Manejo do acidente vascular cerebral isquêmico na emergência
O acidente vascular cerebral (AVC) é uma patologia significativa no perfil de atendimentos e internações dos diversos serviços de emergência do país. Demanda cuidados e fluxos de manejo bem estruturados, levando em conta não só o perfil de mortalidade, mas também as incapacidades permanentes.
Neste texto, o foco será no manejo prático no setor de emergência do acidente vascular cerebral isquêmico (AVCi), responsável pela maior parte dos casos de AVCs, levando em conta seu grande avanço e atualizações nos últimos anos.
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Abordagem inicial
O primeiro passo é o reconhecimento precoce do déficit neurológico quando o paciente chega ao atendimento, sendo um diagnóstico clínico pautado na história e exame físico.
Na avaliação conjunta dos sinais vitais, é imprescindível a aferição da glicemia capilar, uma vez que a hipoglicemia é um grande imitador de sintomas de AVC, devendo ser prontamente corrigida.
Deve ser questionado ativamente o tempo de início de sintomas, de forma que tendo déficit em tempo ≤ 4h30min, devemos seguir com o paciente diretamente para a tomografia.
O papel da tomografia nesse momento inicial é excluir eventos hemorrágicos, embora a análise radiológica já possa indicar sinais precoces de dano cerebral ou mesmo presença de hipodensidade significativa, indicando estabelecimento de áreas já infartadas. Até mesmo alterações compatíveis com acometimento de grandes vasos, como o sinal da artéria cerebral média hiperdensa, podem ser observadas.
Em paralelo, devem ser abordadas a presença de comorbidades e uso de medicações, já pensando em critérios de exclusão para o seguimento com trombólise química (tabela1). Assim como a avaliação de perfil pressórico, uma vez que o alvo de pressão arterial para início de trombólise são valores <185×110 mmHg.
Contraindicações para o uso da trombólise química |
AVC hemorrágico na TC ou hemorragia intracraniana prévia |
AVC isquêmico nos últimos três meses |
Trauma cranioencefálico grave ou cirurgia intracraniana/intraespinhal nos últimos três meses |
Forte suspeita de hemorragia subaracnóidea |
Forte suspeita de dissecção aórtica |
Forte suspeita de endocardite infecciosa |
Neoplasia intracraniana intra-axial |
Malignidade do trato gastrointestinal ou evento hemorrágico nos últimos 21 dias |
Plaquetometria < 100.00 |
INR > 1.7 // PTTa >40 segundos // PT > 15 segundos em coagulopatias/uso de Warfarina |
Uso de heparina nas últimas 48 horas, com PTTa alterado |
Uso de heparina de baixo peso molecular, em dose plena, nas últimas 24 horas. |
Uso de anticoagulantes orais diretos (DOACs) nas últimas 48 horas, exceto se a avaliação laboratorial da coagulação estiver normal. |
Pressão arterial ≥ 185 x 110 mmHg refratária ao tratamento |
Hipodensidade cerebral extensa na tomografia (> ⅓ da area do hemisfério cerebral acometido) |
Tabela 1
Observação:
→ Importante ressaltar que no perfil de uso de DOACs, os teste analisados são PTTa, INR; tempo de coagulação e de trombina; contagem de plaquetas; ecarina ou os testes de atividade direta do fator Xa. Na prática, por acessibilidade desses exames, é prudente usar como principal parâmetro o tempo de uso da última dose.
Lembrar que uso de AAS e clopidogrel não são contraindicações
→ No perfil das diferentes contraindicações relativas, o perfil clínico deve ser ponderado pelos riscos e benefícios, como por exemplo em uma gestante com AVCi incapacitante.
Sintomas não incapacitantes
Nesse contexto, é imprescindível utilizar a escala de acidente vascular cerebral do NIH, ferramenta capaz de facilitar a análise do comprometimento neurológico e normatizar a avaliação neurológica durante a trombólise.
Importante ressaltar que sintomas leves de acidente vascular cerebral não incapacitantes (pontuação NIHSS 0–5) não possuem recomendação de trombólise, pelo desbalanço entre risco e benefício, porém sempre contextualizar, como no caso de um paciente que pontua apenas com disartria e trabalha como locutor, perfil claramente impactante na vida diária.
