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Carreira28 julho 2025

Caso clínico: o mistério da tosse que não cessa

Mulher, portadora de asma, sob terapia sazonal combinada a broncodilatador e corticoide inalatório. Apresenta tosse com secreção hialina e desconforto respiratório.

Na série especial “Histórias de Cuidado: Relacionamento médico-paciente”, compartilhamos relatos de médicos sobre casos que vivenciaram em sua rotina e como lidaram com cada situação de forma gentil e empática.

O objetivo é explorar a Medicina sob uma perspectiva mais subjetiva, revelando as nuances do cuidado com o paciente.

Boa leitura!

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Caso clínico

A moça adentra o consultório impelida pela tosse. Entre guinchos, pigarros e engasgos, ela descreve sua jornada até ali com angustiante eficiência. Vem tossindo há um mês e, para surpresa do médico, afirma que já esteve pior.

Análise do caso

Jovem professora de ensino fundamental, portadora de asma bem-controlada, sob terapia sazonal com combinação de broncodilatador de longa duração e corticoide inalatório. Há um mês iniciou quadro de tosse com secreção hialina abundante e desconforto respiratório.

Passou pelo pronto-atendimento sucessivas vezes, depois foi avaliada pelo otorrinolaringologista, pelo pneumologista e, enfim, pelo gastroenterologista. Foi submetida a radiografia de tórax, tomografia de tórax, espirometria, pesquisa de influenza e codiv-19, pesquisa de anticorpos IgE séricos específicos, sorologia para Pertussis e até endoscopia digestiva alta, como derradeira – para não dizer desesperada – cartada.

Entre uma série de achados inespecíficos, como frequentemente se vê quando se procede a uma profusão de exames complementares, um IgG fracamente positivo para coqueluche chamava atenção – outros exames para pesquisa de coqueluche não foram disponibilizados a tempo pela operadora do convênio -, de forma que em dado momento a paciente enfim foi medicada com azitromicina.

Não obstante, a tosse em sua teimosia motivava um novo plano terapêutico para cada avaliação médica: três ciclos de antibióticos, exaustiva corticoterapia por via inalatória e sistêmica, toda sorte de xaropes alegadamente antitussígenos, anti-histamínicos, antileucotrieno, opioide, inibidor da bomba de prótons e – ufa! – procinético gástrico.

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Angústia do paciente

O motivo do referenciamento foram os achados da endoscopia feita na semana anterior: esofagite erosiva grau A de Los Angeles e uma nada surpreendente monilíase esofágica, fora diagnosticada com “refluxo”. A jovem professora sentia-se atordoada, não pela tosse, sua maior angústia era não saber o que tinha.

– Primeiro era asma, depois alergia, depois gripe, começo de pneumonia, coqueluche… E agora refluxo?! O senhor me desculpe, mas eu me sinto como uma batata quente!

Ser médico é amigar-se com a dúvida, mas essa dúvida soa muito diferente aos ouvidos do paciente que procura respostas certeiras, sobretudo diante da profusão de recursos diagnósticos e terapêuticos que se tem atualmente. Parece absurdo – e não deixa de ser absurdo – estar tossindo há um mês, ser submetido a dúzias de exames e tratamentos, e ainda não compreender claramente o que se tem. A coisa fica ainda pior quando se analisa a quantidade de médicos que se envolveu no caso, cada qual com sua própria maneira de se expressar e agir.

Cedo ou tarde, a tosse que não passa chega ao gastroenterologista, que já assimilou alguns truques e tem uma ou outra coisa a dizer:

– Eu também estaria muito confuso e desconfiado, mas a tosse apronta dessas com a gente às vezes. Não consigo responder tudo que gostaria agora, mas darei meu melhor: primeiro, você não tem refluxo, nada aponta nesse sentido, essas alterações têm relação com seus tratamentos e não são a causa do problema em si. Segundo, provavelmente – e isso é o mais longe que posso chegar – provavelmente, você tosse por conta da coqueluche, que já foi tratada, sequer está sendo transmitida agora, mas existe um lastro de sintomas que precisa de tempo para se resolver. É fácil pedir paciência quando não sou eu quem está sofrendo, mas é disso que mais precisamos agora. Terceiro, vejo que você está quase se afogando em remédios, podemos agora começar a retirar alguns deles e experimentar o que funciona.

Entre um acesso de tosse e outro, a moça pareceu concordar. O inibidor da bomba de prótons foi desmamado; o procinético, o anti-histamínico, o antileucotrieno e todos os xaropes interrompidos, a nistatina mantida, o corticoide inalatório reduzido e o opioide prescrito sob demanda.

Ela pretendia voltar a lecionar em breve e programou um encaixe para a semana seguinte. No dia do retorno, no entanto, ela cancelou o agendamento e outro paciente foi posto em seu lugar, era seu namorado que tossia há uma semana.

Conclusão

Independente da causa, a tosse é aquela visitante inconveniente que teima em se demorar. Sintomas dessa natureza nos deixam demasiado propensos à prescrição desenfreada de exames complementares e tratamentos empíricos, negligenciando frequentemente uma dimensão semiológica fundamental: o tempo.

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Referências bibliográficas

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