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Hematologia19 junho 2024

Como investigar a neutropenia?

A neutropenia caracteriza-se pela redução do número absoluto de neutrófilos circulantes no sangue periférico.
Por Felipe Mesquita

Profissional de saúde avaliando amostra de sangue de indivíduo com neutropenia

Introdução 

A avaliação de alterações no hemograma é rotina no consultório de qualquer hematologista. As citopenias envolvendo a série branca, particularmente, costumam levantar maiores preocupações quanto à possibilidade de doenças onco-hematológicas.

Neste texto iremos revisar como devemos proceder com a investigação da neutropenia no ambiente ambulatorial. Os neutrófilos são unidades celulares da linhagem mielóide, pertencentes ao grupo dos granulócitos, e possuem meia-vida sanguínea baixa, com apenas 2 a 3% do total em circulação. A meia-vida tecidual varia de 2 a 5 dias e a lise dessas células ocorre no sistema retículo-endotelial. Vamos abordar principalmente os defeitos quantitativos dos neutrófilos.

Os defeitos qualitativos são muito mais raros na prática clínica e devido às limitações propedêuticas, o diagnóstico se baseia na observação do quadro clínico e parâmetros laboratoriais, sendo às vezes impossível diferenciá-los dos quadros quantitativos. 

Veja também: Meu paciente apresenta eosinofilia, o que devo fazer?

Conceito 

A neutropenia caracteriza-se pela redução do número absoluto de neutrófilos circulantes no sangue periférico. Podemos classificá-la com relação à sua gravidade, e quanto mais intensa, mais predisponente à quadros infecciosos graves. Pode ser causada por doenças hereditárias, porém são, em sua maioria, por causas adquiridas. 

Na avaliação de uma neutropenia, diversos fatores devem ser considerados além da intensidade do déficit, como a idade do paciente, velocidade de instalação e a duração do quadro, a associação de outras citopenias observadas no sangue periférico (anemia e plaquetopenia) e condições clínicas do paciente (febre e infecções recorrentes, linfonodomegalias, hepatoesplenomegalia etc.).

Quanto mais abrupta for a instalação da neutropenia, maior o potencial de gravidade. Neutropenias benignas em geral apresentam evoluções arrastadas e sem repercussão clínica, com contagem de outros fagócitos como os monócitos dentro da normalidade. Pacientes com neutropenias leves raramente apresentam consequências clínicas dessa neutropenia. 

Os valores de referência podem variar conforme a população estudada, sendo mais baixo em afrodescendentes. Na população brasileira, devido à miscigenação, isso perde um pouco o valor e devemos ter cuidado na interpretação.  

Tabela 1 – Classificação da Neutropenia 

Leve 1000 – 1500/uL 
Moderada 500 – 1000/uL 
Severa < 500/uL 

Fatores clínicos a serem observados  

Dados importantes da anamnese são: a idade do paciente à apresentação, etnia, histórico infeccioso recente (abscesso anal, aftas, faringites de repetição), presença de sintomas gerais (febre, perda de peso, etc), doenças reumatológicas, comorbidades outras, uso de medicações (aquelas em uso ou suspensas nos últimos seis meses), história familiar, histórico de hemogramas prévios para comparação e exame físico (aftas, adenomegalias, hepatoesplenomegalia, pesquisa de anormalidades congênitas).

Os dados do hemograma são particularmente úteis na elaboração da hipótese diagnóstica. Outras citopenias associadas, presença de macrocitose (VCM > 100fL), presença de reticulocitopenia, presença de linfopenia e monocitopenia sugerem doenças medulares primárias.   

Investigação laboratorial inicial sugerida  

Na abordagem diagnóstica inicial, optamos pela solicitação de:  

  • Desidrogenase lática (LDH ou DHL) 
  • Reticulócitos  
  • VHS/PCR (marcador inflamatório) 
  • FAN, Fator Reumatoide 
  • TSH 
  • HbsAg, Anti-Hbs, Anti-Hbc total e IgM, Anti-HCV, Anti-HIV, Anti-CMV, HHV-6, Sarampo, Parvovírus, dengue 
  • Dosagem de Vit. B12 e folato 
  • Dosagem de Imunoglobulinas 
  • Exames de imagem a depender da suspeita clínica

A investigação laboratorial, anamnese e exame físico visam responder às seguintes questões clínicas: A neutropenia é de evolução benigna e consiste somente em achado de exame laboratorial? A neutropenia é efeito adverso de alguma droga em uso? Está associada à administração de quimioterapia ou alguma imunossupressão específica? Ela é parte de doença autoimune, infecciosa ou hereditária? Quais eventos infecciosos? Qual a frequência? Existe algum padrão? Outros sintomas associados?  