Realização da trombólise
Sendo indicada a trombólise química e ausente contraindicações absolutas, deve ser iniciada a infusão da medicação naqueles que respeitam o intervalo ≤ 4h30min do início dos sintomas. Lembrando que essa conduta possui embasamento naqueles com mais de 18 anos de idade.
Atualmente no Brasil, apenas a Alteplase (rt-PA) possui liberação para uso nesse contexto, sendo orientada a dose de 0,9 mg/kg (máximo de 90 mg), com 10% do valor calculado em bolus de 1 minuto e o restante em infusão de 1 hora.
Vale ressaltar que o tempo de início da rt-PA é diretamente associado com os desfechos positivos da terapia, de forma que exames desnecessários e fluxos hospitalares ineficientes devem ser revisados, gerando menor perda de tempo e maior benefício ao paciente.
Quanto menor o tempo para início, melhores os desfechos positivos do tratamento, com alguns estudos indicando que os melhores desfechos ocorrem quando a trombólise é realizada em até 90 minutos do início de sintomas.
O período de infusão do trombolítico é sem dúvidas um desafio, uma vez que a vigilância clínica deve ser intensa e com foco principal nos seguintes tópicos:
- Perfil pressórico e avaliação neurológica:
A aferição da pressão arterial (PA) e avaliação neurológica com a escala NIHSS devem ser realizadas a cada 15 minutos nas primeiras 2 horas, 30 minutos nas próximas 6 horas e nas 16 horas seguintes, seguir com avaliação horária.
Lembrando que para iniciar a infusão a PA deve ter valor<185×110 mmHg, e durante a infusão, assim como nas primeiras 24 horas do trombolítico, deve ser mantida em valores <180/105 mmHg.
- Sinais de alarme:
Os principais sinais de alarme nesse período são a piora neurológica com aumento de 4 pontos ou mais na escala NIHSS; cefaleia intensa; náuseas/vômitos; picos pressóricos e rebaixamento do nível de consciência, além de sangramentos diversos significativos.
A presença desses sinais indica a realização de tomografia de crânio para afastar complicação hemorrágica cerebral, que caso presente, demanda a parada da trombólise, administração de criopreciptado/plasma fresco, com intenso apoio da equipe de neurologia e neurocirurgia.
OBS: É importante ressaltar que sangramentos nasais e gengivais podem ocorrer, porém não caracterizam critérios para parada da trombólise, exceto se presente gravidade clínica.
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Avaliação de trombectomia mecânica
Nesse intervalo, já tendo iniciado a trombólise e conforme perfil de estabilidade clínica, deve ser realizado estudo complementar de angiotomografia de pescoço e crânio, na busca de oclusões arteriais causadoras do evento isquêmico. Ponto essencial para definição de benefícios com terapia endovascular de trombectomia mecânica, que inclusive foi incluída no SUS em dezembro de 2023.
Essencial pontuar que o uso da trombectomia está avançando cada vez mais, com protocolos estruturados e ampliação de uso, levando juntamente uma mudança do paradigma puramente temporal do acidente vascular cerebral, para uma noção de janela de tecido cerebral viável. Sendo ela composta por análises de imagem que evidenciam a anatomia vascular com a viabilidade de circulações colaterais e a área de penumbra.
Atualmente ela possui maior evidência científica em oclusão de artérias proximais, com destaque para a carótida interna, ramo M1 da artéria cerebral média e artéria basilar. O ramo M2 tem sido incluído em protocolos recentes, além da evolução de estudos para a abordagem de outras artérias da circulação posterior, como as cerebrais posteriores.
Importante lembrar que ainda não existem evidências robustas que permitam a trombectomia mecânica de forma isolada, exceto se contraindicações para a trombólise química.
Na indicação do procedimento, além da idade ≥18 anos e segmento arterial acometido, o paciente não deve ter incapacidade significativa pré-AVC (escala de Rankin modificada ≤ 1) e os seguintes tópicos devem ser observados:
- NIHSS:
A pontuação deve ser ≥ 6 para seguimento da trombectomia. É um tópico que também pode sofrer mudanças, uma vez que estudos têm avaliado o benefício em pontuações menores.
- Delta T:
O tempo mais presente nos protocolos para realização do procedimento é de até 6 horas do início de sintomas. Porém, diversos estudos atuais avaliam os benefícios de janelas estendidas, principalmente com tempos de 16 e 24 horas.
