A doença de Huntington (DH) é um distúrbio neurodegenerativo de herança autossômica dominante causada pela expansão no número de repetições CAG no gene HTT que codifica a proteína huntingtina. Trata-se de doença com curso progressivo cujas manifestações clínicas englobam alterações cognitivas, neuropsiquiátricas e motoras.
O número de repetições CAG está inversamente relacionado à idade de início dos sintomas neurológicos e também à taxa de progressão dos sintomas após o início das manifestações clínicas. No entanto, fatores ambientais, incluindo medicamentos, também influenciam a idade de início e a progressão da DH.
De acordo com estudos prévios, indivíduos com DH exibem disfunção autonômica caracterizada por aumento do tônus simpático, sendo que tais mudanças podem surgir precocemente e serem acompanhadas por redução da conectividade funcional da rede autonômica central. Nesse contexto, um alvo terapêutico potencial cogitado foi o sistema nervoso autonômico na redução da progressão da DH. Em dezembro de 2024, a JAMA Neurology publica estudo observacional e longitudinal, liderado por grupo da Universidade de Iowa, com proposta de investigar o impacto do uso de betabloqueadores na progressão dos sintomas neurológicos da doença de Huntington.
Métodos
Estudo observacional, longitudinal, multicêntrico, que avaliou o impacto do uso de betabloqueadores em pacientes com doença de Huntington pré-manifesto (preHD) e pacientes com doença de Huntington com sintomas motores iniciais (mmHD) comparado àqueles que não utilizam essa medicação.
O recrutamento dos pacientes ocorreu a partir da plataforma global Enroll-HD, abrangendo mais de 150 centros de pesquisa. Nessa plataforma, há coleta de dados de todos os participantes considerando uso prévio e atual de medicações em uso regular. Foram incluídos indivíduos ≥ 18 anos com preHD e mmHD e repetições CAG entre 36 e 55 (não foi realizada inclusão de pacientes acima de 55 repetições para evitar participantes com história de DH de início juvenil). Pacientes com preHD apresentavam escore total motor (UHDRS TMS) ≤ 10, enquanto os com mmHD tinham escore de independência funcional ≥ 90%.
Os participantes foram classificados como usuários de betabloqueadores se utilizavam essa classe de medicamentos por pelo menos um ano antes da última visita ou do diagnóstico motor. O desfecho clínico para avaliar a progressão clínica de pacientes com mmHD usuários de betabloqueadores comparado a não usuários foi a partir de 3 parâmetros: (1) UHDRS TMS; (2) Escore de capacidade funcional total (TFC) e (3) Teste de Dígitos e Símbolos (SDMT).
Resultados
Entre os 4.683 pacientes elegíveis com preHD, 174 eram usuários de betabloqueadores que foram emparelhados (1:1) a não usuários dessas drogas. Nessa amostra, a idade média de usuários dessas drogas foi de 46,4 anos versus 48,1 anos entre os não usuários. A expansão de repetições CAG média entre usuários de betabloqueadores foi de 41,1 comparado a 40,9 dos não usuários. O betabloqueador mais utilizado foi propranolol (n=59), seguido por metoprolol (n=56), bisoprolol (n=36), sendo hipertensão a indicação mais prevalente (n=78; 44,8%). Na avaliação do desfecho do estudo, os participantes usuários de betabloqueadores apresentaram redução significativa anual de quase metade do risco de diagnóstico motor comparado aos não usuários (HR 0,57, IC 95% 0,46-0,94, p = 0,02).
Entre os 3.024 participantes elegíveis com mmHD, 149 eram qualificados como usuários de betabloqueadores na qual foram emparelhados (1:1) com não usuários dessas drogas. As características sociodemográficas dessa amostra consistiram em idade média de 58,9 anos entre usuários de betabloqueadores comparado a 59,4 anos dos não usuários, em expansão de repetições CAG média de 42 entre os usuários dessas drogas versus 41,9 dos não usuários. O betabloqueador mais utilizado foi metoprolol (n=52) seguido por bisoprolol (n=37), propranolol (n=24), sendo novamente hipertensão a indicação mais prevalente (n=86, 57,7% da amostra).