Saiba mais: Como diagnosticar e fechar prognóstico da leucemia linfocítica crônica e do SLL?

Sinais de alarme  

Devemos atentar para os quadros que se apresentem com um ou mais dos sinais de alarme a seguir:  

  • Sintomáticos/alteração de exame físico 
  • Neutrófilos < 500/mm³ 
  • Neutropenia aguda ou citopenias outras incluindo macrocitose 
  • Achado anormal de SP (corpos de Dohler, presença de precursores hematopoiéticos, hipogranulação da série granulocítica, hipossegmentação, hipersegmentação) 
  • Presença de células anômalas ou linfócitos grandes granulares (LGL) 
  • Alteração na morfologia das hemácias e plaquetas  

Tabela 2 – Causas de Neutropenia 

Etiologia Comentário 
Neutropenia étnica Como dito anteriormente, alguns grupos populacionais tendem a ter valores de neutrófilos reduzidos, porém sem qualquer impacto clínico. Instalação crônica/hereditária. NEUTROPENIA ISOLADA.  

Diversos grupos de pesquisadores demonstraram que a chamada neutropenia étnica está associada a um fenótipo específico do sistema eritrocitário, mais particularmente do sistema Duffy. Essas hemácias são negativas para os antígenos ‘Duffy A’ e ‘Duffy B’, sendo conhecidas pela sigla Fy(a-b-), e pela nomenclatura de Duffy null. Esse resultado de fenotipagem é mais sensível e específico do que a raça autodeclarada para o diagnóstico dessa condição. A genotipagem para FY*B-67T/C é mais dispendiosa e possui o mesmo objetivo. 

Neutropenia idiopática crônica Neutropenia prolongada podendo chegar a níveis severos, porém sem impactos clínicos. Ambiente medular normal com granulopoiese preservada. NEUTROPENIA ISOLADA. Pode ter origem FAMILIAR ou ADQUIRIDA. 
Neutropenia Cíclica Estes pacientes apresentam ciclos de neutropenia de aproximadamente 21 em 21 dias e em geral apresentam manifestações infecciosas como úlceras orais, febre, mal-estar e adenopatia cervical. Diagnóstico através de hemogramas seriados, 2x/semana, por 6 semanas. Se beneficiam do uso de Fator Estimulante de Colônias de Granulócitos (GCSF) – Filgrastim (Granulokine) – no nadir. 
Pseudoneutropenia Pacientes assintomáticos, com NEUTROPENIA ISOLADA no hemograma. Nesses casos há uma marginalização dos neutrófilos, que se concentram próximos à parede dos vasos. Para recrutá-los, exercício físico e drogas simpatomiméticas* (*sem indicação clara de rotina). 
Síndrome de Shwachman-Diamond Neutropenia associada a deficiências pancreáticas exócrinas e baixa estatura. Normalmente diagnosticado na INFÂNCIA. Apresenta manifestações clínicas relacionadas à neutropenia. Rara. Pode ser causa de infecções recorrentes. Trombocitopenia e Anemia podem ser severas. Tratamento com GCSF e Transplante de Medula Óssea (TMO). 
Síndrome de Kostmann Neutropenia severa congênita. Diagnosticada na INFÂNCIA. Rara. Pode ser causa de infecções recorrentes. Frequentemente associada à anemia, trombocitose e esplenomegalia. 
Síndrome de Chédiak-Higashi Doença autossômica recessiva rara. Albinismo oculocutâneo parcial + grânulos celulares gigantes (neutrófilos, monócitos e linfócitos) + neutropenia leve + infecções graves de repetição. 
Induzida por drogas Quimioterápicos, Antipsicóticos (clozapina), Metimazol (Tapazol) e Propiltiouracil, AINES (Indometacina), Dipirona, Beta-lactâmicos, Sulfonamidas, Cloranfenicol, Ticlopidina, Sulfassalazina, Deferiprone, Procainamida, Anticonvulsivantes, Clorpromazina, Cloroquina, Rituximab, Azatioprina … Lista extensa (sempre consultar). 
Associada a Falência Medular Neutropenias que têm como causa de base processos de falência medular a partir de alterações nas linhagens mielóides precursoras (ex. Aplasia de Medula, Mielodisplasia, Leucemias Agudas ou Crônicas) predispõe a infecções mais graves e geralmente vêm associadas a sintomas/sinais sistêmicos e outras citopenias no sangue periférico. PANCITOPENIAS (HB < 10g/dL + Neutrófilos < 1500/uL + Plaquetas < 100.000/uL) DEVEM SER ENCAMINHADAS COM URGÊNCIA AO HEMATOLOGISTA. 

