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Neurologia10 dezembro 2025

Epilepsia focal farmacorresistente: como evoluem as crises ao longo do tempo? 

Estudo buscou determinar se a frequência de crises epilépticas em pacientes com epilepsia refratária ao tratamento melhora com o tempo
Por Danielle Calil

A epilepsia afeta aproximadamente 50 milhões de pessoas em todo o mundo, com cerca de 5 milhões de novos casos diagnosticados anualmente. A epilepsia focal, por sua vez, é a forma mais comum de epilepsia em adultos, caracterizada por crises originadas em regiões localizadas do córtex cerebral 

Em um terço dos casos, há a epilepsia farmacorresistente, considerada quando o paciente persiste as crises epilépticas a despeito do uso de pelo menos dois medicamentos anti-crise (MACs) em dose otimizada, prescritas de forma adequada e com boa tolerabilidade.  

Nesse contexto, avanços ocorreram no tratamento de epilepsia: crescimento no número de novos MACs, com mecanismos de ação diversos, além do desenvolvimento de dispositivos de neuromodulação (incluindo estimulação cerebral profunda – DBS, estimulador do nervo vago – VNS e neuroestimulação responsiva – RNS). Ainda que essas terapias apresentem novas estratégias terapêuticas, não há uma mudança na proporção de pacientes com epilepsia farmacorresistente. 

Estudos abertos de extensão de longo prazo — tanto de medicamentos quanto de dispositivos, e que não possuem grupos-controle — relatam melhora ao longo do tempo, frequentemente sugerindo efeitos modificadores da doença. Ainda assim, não há dados que respondam se a epilepsia farmacorresistente apresenta melhora ou piora ao longo do tempo. Diante disso, a JAMA Neurology publica, neste ano, estudo que se propõe a explorar a resposta para esse questionamento.  

Métodos 

Human Epilepsy Project 2 (HEP2) trata-se de estudo prospectivo, observacional, multicêntrico e transversal dos EUA, projetado para identificar respostas terapêuticas em pacientes com epilepsia focal farmacorresistente, que apresentavam crises epilépticas frequentes e eram semelhantes aos participantes de ensaios clínicos randomizados. 

Os participantes foram acompanhados por 18 a 36 meses, fornecendo dados sobre frequência de crises (histórica e diária), uso de medicamentos, tratamentos com dispositivos e cirúrgicos, comorbidades, qualidade de vida, eventos adversos e uso de serviços de saúde.  

O estudo incluiu 146 participantes, com idades entre 16 e 65 anos, portadores de epilepsia focal farmacorresistente (EFF), recrutados em 10 centros clínicos nos Estados Unidos. Esses participantes tinham diagnóstico confirmado de epilepsia focal, falha em quatro tentativas de tratamento com MACs sendo pelo menos duas devido à falta de controle das crises, apresentavam no mínimo duas crises focais por mês e estavam recebendo pelo menos um MAC no momento da inclusão. Ainda que a definição formal de EFF exija falha de apenas dois MACs, o critério de quatro foi adotado para aproximar o perfil da população com EFF incluída em ensaios clínicos de fármacos e dispositivos. 

Durante o estudo, foram utilizados diários eletrônicos diários, checagens mensais com o coordenador, visitas periódicas (a cada 6 meses, totalizando 3 visitas) e revisão de prontuários médicos para coletar dados sobre crises e medicamentos. Os dados sobre crises epilépticas incluíam número, tipo, data, hora e ocorrência de clusters de crises. Informações sobre dispositivos e cirurgias foram coletadas no momento da inclusão e durante as checagens mensais. 

O desfecho primário foi a tendência na frequência de crises, avaliada pela taxa de “período livre de crises epilépticas” e pela redução na frequência de crises ao longo do tempo. As respostas ao tratamento com medicamentos e dispositivos foram avaliadas rastreando as mudanças nos MACs e nos parâmetros dos dispositivos. 

Resultados 

O estudo recrutou 146 participantes, com idade média de 40 (±12) anos, sendo 57,5% mulheres. A idade média no momento do diagnóstico de epilepsia foi de 19,8 (±13,6) anos. Entre 126 participantes analisados, 86 (68,3%) apresentaram redução na frequência de crises na segunda metade do estudo, em comparação com a primeira metade. 

A análise longitudinal dos 126 participantes demonstrou uma redução estatisticamente significativa na frequência de crises ao longo do acompanhamento, em todos os períodos avaliados. No primeiro ano de seguimento, observou-se queda acentuada na taxa média de crises (β = −0,79; valor p = 0,007). Entre 12 e 24 meses, foi observada uma tendência de melhora mais modesta (β = −0,29; valor p < 0,001), com tendência de estabilização após dois anos (β = −0,36; valor p < 0,001). Esses achados indicam que, mesmo em uma população com epilepsia focal farmacorresistente — caracterizada por falha terapêutica a múltiplas medicações — houve uma redução progressiva e sustentada da frequência de crises, sugerindo benefício clínico cumulativo ao longo do tempo. 

