Hepatopatias na doença falciforme: atualize seus conhecimentos
O termo doença falciforme é utilizado de maneira abrangente, a englobar todas as patologias onde está presente a mutação da hemoglobina S em pelo menos uma cadeia beta. Uma mutação pontual na cadeia beta com a substituição de valina por ácido glutâmico na posição 6 leva à formação da Hemoglobina S (α2/βS2). Se a mutação afeta apenas uma cadeia β-globina e a outra é normal, o paciente é dito portador do traço falciforme, um estado de portador relativamente benigno que não apresenta as características fenotípicas clássicas da doença falciforme (DF).
O sistema hepatobiliar é um dos órgãos intra-abdominais mais comumente afetados na DF, e o envolvimento hepático é observado em 10% a 40% dos casos de crise falcêmica. Clinicamente, o diagnóstico e o manejo adequado das manifestações hepatobiliares da DF impõe desafios ao médico assistente, pois podem se apresentar de diversas formas ao longo de um espectro que vai desde condições relativamente benignas, como a lama biliar ou colecistolitíase, até condições letais, como insuficiência hepática aguda. O envolvimento hepatobiliar na DF pode ser dividido em manifestações agudas, que ocorrem durante crises vaso-oclusivas, e manifestações crônicas que persistem e podem progredir mesmo em períodos livres de crises. A hepatopatia falciforme é outro termo abrangente definido como disfunção hepática e hiperbilirrubinemia devido ao processo de falcização intra-hepática que ocorre durante as crises, levando a isquemia, sequestro e colestase. Enquanto o dano agudo recorrente pode eventualmente evoluir para doença hepática crônica mais grave, o dano hepático progressivo lento também pode, independentemente, levar ao desenvolvimento de doença hepática crônica na ausência de manifestações agudas recorrentes.
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Manifestações agudas
Crise de falcização intra-hepática aguda
A crise de falcização intra-hepática aguda, marcada pela vaso-oclusão de sinusóides hepáticos, tem sido relatada em cerca de 10% dos pacientes. Clinicamente ela se apresenta de forma semelhante à colecistite aguda, com início abrupto de febre, dor abdominal no quadrante superior direito e icterícia. A Hepatomegalia dolorosa, frequentemente observada, é um dado semiótico que ajuda na diferenciação da colecistite. Quando optado pela realização de biópsia hepática, se observa à histologia agregados de células falciformes nos espaços sinusoidais. As transaminases – alanina aminotransferase (ALT) e aspartato aminotransferase (AST) – geralmente estão elevadas de 1 a 3 vezes em relação ao normal. A bilirrubina sérica está elevada, com predominância da fração conjugada (hiperbilirrubinemia direta), mas geralmente abaixo de 15 mg/dL. As anormalidades bioquímicas geralmente se resolvem dentro de 3 a 14 dias. O tratamento geralmente é de suporte, com hidratação e oxigenação semelhantes à crise vaso-oclusiva aguda.
Sequestro hepático
Esta entidade é observada com menor frequência e tem perfil de acometimento agudo. Os pacientes geralmente apresentam início abrupto de dor intensa no quadrante superior direito, hepatomegalia rapidamente progressiva e anemia aguda grave, por vezes levando a instabilidade hemodinâmica e choque. Geralmente ocorre uma queda aguda no hematócrito, que coincide com a hepatomegalia aguda. A queda no hematócrito também está associada a uma reticulocitose. As anormalidades bioquímicas geralmente incluem hiperbilirrubinemia significativa, que pode chegar a 24 mg/dL às custas de direta. A mensuração da fosfatase alcalina também pode estar elevada, atingindo níveis séricos de até 650 UI/L. Normalmente não observamos alteração nos níveis das transaminases séricas. O tratamento é suportivo. A transfusão sanguínea simples ou transfusão de troca (eritrocitaférese ou exsanguíneo transfusão) são indicadas para redução nos níveis de hemoglobina S. Essa condição costuma se resolver dentro de 3 a 4 dias com as medidas adequadas e pode ser seguida por um aumento agudo no hematócrito, indicando que nem todos os eritrócitos retidos foram hemolisados. Se um aumento rápido no hematócrito for observado na fase de resolução, a flebotomia deve ser considerada devido ao aumento da mortalidade secundária à hiperviscosidade, que pode levar a episódios isquêmicos cerebrovasculares ou cardiovasculares.
Colestase intra-hepática aguda
A colestase intra-hepática aguda é a manifestação hepática aguda mais grave da doença falciforme e pode ser fatal. Felizmente, é muito rara. Inicialmente se apresenta como uma crise de falcização intra-hepática aguda grave associada a febre e leucocitose, mas pode progredir rapidamente para falência orgânica múltipla, incluindo insuficiência renal e insuficiência hepática aguda. Observa-se então encefalopatia e diátese hemorrágica. A fisiopatologia desta entidade fatal envolve a falcização difusa nos sinusóides hepáticos. Evidências bioquímicas mostram níveis significativamente elevados de bilirrubina às custas do componente conjugado. Essa hiperbilirrubinemia extrema ocorre devido à combinação de hemólise, causando hiperbilirrubinemia indireta e colestase intra-hepática, associada a um comprometimento renal, contribuindo para o componente conjugado.
Os níveis de transaminases acima de 1000 U/L são comumente observados. A fosfatase alcalina pode estar normal ou elevada. Disfunção hepática com alteração do perfil de coagulação, manifestada por aumento do tempo de protrombina (TP), tempo parcial de tromboplastina (TTP) e razão internacional normalizada (INR), assim como hipofibrinogenemia, também são observadas. Medidas de suporte rigorosas, transfusão de troca e correção da coagulopatia com plasma fresco congelado (PFC) são as principais medidas terapêuticas. Esta entidade apresenta mortalidade extremamente elevada.
