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Clínica Médica11 julho 2024

Abdome agudo: O raciocínio diagnóstico na era moderna

A modalidade de imagem primária para a elucidação do abdome agudo em adultos, por exceção das gestantes, tem sido a angioTC de abdome total.
Por Leandro Lima

A dor abdominal aguda corresponde uma em cada dez visitas aos departamentos de urgência, sendo que a maioria tem evolução benigna e autolimitada. Entretanto, alguns casos se enquadram no conceito de abdome agudo, em que a ausência de intervenção cirúrgica em tempo hábil pode resultar em elevada morbimortalidade.  

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As principais categorias de abdome agudo estão representadas na figura abaixo:

Categorias do abdome agudo

Na primeira abordagem da dor abdominal aguda, a topografia trás informações preciosas na busca etiológica: difusa e mal definida na isquemia mesentérica, obstruções intestinais, peritonite bacteriana e cetoacidose diabética; e localizada nas desordens gástricas (epigástrica), pancreáticas (andar superior do abdome com irradiação para o dorso), biliares (hipocôndrio direito com irradiação para a escápula ou ombro ipsilateral), esplênicas (hipocôndrio esquerdo com irradiação para o ombro ipsilateral – sinal de Ker), apendicular cecal (inicialmente periumbilical, com migração secundária para a fossa ilíaca direita no ponto de McBurney) ou diverticular colônica esquerda (fossa ilíaca esquerda).   

Em todos esses cenários, a avaliação cirúrgica, em caráter de urgência, se faz necessária, e o cirurgião geral é quem será o árbitro final da estratégia a ser traçada: conservadora ou cirúrgica. A disponibilidade de plantonistas de cirurgia geral, em tempo integral (24h, 7 dias por semana), muito provavelmente se atrela à redução da morbimortalidade do abdome agudo.    

Uma vez definida a indicação cirúrgica de emergência, tem-se estabelecido, entretanto, um fator de risco independente para complicações e mortalidade, de forma que os desfechos são sensíveis ao tempo do diagnóstico (tempo que o paciente leva para procurar a assistência + tempo gasto para a definição diagnóstica no serviço de saúde) e da própria intervenção cirúrgica.   

Há pouco mais de 100 anos, o cirurgião britânico Vincent Zachary Cope publicou o seu tratado: Early Diagnosis of the Acute Abdomen, com ênfase nos dados da entrevista médica e do exame físico, a exemplo da manobra do obturador, por ele descrita e conhecida também como teste de Cope.   

Naquela época, não se dispunha, como na atualidade, do vasto arsenal propedêutico imaginológico: radiografias amplamente disponíveis, ultrassonografia (USG), tomografia (TC) e ressonância magnética (RM). Contudo, nos dias de hoje, os desafios do abdome agudo persistem, expressos principalmente por erros diagnósticos recorrentes e atrasos nas intervenções cirúrgicas, que muitas vezes comprometem o prognóstico dos nossos pacientes.

Há pouco tempo uma experiência familiar marcante sobre o assunto nos acometeu: minha tia avó, na sétima década de vida, precisou buscar o pronto-atendimento em quatro ocasiões no intervalo de dez dias, até que tivesse firmado o diagnóstico de diverticulite aguda complicada por peritonite fecal, tendo tido, por sorte, a oportunidade da intervenção cirúrgica e sobrevivência.  

Discutiremos, na sequência, alguns pontos atuais de interesse sobre o abdome agudo, finalizando com uma análise do raciocínio diagnóstico sob a perspectiva da urgência e emergência.  

Mulher com abdome agudo levando as mãos à barriga

Analgesia no abdome agudo  

Os pacientes admitidos com suspeita de abdome agudo devem ser tratados com analgésicos, em doses moderadas, para o alívio sintomático, enquanto se prossegue com a investigação diagnóstica e a avaliação cirúrgica.   

A literatura médica é clara em demonstrar que não há motivos para negligenciar o manejo da dor abdominal, sob o argumento falacioso de mascarar os sintomas e atrasar, por si só, as intervenções específicas que se fizerem necessárias.   

Dessa forma, deve-se lançar mão do uso criterioso de opioides, como tramadol ou morfina, se preciso for, sem deixar de lado a propedêutica sequencial necessária, mantendo-se o compromisso de disponibilizar, no intervalo de tempo mais curto possível, a intervenção cirúrgica nos casos pertinentes.    

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Exames de imagem  

O médico emergencista moderno se acostumou a tomar as suas decisões com o amparo da tecnologia. Diferente do alicerce apontado por Code em 1921 (entrevista + exame físico), hoje há uma tendência de desvalorização do método clínico em relação aos exames de imagem.  

Nesse aspecto, lembramos que a realização e discussão da propedêutica imaginológica abdominal pode implicar em espera demasiada e atraso na tomada de condutas cirúrgicas, trazendo o risco de comprometimento do prognóstico.   

