O debate sobre os efeitos das mudanças climáticas na saúde tem ganhado espaço significativo na literatura científica e nas políticas públicas. Diversos estudos, como o artigo de Jeremy J. Hess e Kristie L. Ebi, defendem a necessidade de incorporar evidências sobre os impactos das mudanças climáticas na prática médica, destacando riscos como aumento na morbidade e mortalidade associadas ao calor extremo, poluição do ar e proliferação de doenças infecciosas.
Pelos estudos da área, as projeções indicam que, até o final do século, a temperatura média global poderá aumentar até 4 °C acima dos níveis pré-industriais, resultando em mudanças significativas nos sistemas naturais e humanos.
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Mudança na temperatura a nível global e local
Contudo, ao analisar essas afirmações, é importante contextualizá-las e refletir sobre as escalas de tempo e espaço envolvidas. A própria história do monitoramento sistemático da temperatura global é relativamente recente: os registros mais confiáveis remontam a cerca de 200 anos. Nesse período, observou-se um aumento médio de aproximadamente 1 °C na temperatura global. Ainda que esse aumento possa realmente ser relevante do ponto de vista climático, ele se dilui quando comparado às variações naturais que ocorrem diariamente em ambientes urbanos.
Por exemplo, na cidade de São Paulo, é comum que a amplitude térmica — a diferença entre a temperatura mínima e máxima em um único dia — ultrapasse 10 °C. Essa observação convida a uma ponderação sobre como comunicar e interpretar o risco associado ao aumento gradual da temperatura média global. Para quem vivencia variações diárias muito superiores, pode parecer difícil compreender a magnitude e a importância de uma elevação média global da ordem de 1 °C ao longo de dois séculos.
Por outro lado, os efeitos locais de atividades humanas, como o desmatamento e a urbanização, são mais imediatamente perceptíveis e mensuráveis. O desmatamento, por exemplo, reduz a umidade do solo, eleva as temperaturas locais e piora a qualidade do ar, especialmente em regiões próximas às áreas desmatadas. Esses impactos ambientais têm repercussões diretas e observáveis sobre a saúde humana, como o aumento de doenças respiratórias, cardiovasculares e infecciosas.
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Assim, embora o conceito de “aquecimento global” envolva mudanças graduais e de longo prazo em todo o mundo, ele também se articula com alterações ambientais locais — as chamadas “micromudanças” — que possuem efeitos mais diretos e evidentes sobre a saúde das populações. O aumento da temperatura em áreas urbanas, por exemplo, é exacerbado pelo efeito de “ilhas de calor”, decorrente da impermeabilização do solo e da redução de áreas verdes.
Preparação do sistema de saúde e desafios metodológicos
Nesse sentido, de fato, há evidências robustas de que as mudanças climáticas influenciam determinantes de saúde e que eventos extremos, como ondas de calor, incêndios florestais e inundações, podem causar impactos significativos, sobretudo em populações vulneráveis. A estimativa da Organização Mundial da Saúde (OMS), que prevê 250 mil mortes adicionais por ano até 2030 em decorrência das mudanças climáticas — ainda que passível de revisão — reforça a necessidade de vigilância e preparação dos sistemas de saúde.
Entretanto, é igualmente importante reconhecer que há desafios metodológicos e conceituais na atribuição causal direta entre o aquecimento global e efeitos específicos sobre a saúde. O próprio artigo aponta que faltam ainda ferramentas diagnósticas adequadas, protocolos de tratamento específicos e métodos padronizados de vigilância para doenças relacionadas ao clima. Este é um campo emergente, que necessita de mais investimento em pesquisa, desenvolvimento de indicadores robustos e elaboração de estratégias adaptativas eficientes.
Precisamos entender como esses efeitos, principalmente em níveis micro, afetam a saúde e como nós, profissionais de saúde, podemos intervir para ajudar nossos pacientes e, mais ativamente, o próprio ambiente.
Ações de monitoramento
Ações como o monitoramento da qualidade do ar, o incentivo à arborização urbana, a gestão adequada de resíduos e a redução do desmatamento são medidas que podem trazer benefícios concretos e mensuráveis à saúde da população agora, independentemente das projeções climáticas globais.
Por fim, é importante evitar uma visão dicotômica sobre o tema. Não se trata de negar a existência ou a relevância das mudanças climáticas globais, nem de aceitar de forma acrítica todas as projeções e modelos existentes. A posição mais produtiva para nós, profissionais da saúde, é adotar uma postura equilibrada e fundamentada em evidências, reconhecendo tanto os limites quanto as potencialidades do nosso conhecimento científico atual.
Podemos cuidar do ambiente ao nosso redor, evitar o uso excessivo de recursos naturais em nossas casas e consultórios, ao mesmo tempo em que orientamos nossos pacientes e familiares sobre como lidar com as mudanças que já afetam nossas grandes cidades — e como viver melhor apesar delas — enquanto se aguardam avanços em políticas e ações em escala global.
Assim, os profissionais de saúde podem, e devem, manter-se informados sobre os possíveis efeitos das mudanças climáticas, especialmente no que tange à preparação para eventos extremos e ao fortalecimento da resiliência dos sistemas de saúde. Ao mesmo tempo, é fundamental que essa preparação esteja ancorada em ações locais concretas, que respondam às necessidades imediatas da população, e não apenas em cenários futuros e globais, cuja concretização depende de múltiplos fatores ainda em estudo.
Em suma, o diálogo entre as evidências científicas sobre mudanças climáticas e a prática médica requer uma abordagem cuidadosa, que valorize tanto o rigor metodológico quanto a sensibilidade para as realidades locais e as percepções sociais. Assim, será possível promover ações de saúde pública mais eficazes, responsáveis e sustentáveis.
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