico, especialmente na presença de fatores de risco, como a má adesão dietética, menopausa e andropausa. A prevalência de osteoporose entre os celíacos varia entre 1,7 e 42%, com risco adicional de fratura que chega a 100% em relação à população geral.    Informações adicionais sobre o metabolismo ósseo podem ser obtidas por meio da dosagem de cálcio, vitamina D, fração óssea da fosfatase alcalina, PTH e telopeptídeo C.   

A doença celíaca refratária  

A ausência de resposta à DLG pode estar relacionada à transgressão dietética intencional ou ser mediada pela contaminação cruzada. Nesses casos duvidosos, podemos recorrer ao único parâmetro laboratorial de exposição ao glúten: a dosagem de peptídeo imunogênico do glúten (GIP).    O tempo máximo de detecção do GIP após a ingestão de glúten não ultrapassa 24 horas em amostras urinárias e 7 dias em amostras fecais. A sensibilidade para a detecção diária de 50 mg é de até 50% e, em dietas sem restrições (consumo de glúten > 5 g/dia), se aproxima dos 100%, principalmente ao se combinar amostras em dias e horários distintos.    A DCe refratária é definida pela persistência de sintomas e atrofia vilositária na ausência de outras causas e a despeito de DLG estrita por pelo menos seis meses, sendo subdividida em:   
DCe refratária Tipo I Tipo II 
LIE aberrantes  < 20% (citometria de fluxo)  < 50% (imunohistoquímica) > 20% (citometria de fluxo)  > 50% (imunohistoquímica) 
Interpretação Linfocitose aberrante sem critérios para linfoma. Linfoma intraepitelial de baixo grau 
Linfócitos intraepiteliais (LIE) aberrantes são CD3- e CD8- na superfície e CD3+ no meio intracelular.    Os casos de DCe refratária do tipo II devem ser manejados em centros de referência, pois trazem o risco de enteropatia associada ao linfoma de células T.   

Resumo das Recomendações 

Exames de sangue 

  1. Recomendamos a avaliação sorológica de rotina com níveis séricos de anti-TG2 IgA em pacientes com DCe em uma DLG; um valor positivo sugere baixa aderência à dieta ou contaminação por glúten, enquanto um valor negativo não pode confirmar aderência estrita ou falta de exposição ao glúten (recomendação forte, com nível de evidência muito baixo);  
  2. Não recomendamos a normalização da sorologia (anti-TG2 IgA) como marcador de recuperação da mucosa durante uma DLG de longo prazo devido à baixa sensibilidade para a identificação de atrofia vilositária persistente; 
  3. Recomendamos o seriamento do hemograma, ferro, folato e outros micronutrientes para a avaliação de má absorção e estado nutricional em pacientes com DCe em uma DLG (recomendação forte, com nível de evidência muito baixo). 

Avaliação da DLG 

  1. Recomendamos o uso de avaliação dietética para avaliar a aderência do paciente à DLG, (recomendação forte, com nível de evidência baixo); 
  2. Recomendamos uma avaliação dietética para monitorar o equilíbrio nutricional durante o acompanhamento da DLG, (recomendação fraca, com nível de evidência muito baixo); 
  3. Recomendamos o uso de um questionário padronizado de adesão relatado pelo paciente como um método razoável de avaliação de adesão quando um nutricionista especialista não está prontamente disponível (recomendação forte, com nível de evidência muito baixo);                                                         
  4. Recomendamos o uso de questionários de adesão como parte de uma avaliação clínica holística  (recomendação fraca, com nível de evidência muito baixo); 
  5. Recomendamos a determinação de GIPs na urina ou fezes em casos de DCe não responsiva quando a ingestão de glúten é suspeita (recomendação forte, com nível de evidência muito baixo);                                                                         
  6. Recomendamos o uso de GIPs para documentar a ingestão estimada de glúten (recomendação fraca, com nível de evidência muito baixo);  
  7. Recomendamos a promoção da aderência à DLG para melhorar a qualidade de vida, além de outros benefícios clínicos. No entanto, os médicos devem estar cientes de que a hipervigilância da DLG pode diminuir a qualidade de vida, e os pacientes também devem ser monitorados para isso (recomendação fraca, com nível de evidência muito baixo).                                                                                                                 

Endoscopia e histologia 

  1. Recomendamos contra o uso de uma estratégia de biópsia de seguimento rotineira em pacientes com DCe em uma DLG (recomendação forte, com nível de evidência muito baixo); 
  2. Recomendamos 12-24 meses a partir do início da DLG como um período de tempo razoável para repetir a biópsia duodenal em pacientes tratados com DCe, exceto em um curso clínico grave (recomendação fraca, com nível de evidência muito baixo);                                                         
  3. Recomendamos 4 biópsias orientadas na 2ª porção do duodeno, mais 2 biópsias orientadas no bulbo, como uma estratégia razoável para avaliar a cura da mucosa em pacientes com DCe em uma DLG;  
  4. Recomendamos o uso da análise de clonalidade do TCR (T cell receptor) para subtipar a DCe refratária. Se a imunotipagem por citometria de fluxo não estiver disponível, uma abordagem combinatória de análise de clonalidade do TCR e imunohistoquímica é recomendada (recomendação fraca, com nível de evidência muito baixo).;
  5. Recomendamos o uso de citometria de fluxo para imunotipar os LIE e subtipar DCe refratária (recomendação fraca, com nível de evidência muito baixo); 
  6. Recomendamos o uso de cápsula endoscópica e/ou enteroscopia no monitoramento da DCe em casos de suspeita de complicações (recomendação forte, com nível de evidência baixo). 

Outras investigações 

  • Não recomendamos o uso do teste respiratório de D-xilose ou teste de secreção urinária para avaliação de absorção em pacientes com DC (recomendação forte, com nível de evidência muito baixo)
Saiba mais: Número de pessoas com obesidade no mundo chega a 1 bilhão

Conclusão e mensagens práticas 

  • A doença celíaca acomete aproximadamente 1% da população mundial;  
  • Os critérios diagnósticos são bem estabelecidos na literatura, embora as recomendações quanto à monitorização sequencial sejam escassas;  
  • Geralmente, observa-se melhora gradual de seus parâmetros respeitando-se a seguinte ordem cronológica: resolução dos sintomas, normalização sorológica, normalização endoscópica, resolução histológica e amenização das comorbidades.  
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Referências bibliográficas

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