O tempo de follow-up médio dos participantes foi de 4,15 entre o grupo usuário de betabloqueador comparado ao de 5,19 anos dos não usuários. Considerando os 3 parâmetros analisados para avaliar progressão de sintomas motores no estudo, a taxa de mudança anual média de TMS entre usuários de betabloqueadores foi de 2,62 pontos-ano comparado a 3,07 pontos-ano dos não usuários (diferença média de -0,45; IC 95% -0,85 a -0,06; Q = 0,025). A partir do parâmetro de funcionalidade, a taxa de declínio anula médio no TFC foi de -0,55 pontos/ano entre usuários de betabloqueadores comparado a -0,65 pontos/ano dos não usuários (diferença média de -0,10; IC 95% 0,02 a -0,18; Q = 0,025). Já a taxa de declínio anual médio no SDMT foi de -1,47 pontos/ano entre usuários de betabloqueadores comparado a -1,8 pontos/ano dos não usuários (diferença média de -0,33; IC 95% 0,10 a -0,56; Q = 0,017).
Análises post hoc foram realizadas com intuito de explorar dados complementares dos efeitos dos betabloqueadores na amostra estudada. Embora o uso de betabloqueadores tenha influenciado na redução de sintomas motores de DH, o uso de IECAs ou BRAs não apresentou impacto significativo na redução do risco de diagnóstico motor nem na taxa de progressão de sintomas. Ao analisar se os betabloqueadores poderiam influenciar nos resultados diante de uma melhora indireta de ansiedade, a análise post-hoc não observou diferenças significativas nos escores de ansiedade entre usuários de betabloqueadores e não usuários em ambos os grupos (preHD e mmHD).
Comentários: betabloqueador e doença de Huntington
Os resultados sugerem que o uso de betabloqueadores está associado à redução do risco de sintomas motores em preHD e à progressão mais lenta de sintomas em mmHD. Uma possibilidade dos efeitos do betabloqueador na doença de Huntington pode ter relação com bloqueio da sinalização de norepinefrina ainda que o mecanismo exato seja indefinido. Essa hipótese é baseada nos diferentes achados avaliados no estudo entre usuários de betabloqueadores ao comparar com usuários de IECA/BRA na análise post hoc do estudo. Afinal, todas essas classes impactam o sistema nervoso autônomo ao reduzir o tônus simpatomimético; contudo, os betabloqueadores o fazem através do bloqueio no receptor de noradrenalina. Na publicação, os autores hipotetizam sobre a transmissão noradrenérgica desempenhar algum papel na doença apesar de ser necessário estudos futuros para confirmar tal hipótese.
Um outro ponto discutido entre os autores diante dos resultados foi sobre o potencial efeito sintomático de betabloqueadores na amostra, visto que essa classe pode amenizar sintomas como ansiedade e, por sua vez, impactar funcionalidade, sintomas motores e qualidade de vida. Ainda assim, na análise post hoc do estudo, os participantes com preHD e mmHD não apresentaram melhoras significativas de sintomas ansiosos entre usuários e não usuários dessa classe de drogas.
O estudo apresenta limitações. A principal delas reside no desenho do estudo ser observacional, o que impede conclusões de causa-efeito. Além disso, não é possível determinar os potenciais mecanismos que os betabloqueadores exercem no efeito na doença de Huntington. O estudo também não avaliou os efeitos relacionados às doses dessas drogas.
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Mensagem final
Betabloqueadores mostraram-se promissores na DH nesse estudo longitudinal, reduzindo o risco de diagnóstico motor e a taxa de progressão de sintomas. Estudos futuros, principalmente ensaios clínicos randomizados, são necessários para esclarecer os mecanismos envolvidos e confirmar esses achados em cenários mais amplos.
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