Outra alteração hematológica primária classicamente associada à neutropenia é a leucemia por grandes linfócitos granulares, conhecida como LGL. Nesses casos, é comum observarmos uma linfocitose proeminente. Pode ser T-mediada (85%) ou NK (15%), com mediana de idade ao diagnóstico de 60 anos. A esplenomegalia está presente em 25-50% dos casos; 7-48% dos pacientes têm menos de 500 neutrófilos. O diagnóstico é dado por citometria de fluxo (T: CD3+/CD8+/CD57+ e/ou CD16+ // NK: CD3-, CD8+, CD16+ e/ou CD16+/CD56+). A mutação do STAT3 é encontrada em 1/3 dos pacientes com T-LGL e NK-LGL. 

Etilismo Crônico O paciente etilista crônico pode cursar com quadros de pancitopenia devido à mielotoxicidade do álcool, tendo seu quadro exacerbado na presença de uma infecção ou uso de outras drogas. 
Deficiência Nutricional Neutropenia geralmente consiste em um sinal precoce de anemia megaloblástica por deficiência de vitamina B12 e/ou folato. A deficiência de cobre está relacionada à cirurgia bariátrica e pode levar à neutropenia leve. 
Neutropenia Autoimune Do ponto de vista clínico é difícil distinguir entre essa causa e neutropenias idiopáticas benignas. Geralmente ANCA positivos e FAN negativos. Geralmente sem outras citopenias. Tratamento com corticoide é pouco eficaz. 
Doenças Autoimunes Aqui podemos destacar a síndrome de Felty na Artrite Reumatoide (neutropenia + esplenomegalia), Lúpus Eritematoso Sistêmico, Síndrome de Sjogren, Esclerose Sistêmica, Cirrose Biliar Primária e até mesmos quadros inflamatórios frustros sem diagnóstico específico. O diagnóstico recai sobre as causas de base. As neutropenias imune-relacionadas, podem estar associadas a neoplasias por infiltração ou paraneoplasia (linfomas, timoma, leucemias), hipogamaglobulinemias e reações medicamentosas. O diagnóstico dessas condições é um desafio e em geral são acompanhadas por hipergamaglobulinemia policlonal.  
Doenças Infecciosas Principais causas Infecciosas: sepse, infecção parasitária, viral (sendo essa a principal etiologia) e bacteriana. Nos casos de infecção viral, a alteração laboratorial acontece nos 3 a 7 dias iniciais, com neutropenia leve a moderada. Nos pacientes diagnosticados com HIV devemos nos lembrar da terapia antiretroviral altamente eficaz (HAART), deficiência vitamínica e hiperesplenismo. A neutropenia nos casos de leishmaniose visceral são associadas ao hiperesplenismo. 

Leia ainda: Evidências de tenecteplase como trombolítico para AVC

Uma urgência hematológica 

Atenção para uma urgência hematológica: a neutropenia febril. Pacientes neutropênicos que fazem febre, a princípio, devem ser encaminhados para internação hospitalar e antibioticoterapia de largo espectro, até que seja elucidada a causa da neutropenia. Infecções no paciente neutropênico devem ser buscadas nos mais diversos focos (oral, perianal, pulmonar, seios da face, intra-abdominal, cutâneo, articulações) e são mais frequentes nos pacientes com neutropenia grave. Se houver neutropenia grave, essa investigação deve ser hospitalar.

Esses pacientes fazem sinais flogísticos mais frustros e raramente apresentam formação de pus. A radiografia de tórax perde sensibilidade e deve ser substituída pela tomografia (em alta resolução se possível). O filgrastim deve ser usado somente em casos de neutropenia grave e infecção ameaçadora à vida (sinais de sepse). 

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Referências bibliográficas

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