Estima-se que 1/5 de todas as TCs de abdome realizadas nos departamentos de emergência não tem indicação clara, trazendo aumento dos custos e da exposição à radiação ionizante. Até o presente momento, não há evidências de que o emprego rotineiro da TC de abdome nos casos de dor abdominal aguda se associa à melhora de desfechos, como tempo de internação, complicações hospitalares e mortalidade.   

Com as devidas ressalvas, no departamento de emergência a modalidade de imagem primária para a elucidação do abdome agudo em adultos, por exceção das gestantes, tem sido a angioTC de abdome total, com alto valor preditivo positivo para a elucidação de condições abdominais específicas, com potencial de reduzir a taxa de admissão hospitalar em até 1/4.   

A ausência de infusão do contraste, por sua vez, reduz a acurácia do método em quase 1/3, de forma que os receios relativos à nefrotoxicidade não devem ser superestimados nos cenários onde há clara indicação de administrá-lo.  

A ultrassonografia de abdome, a despeito de ser um método operador-dependente, está bem indicada na suspeita de afecções biliares, apendicite aguda e na investigação inicial da dor abdominal entre gestantes, quando as modalidades pélvica e transvaginal ganham destaque. A ultrassonografia à beira leito (POCUS), por sua vez, tem sido útil na identificação precoce de líquido livre na cavidade abdominal, colecistite aguda e aneurismas abdominais, por exemplo.  

Abdome agudo entre os idosos  

Nesse grupo de pacientes, a ideia é ser um pouco mais liberal na solicitação de TCs nos cenários de abdome agudo.  

Os argumentos são robustos e incluem a maior prevalência de patologias abdominais graves, sobreposição com transtornos cognitivos que tornam as queixas mais vagas, imprecisas e inespecíficas e redução da reserva funcional com menor tolerância aos atrasos na intervenção.    

O raciocínio clínico e os vieses no abdome agudo  

O processo de tomada de decisão pelos médicos emergencistas, diante de situações potencialmente fatais, em um ambiente com alta carga de estresse, favorece a ocorrência de erros.   

Os vieses mais significativos nesse cenário, e que devem estar no radar do médico assistente, são os de atribuição (estabelecimento de vínculo causal, nem sempre real, entre a sintomatologia e um resultado específico em um teste diagnóstico); confirmação (tendência a valorizar os achados que favorecem a hipótese inicial aventada, e a ignorar os que a rechaçam); e ancoragem (obstinação na primeira linha de raciocínio levantada, levando à desconsideração de hipóteses diagnósticas alternativas).

O processo do raciocínio clínico, dessa forma, deve passar etapas, sob uma abordagem sistemática, fugindo da mera intuição inerente ao sistema 1 (conforme a proposição do prêmio Nobel de economia, Daniel Kahneman, em Rápido e Devagar: Duas formas de pensar):  

  1. Reconhecimento de padrões, processo baseado na evocação de experiências prévias a partir de um novo cenário clínico apresentado; 
  2. Descartar os cenários mais dramáticos, minimizando erros potencialmente fatais na condução ao se esquecer de uma ou outra condição; 
  3. Método da exaustão, que se busca elencar o número máximo de possibilidades, refletindo o grau de incerteza existente sobre o diagnóstico; 
  4. Método dedutivo-hipotético ou de Sherlock Holmes, em que se realiza um raciocínio dedutivo com o objetivo de eliminar alguns diagnósticos levantados a partir do método de exaustão com base nas evidências disponíveis; 
  5. Emprego de heurísticas, um processo de aprendizado experimental em que as regras são desenvolvidas enquanto se realiza o raciocínio diagnóstico, que reflete na produção de atalhos mentais rápidos e eficazes para amparar a tomada de decisão;   
  6. Estratégia de tomada de decisão, um processo retrospectivo, com avaliação dos erros diagnósticos cometidos ao longo do percurso, com proposição de medidas de mitigação e prevenção dos mesmos percalços em eventos futuros. 

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Conclusão e mensagens práticas 

  • A maioria dos casos é benigna e autolimitada.  
  • Os casos de abdome agudo, caracterizados pelo risco de morbimortalidade na ausência de intervenção cirúrgica em tempo hábil, são divididos em inflamatórios, obstrutivos, isquêmicos, perfurativos e hemorrágicos.  
  • A analgesia moderada deve ser fornecida de forma rotineira aos casos de abdome agudo suspeito, desde que não atrase o processo diagnóstico e a intervenção cirúrgica nos casos pertinentes.  
  • O cirurgião geral é o árbitro final da estratégia a ser adotada: conservadora ou cirúrgica.  
  • O processo de tomada de decisão é especialmente difícil e sujeito a erros em condições potencialmente ameaçadoras à vida, em que o tempo é escasso, o nível de estresse elevado e os vieses abundantes.  
  • A sugestão para melhorar o raciocínio clínico em cenários de caos é a sistematização, com base nos processos sequenciais que se seguem: reconhecimento de padrões, descartar os cenários mais dramáticos, método da exaustão, método dedutivo-hipotético, emprego de heurísticas e análise retrospectiva das estratégias de tomada de decisão.  
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Referências bibliográficas

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