Hipotermia acidental: como agir frente à perda de calor do paciente
Os seres humanos são homeotérmicos, ou seja, dotados de uma capacidade precisa de controle da temperatura corporal central, com variações fisiológicas diurnas que dificilmente transgridem o intervalo entre 36,5°C e 37,5°C.
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O mecanismo termorregulatório central é hipotalâmico, enquanto os periféricos envolvem a dilatação e constrição dos vasos sanguíneos, sudorese, geração de calor por meio de tremores e prática de atividade física e conservação de calor com medidas comportamentais, como o uso de agasalhos.
A hipotermia, seja ela terapêutica ou acidental, é definida por uma temperatura corporal central inferior a 35°C e se deve à transferência de calor para o ambiente por meio dos processos de condução, convecção, evaporação e radiação.
Grupos de risco aumentado para a hipotermia |
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IMC: Índice de massa corporal.
A hipotermia acidental pode ser classificada em primária, quando acomete indivíduos saudáveis expostos a temperaturas ambientais baixas, ou secundária, quando há prejuízo dos mecanismos de termorregulação, seja por doenças, síndromes tóxicas ou traumatismos.
A hipotermia gera repercussões multissistêmicas envolvendo o coração, cérebro, rins, sistema de coagulação e imunológico. Espera-se, nos casos moderados a graves, a redução da contratilidade cardíaca, desenvolvimento de arritmias e coagulopatia, com mortalidade de aproximadamente 30%.
Classificação da gravidade da hipotermia (European Resuscitation Council) | ||
Grau |
Achados clínicos |
Temperatura central |
I – Leve |
Consciente (ECG 15) e com tremores ativos. |
32 a 35°C. |
II – Moderada |
Prejuízo do nível de consciência (ECG 9 a 14). |
< 28 a 32°C. |
III – Grave |
Inconsciência (ECG < 9), mas com sinais vitais presentes. |
< 28°C. |
IV – Grave |
Aparentemente morto (ECG 3), com ausência de sinais vitais. |
< 24°C. |
ECG: Escala de coma de Glasgow.
O rebaixamento do nível de consciência na hipotermia nem sempre é atribuível exclusivamente a essa condição, devendo-se considerar no diagnóstico diferencial alterações do sistema nervoso central e exposição a drogas e toxinas.
A aferição adequada da temperatura corporal deve ser realizada com a maior proximidade possível dos órgãos vitais: cérebro e coração.
O termômetro ideal deveria agrupar as seguintes características: minimamente invasivo, prático, higiênico, acurado e com um pequeno intervalo de resposta às mudanças da temperatura central.
Infelizmente, nenhum dispositivo atende integralmente a essas exigências. Entretanto, os termômetros centrais não vasculares, como esofágico, urinário, retal e nasofaríngeo, bem como a temperatura epitimpânica, têm boa correlação com as medidas fornecidas por cateteres de artéria pulmonar.
O passo a passo da abordagem da hipotermia inclui:
- Prevenção de perda adicional de calor, com remoção do ambiente frio e rápida transferência ao hospital.
- Aquecimento passivo exclusivo está indicado na hipotermia leve (ou seja, pacientes alertas), por meio de isolamento térmico, oferta de alimentos e bebidas quentes e promoção da movimentação ativa.
- O aquecimento ativo é indicado na hipotermia moderada a grave. O paciente deve ser isolado com múltiplas camadas e mantido na posição horizontal. As roupas úmidas devem ser removidas em um ambiente protegido. Fontes de calor químicas ou elétricas devem ser acopladas ao tronco no tórax ou dorso, mas sem contato direto com a pele, para evitar queimaduras. Uma barreira de vapor deve ser provida em ambientes úmidos e com ventos. A autorização de movimentação ativa, como caminhar, só deve ser realizada após o consumo de calorias, permitindo que os tremores espontâneos transcorram por ao menos 30 minutos na posição horizontal.
Algumas das orientações acima mencionadas, como evitar a movimentação ativa precoce e a posição vertical na hipotermia moderada à grave, são justificadas pelo risco de uma complicação bem descrita: o colapso de resgate. Trata-se do colapso cardiocirculatório que se instala na remoção ou transferência do paciente e que se associa à duplicação da mortalidade.