Nesse contexto, ganha destaque a avaliação de viabilidade tecidual, com análises de imagem multimodais na anatomia vascular com estudo de colaterais e também quantificação do core isquêmico.
Destaque para o estudo brasileiro RESILIENT-EXTEND, com indicação de trombectomia mecânica em até 24 horas, contando apenas com uso de tomografia e angiotomografia de crânio.
- ASPECTS:
Outro tópico importante é a pontuação do ASPECTS, escala radiológica na tomografia, que avalia os territórios vascularizados pela artéria cerebral média.
A presença de valores ≥ 6 é o corte mais utilizado na indicação do procedimento.
Seguimento após a trombólise
No seguimento do paciente em esquema de trombólise, vale a pena pontuar alguns cuidados essenciais durante e após a trombólise, citados a seguir.
Resumo de cuidados durante e após a trombólise |
Evitar e corrigir hipoglicemia e hiperglicemia |
Adiar procedimentos invasivos como cateter venoso central e cateterização arterial, assim como sondagem vesical e nasogástrica |
Evitar e tratar febre. Vale ressaltar que a indução de hipotermia não é um consenso na literatura |
Não administrar agentes antiplaquetários e anticoagulantes antes das primeiras 24 horas da trombólise |
Compressão pneumática na prevenção de trombose venosa antes das primeiras 24 horas da trombólise |
Tabela 2
A vigilância clínica é intensiva, principalmente nas primeiras 24 horas, de preferência em um leito de terapia intensiva. De forma que ao término desse intervalo de tempo uma nova imagem de crânio deve ser realizada, sendo que na maioria das vezes é uma tomografia de crânio.
Na ausência de sangramentos, deve ser iniciada a antiagregação plaquetária, profilaxia de trombose venosa e início de procedimento de reabilitação, com apoio das equipes de fonoaudiologia e fisioterapia. O uso precoce de estatina de alta potência é recomendado desde o início do quadro, apenas com atenção na viabilidade de ingesta oral.
Outro ponto fundamental é a busca etiológica do acidente vascular cerebral, baseada não só no perfil clínico do paciente, mas também em exames fundamentais, com destaque para os seguintes: Eletrocardiograma; holter; ecocardiograma; estudo de vasos sanguíneos cervicais e cerebrais (já pode ser avaliado na angiotomografia) e avaliação metabólica, principalmente perfil glicêmico e lipídico.
De acordo com a suspeita clínica e resultado dos exames iniciais, outros exames podem ser realizados, como busca de trombofilias e doenças autoimunes. Dessa forma, o paciente pode ter critérios de alta hospitalar com conduta terapêutica guiada e seguimento de reabilitação.
Situações especiais: wake-up stroke e janela estendida de trombólise
Não é incomum a chegada de paciente que despertaram com sintomas de acidente vascular cerebral ou não consigam definir o início dos próprios sintomas, de forma que foram vistos sem sintomas a mais de 4,5 horas.
Esse contexto é desafiador e demanda agilidade da mesma forma, uma vez que, contando até 4,5 horas do tempo que foram vistos/reconhecidos os sintomas neurológicos, podemos avaliar procedimentos terapêuticos como a trombólise química ou mecânica.
O exame complementar central na discussão de um paradigma de janela tecidual é a ressonância magnética.
Protocolos bem estabelecidos são usados para constatar um mismatch nas sequências difusão e FLAIR, o que na prática significa que existe um centro isquêmico que já foi isquemiado de forma irreversível, porém uma área significativa está em penumbra isquêmica e pode ser recuperada com a terapia de reperfusão. De forma geral, o centro isquêmico deve ser menor que um terço da área de tecido irrigada pela artéria cerebral média.
Algumas nuances existem nos critérios de avaliação desses casos, sendo fundamental o apoio de um neurologista.
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Conclusão e mensagem prática
O AVC é um grave problema de saúde pública, com impacto significativo em risco de morbimortalidade, tendo manejo terapêutico delicado e bastante atrelado com eficiência organizacional do sistema de saúde.
Essencial possuir grande atenção da gestão hospitalar para seu fluxo de manejo, pensando em estratégias de otimização de tempo e suporte multiprofissional. De forma que estratégias práticas possibilitem equilíbrio harmonioso entre a equipe médica e de enfermagem com o suporte de radiologia, farmácia e outros setores essenciais para o cuidado integral do paciente.
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