A deficiência de zinco tem sido sugerida como um fator importante quando a falência hepática é observada em pacientes com DF, sem achados histológicos significativos em biópsia.
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Manifestações crônicas
Hepatites virais
Pacientes com DF têm uma prevalência maior de hepatite viral aguda e crônica devido à exposição a fatores de risco como múltiplas transfusões. Alguns estudos demonstraram que elevações persistentes e assintomáticas de ALT/AST na ausência de crise falciforme estão comumente associadas à hepatite crônica em biópsia hepática. Pacientes com hepatite viral aguda apresentam-se de maneira semelhante à população geral, com mal-estar, icterícia e dor abdominal com hepatomegalia dolorosa. Pacientes com hepatite viral crônica geralmente são assintomáticos, com transaminases persistentemente elevadas descobertas incidentalmente. Semelhante aos pacientes sem doença falciforme, a hepatite viral aguda em pacientes com DF está associada a níveis muito elevados de transaminases (geralmente 500-1000 UI/mL). Entretanto, em pacientes com DF, a bilirrubina sérica total foi observada como significativamente mais alta do que em pacientes sem DF, variando de 8 a 64 mg/dL, com média de 45 mg/dL. As recomendações de tratamento para hepatite viral seguem geralmente as diretrizes da AASLD aplicáveis à população em geral.
Sobrecarga de ferro pós-transfusional
A hemosiderose secundária à sobrecarga de ferro por transfusões sanguíneas recorrentes não é incomum na DF e pode levar à cirrose. Inicialmente, pacientes com moderada sobrecarga de ferro podem apresentar testes bioquímicos hepáticos anormais (principalmente hepatocelulares, com elevação de transaminases) sem outros sintomas clínicos sugestivos de doença hepática. No entanto, à medida que a doença avança, os pacientes apresentam estigmas de doença hepática crônica, como ascite, sangramento gastrointestinal, hepatoesplenomegalia e trombocitopenia. Deve-se estar atento às manifestações cardíacas e endócrinas da sobrecarga de ferro nestes pacientes.
O acúmulo maciço de ferro pode levar a fibrose periportal e pericelular, podendo progredir para fibrose difusa e, eventualmente, cirrose. O padrão-ouro para avaliar os depósitos de ferro no fígado na ausência de cirrose é a Concentração Hepática de Ferro (HIC), determinada por biópsia do órgão e espectrofotometria de absorção atômica. A HIC normal varia entre 0,4 e 2,2 mg/g de peso seco hepático. A ferritina sérica pode ser usada como marcador substituto na anemia falciforme com transfusões sanguíneas repetidas para fornecer uma estimativa indireta das reservas corporais de ferro (fora das crises falcêmicas). Um nível de ferritina < 1500 ng/mL foi correlacionado com baixo volume de transfusão e baixo conteúdo de ferro hepático medido (HIC), enquanto uma ferritina > 3000 ng/mL foi consistentemente preditiva de HIC > 10 mg/g. A ressonância magnética (RM) utilizando Ferriscan (susceptometria biomagnética hepática), quando disponível, é preferida para estimar o conteúdo de ferro no fígado em pacientes que recebem múltiplas transfusões sanguíneas. A biópsia hepática é reservada para casos em que a aparência na RM não é consistente com o histórico de transfusão ou a suspeita de sobrecarga de ferro permanece alta apesar de estudo de RM negativo.
A quelação de ferro com deferoxamina intravenosa ou subcutânea é a terapia de primeira linha. Recomendações sugerem o uso de quelação para manter a ferritina sérica < 1500 ng/mL e HIC < 7 mg/g.
Calculose biliar
A colelitíase é relativamente comum em pacientes com DF homozigótica, com uma incidência de 26%-58%. Colelitíase: assim como na população geral, a maioria dos pacientes com cálculos biliares é assintomática. Dor abdominal intermitente relacionada à ingestão de alimentos gordurosos pode ser mencionada na história clínica. Colecistite aguda: Os sintomas habituais são dor abdominal, náuseas, vômitos, febre e/ou icterícia. Coledocolitíase: A incidência de coledocolitíase (CDL), tanto assintomática quanto sintomática, na DF pode variar de 19% a 26%, o que é comparável à incidência encontrada em pacientes com cálculos biliares de colesterol. O diagnóstico de CDL pode ser estabelecido com base em ultrassom (US), mas frequentemente imagens de seção transversal como tomografia computadorizada (TC) e/ou ressonância magnética (RM) do abdome são necessárias.
A colecistectomia é o procedimento cirúrgico mais comum em pacientes com DF. Deve ser considerada em pacientes com cálculos biliares sintomáticos e quando há dificuldade em distinguir da crise hepática da doença falciforme.
Colangiopatia falciforme
A colangiopatia falciforme é uma forma de colangiopatia isquêmica que pode ser encontrada em pacientes com DF. Embora a hiperbilirrubinemia possa ser multifatorial nesses pacientes, níveis elevados de bilirrubina sérica com achados anormais na imagem biliar devem sugerir uma possível avaliação para colangiopatia falciforme. A biópsia frequentemente é desnecessária e, quando realizada, geralmente mostra colestase. Nos estágios iniciais, a maioria dos pacientes apresenta icterícia colestática. Causas comuns de obstrução biliar, como cálculos e massas, devem ser excluídas antes de atribuir essas alterações à colangiopatia. Pacientes assintomáticos, mas que têm ductos biliares dilatados, devem ser acompanhados de perto, pois apresentam alto risco de desenvolver cálculos biliares.
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