As etiologias hipotetizadas incluem a hipovolemia (tendência à diurese induzida pelo frio e pela imersão, sobreposta à vasodilatação progressiva durante o reaquecimento), arritmias e perfusão de regiões do corpo resfriadas promovidas pela movimentação ativa precoce.
Medidas suportivas gerais |
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Uma das complicações mais temidas da hipotermia acidental é a parada cardiorrespiratória (PCR), cujo risco está aumentado diante de temperatura corporal central inferior a 30°C a 32°C, presença de arritmias ventriculares ou pressão arterial sistólica inferior a 90 mmHg.
A aferição dos dados vitais é particularmente desafiadora na hipotermia, e eles podem ser pesquisados por até 60 segundos antes do início das manobras de ressuscitação cardiopulmonar (RCP), em comparação aos 10 segundos destinados à PCR normotérmica. A atividade cardíaca organizada e débito cardíaco significativo, em algumas situações, podem ser detectados por eletrocardiograma, ETCO2 e ultrassonografia à beira do leito (POCUS).
Vale ressaltar que as chances de sobrevivência à PCR hipotérmica, com bons desfechos neurológicos, superam às da PCR normotérmica, motivo pelo qual deve-se realizar uma abordagem sistematizada e perseverante.
Achados ominosos clássicos na PCR normotérmica, como midríase fixa bilateral e rigidez muscular (rigor mortis), não devem ser interpretados como irreversibilidade.
Entretanto, as manobras de RCP devem ser evitadas na presença de sinais claros de morte irreversível (livedo mortis), na presença de perigo ou exaustão dos socorristas ou soterramento por avalanche com duração superior a 60 minutos com assistolia e obstrução completa da via aérea.
Uma vez identificada a PCR, as manobras de RCP devem ser iniciadas, com primazia da modalidade contínua, facilitada pelos métodos mecânicos automatizados de compressão torácica. Na impossibilidade de prover RCP contínua, deve-se instituir a RCP intervalada, com interrupção das manobras por não mais do que 5 a 10 minutos, enquanto a temperatura corporal central estiver inferior a 30°C.
A fibrilação ventricular deve ser manejada com terapia elétrica, porém a sua persistência após 3 choques deve desencadear tentativas adicionais de desfibrilação somente quando a temperatura corporal central superar os 30°C, uma marca de segurança que também se presta à administração de amiodarona e a epinefrina.
Os critérios para transferência para centros com suporte de vida extracorpóreo incluem PCR, temperatura corporal central inferior a 30°C, pressão arterial sistólica inferior a 90 mmHg e presença de arritmias ventriculares.
A modalidade de reaquecimento mais eficaz na PCR hipotérmica é por oxigenação por membrana extracorpórea (ECMO) venoarterial. O procedimento se associa a maior taxa de sobrevida com desfechos neurológicos favoráveis, sendo as suas principais complicações a trombose, sangramento e infecções.
A taxa de reaquecimento deve ser entre 2 a 5°C/h. A ausência de recuperação da circulação espontânea (RCE) no momento em que for alcançada a temperatura corporal central alvo (37°C) deve levar à consideração de interrupção da ECMO. A constatação de morte encefálica é frequente nesse contexto.
Um escore prognóstico utilizado para avaliar as chances de sobrevivência na hipotermia é o HOPE (https://www.hypothermiascore.org), que leva em conta o sexo, idade, presença de asfixia (cabeça encoberta por água ou neve), duração da PCR, calemia e temperatura central.
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Conclusão e mensagens práticas
- A hipotermia pode ser classificada das seguintes maneiras: terapêutica vs. acidental; primária vs. secundária; leve, moderada ou grave.
- Os principais fatores de risco incluem os extremos de idade, IMC reduzido, uso de álcool, drogas e toxinas, internação em terapia intensiva sob sedo-analgesia e bloqueio neuromuscular e vítimas de acidentes e catástrofes ambientais.
- Na hipotermia leve indica-se exclusivamente o reaquecimento passivo.
- Na hipotermia moderada a grave deve-se promover o reaquecimento ativo, com cuidados para evitar o colapso de resgate.
- A presença de PCR, hipotensão arterial ou arritmias ventriculares devem ser gatilhos para a transferência para centros providos com suporte de vida extracorpóreo.
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