Recomendações do novo guideline europeu para hemorragia grave no trauma
O trauma é um importante problema de saúde pública, sendo responsável por cerca de 8% do total de mortes anualmente. Sangramentos graves e coagulopatia decorrentes do trauma estão entre os principais mecanismos envolvidos na falência múltipla de órgãos e morte, sendo, por isso, fundamental diagnosticar e tratar precoce e efetivamente essas condições.
Mais de 30% dos pacientes vítimas de trauma grave atendidos na emergência, apresentam hemorragia e coagulopatia na admissão, sendo a sistematização do manejo dessas condições uma ferramenta capaz de modificar positivamente o desfecho desses pacientes.
Por isso, objetivando o desenvolvimento de um protocolo atualizado e fundamentado no melhor nível de evidência disponível, foi publicado recentemente o novo guideline europeu para manejo de hemorragias graves e coagulopatia pós-trauma. A seguir revisaremos suas principais recomendações seguindo a cronologia de atendimento do paciente vítima de trauma grave (PVTG):
I) Abordagem no pré-hospitalar
Transporte
É recomendado que PVTG sejam transportados diretamente para um centro referência de trauma, porém deve-se considerar como prioritária otimizar a redução do tempo para intervenção e controle do sangramento, principalmente em pacientes instáveis hemodinamicamente.
Controle local de sangramento
Está indicada a compressão local de ferimentos abertos com hemorragias potencialmente letais, podendo também ser utilizado o torniquete no contexto pré-hospitalar para controle temporário de sangramentos graves em extremidades.
Ventilação
Deve-se proceder com intubação endotraqueal (sequência rápida) ou outras alternativas de via aérea avançada de forma precoce na presença dos seguintes achados: rebaixamento do nível de consciência (escala de coma de glasgow ≤ 8), hipoxemia ou hipoventilação, obstrução de via aérea.
É preferível realizar normoventilação nesses pacientes (baixo volume corrente: 6-8 mL/kg), estando a hiperventilação reservada como medida de resgate na presença de sinais de herniação cerebral. Também orienta-se evitar a hiperoxia, exceto na presença de exsanguinação iminente.
Uso de hemoderivados
Não há consenso em relação ao uso de hemoderivados no pré-hospitalar, devendo essa decisão ser individualizada ao contexto e recursos locais.
II) Diagnóstico e monitorização do sangramento
Avaliação inicial
A avaliação clínica inicial é fundamental para estratificar a gravidade da hemorragia. São informações relevantes nesse contexto, a localização anatômica e mecanismo do trauma, parâmetros fisiológicos do paciente e resposta inicial à reposição volêmica.
Ferramentas como o shock index (SI), razão entre a frequência cardíaca e a pressão arterial sistólica, e a pressão de pulso (PP) podem ser utilizados para graduar o choque hipovolêmico e a necessidade de hemoderivados.
Veja mais: Àcido tranexâmico no trauma: novas evidências a partir de metanálises – Portal Afya
Intervenção imediata
Em pacientes que apresentam foco hemorrágico claro ou naqueles com perda volêmica importante e choque hemorrágico com foco suspeito, está indicada intervenção imediata para controle do sangramento.
Investigação complementar
Em pacientes estáveis hemodinamicamente e que não apresentam foco hemorrágico claro, está indicada investigação complementar. Monitorização de sinais vitais, exames de imagem (ultrassom e tomografia computadorizada, TC) e laboratoriais (gasometria e coagulograma) fazem parte da investigação inicial.
Escolha do exame de imagem
Está indicada a ultrassonografia (USG) pré-hospitalar em traumas toracoabdominais para detecção de hemopneumotórax, hemopericárdio ou presença de líquido livre intra-abdominal, desde que não atrase a transferência ao centro de referência. Nesses pacientes, na avaliação inicial hospitalar, também está indicada a realização de USG point of care (POCUS), incluindo o protocolo FAST (Focused Assessment with Sonography in Trauma). Contudo, em pacientes estáveis, o exame de escolha para detecção da origem do foco hemorrágico segue sendo a TC contrastada.
Avaliação laboratorial do sangramento
Deve-se seriar HB e/ou hematócrito (HT) como parâmetro laboratorial para avaliação do sangramento, visto que seus valores iniciais podem ser normais, mascarando fases precoces da hemorragia. Mesmo sofrendo influência da reposição volêmica inicial, estudos demonstraram que o valor inicial de HT está mais relacionado à necessidade de transfusão quando comparado a outros parâmetros como frequência cardíaca e pressão arterial.
Lactato é um marcador de hipóxia celular, podendo ser utilizado para estimar a hipoperfusão tecidual e, consequentemente, a gravidade do sangramento. Em sua ausência, o base excess (BE) é uma alternativa viável.
Para avaliação de distúrbios de coagulação, pode-se utilizar parâmetros laboratoriais tradicionais como tempo de protrombina (TP), INR, fibrinogênio e contagem de plaquetas, que devem ser seriados. Se disponíveis, métodos viscoelásticos como tromboelastometria, podem ser utilizados.
III) Controle de oxigenação, fluídos e temperatura
Reposição de volume
Deve-se realizar reposição volêmica objetivando a meta de PAS:80-90 mmhg (PAD = 50-60 mmHg) até controle do sangramento na ausência de evidências de lesões cerebrais (hipotensão permissiva). Na presença de sinais de lesão cerebral, manter PAS ≥ 80 mmHg.
Utilizar preferencialmente um cristaloide, como NaCl 0,9%, na reposição inicial. Soluções hipotônicas, como o ringer lactato, devem ser evitadas em pacientes com TCE e colóides devem ser evitados como escolha inicial pelo efeito na hemostasia.
Uso de inotrópicos
Caso não seja atingida a meta de PAS com reposição de fluidos, pode-se adicionar infusão de noradrenalina ou dobutamina, se disfunção miocárdica.
Eritrócitos
Se indicado uso de hemoderivados, deve-se ter como meta hemoglobina de 7-9 g/L, priorizando valores otimizados em pacientes com lesão neurológica.
Temperatura
Deve-se aquecer a vítima precocemente, objetivando normotermia (36-37°C), visto que hipotermia tem sido associada a alterações na coagulação e outros efeitos que aumentam mortalidade.
IV) Controle do sangramento
A cirurgia de controle de danos (CCD) está indicada para paciente com choque hipovolêmico e sinais de sangramento ativo, coagulopatia e/ou lesão vascular e pancreática combinada. Deve-se também considerar CCD na presença de hipotermia, acidose e lesões em áreas anatômicas de difícil acesso. Na ausência desses fatores, deve-se considerar o reparo cirúrgico definitivo.
O Packing extraperitoneal pode ser usado na presença de sangramento ativo e impossibilidade de angioembolização. A utilização de agentes hemostáticos tópicos também pode ser associada na abordagem cirúrgica com sangramento moderado e injúria parenquimatosa.
O que levar para casa
O manejo sistematizado e efetivo do trauma com hemorragia impacta diretamente o prognóstico desses pacientes, reduzindo morbimortalidade. Além de seguir preceitos do ATLS, no paciente com sinais de choque hipovolêmico, objetiva-se a redução do tempo para transporte ao centro de referência, além da identificação precoce de sinais de choque e intervenção que abrange reposição volêmica, avaliação da necessidade de hemoderivados e/ou intervenção cirúrgica.
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