O maior período “livre de crises epilépticas” observado foi de 15 meses, relatado por 1 participante. Entre 128 participantes, 15 (11,7%) apresentaram liberdade de crises por 3 meses ou mais, 9 (7,0%) mantiveram liberdade por mais de 6 meses e 4 (3,1%) permaneceram sem crises por 12 meses ou mais. 

Leia também: Crises epilépticas agudas pós-AVC: quais casos indicam maior risco de epilepsia? 

Todos os 146 participantes forneceram dados prospectivos sobre MACs. Durante o estudo, 80 participantes (55%) tiveram adição de um novo MAC. Entre os 17 participantes que atingiram liberdade de crises por pelo menos 3 meses, 14 (82,4%) tiveram alguma modificação medicamentosa (adição, retirada ou ajuste de dose) até 3 meses antes ou 1 mês após atingir a liberdade de crises. Entre os participantes que apresentaram redução na frequência de crises mas sem atingir a liberdade de crises em 3 meses, 37 (53,5%) tiveram um MAC adicionado durante o estudo. No total, 54 participantes (67,5%) que receberam um novo MAC apresentaram redução na frequência de crises, incluindo aqueles que atingiram liberdade de crises. 

Dos 146 participantes, 35 possuíam dispositivos implantados, sendo que 14 receberam o dispositivo durante o estudo. Na coorte total: 6 participantes (4,1%) tinham estimulação cerebral profunda (DBS), 11 (7,5%) possuíam neuroestimulação responsiva (RNS) e 22 (15,1%) tinham estimulação do nervo vago (VNS). A frequência basal de crises entre os participantes que receberam o implante durante o estudo foi de 14,2 crises por mês. Apenas 1 participante com dispositivo implantado alcançou liberdade de crises por pelo menos 3 meses.  

Epilepsia focal farmacorresistente: como evoluem as crises ao longo do tempo? 

Discussão: epilepsia focal farmacorresistente

O estudo HEP2 fornece novos insights sobre a tendência das crises ao longo do tempo em pacientes com epilepsia focal farmacorresistente. Foi observado que cerca de 70% dos participantes apresentaram redução da frequência de crises, sendo que 17 (13,3%) alcançaram pelo menos 3 meses de liberdade de crises, 10 (7,8%) mantiveram liberdade por pelo menos 6 meses, e 4 (3,1%) por 12 meses ou mais. Inclusive, os achados dessa publicação estão em consonância com outros estudos quanto à conclusão geral de que pacientes com epilepsia farmacorresistente continuam a alcançar liberdade de crises em uma taxa modesta, porém sustentada, ao longo do tempo. 

Durante o estudo, mais da metade dos participantes teve um novo medicamento anti-crise adicionado, e, entre esses, dois terços apresentaram redução da frequência de crises, embora apenas 6 participantes tenham alcançado liberdade de crises em 3 meses após a introdução do novo fármaco. Esses resultados sugerem que, embora a adição de novos MACs tenha baixa probabilidade de promover liberdade total de crises em nesses pacientes, ela ainda contribui para uma redução clinicamente relevante na frequência de crises. Entre os participantes com dispositivos de neuromodulação, observou-se que os dispositivos contribuíram para reduções prospectivas de crises, embora, no conjunto, a trajetória evolutiva das crises tenha sido semelhante à daqueles sem dispositivos. 

Saiba mais: Epilepsia pós-AVC em jovens: risco e escores validados

Um ponto forte do estudo é o acompanhamento prospectivo e intensivo, aliado à inclusão de participantes que se assemelham aos pacientes com alta frequência de crises incluídos em ensaios clínicos randomizados de medicamentos e dispositivos. Entretanto, limitações devem ser consideradas: o estudo foi conduzido em grandes centros acadêmicos, nos quais as decisões terapêuticas podem variar entre os locais ou diferir do manejo em contextos comunitários de epilepsia.  

Mensagem Prática 

O estudo HEP2 corrobora evidências de que a epilepsia focal farmacorresistente pode melhorar ao longo do tempo. Embora a adição de ASMs tenha baixa probabilidade de alcançar liberdade completa de crises, ela contribui para a redução da frequência de crises na coorte como um todo. Dispositivos de neuromodulação (DBS, RNS e VNS) não modificaram significativamente a trajetória das crises quando comparados aos participantes sem dispositivos. Apesar de terapias medicamentosas e por dispositivos poderem melhorar os desfechos individuais, a melhora observada em toda a coorte não pôde ser atribuída a uma única intervenção isolada, mas possivelmente reflete o efeito cumulativo de um manejo clínico contínuo e multidimensional.

Autoria

Foto de Danielle Calil

Danielle Calil

Médica formada pela Universidade Federal Fluminense em 2016. ⦁ Neurologista pela Universidade Federal do Rio de Janeiro em 2020. ⦁ Fellow em Anormalidades do Movimento e Neurologia Cognitiva pelo Hospital das Clínicas da UFMG em 2021. ⦁ Atualmente, compõe o corpo clínico como neurologista de clínicas e hospitais em Belo Horizonte como o Centro de Especialidades Médicas da Prefeitura de Belo Horizonte, Hospital Materdei Santo Agostinho e Hospital Vila da Serra.

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Referências bibliográficas

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