Na série especial “Histórias de Cuidado: Relacionamento médico-paciente”, compartilhamos relatos de médicos sobre casos que vivenciaram em sua rotina e como lidaram com cada situação de forma gentil e empática.
O objetivo é explorar a Medicina sob uma perspectiva mais subjetiva, revelando as nuances do cuidado com o paciente.
Boa leitura!
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Caso clínico
– Senhor Moacir de Almeida!
O ancião se levanta com presteza, a filha, carregando um monte de sacolas, puxa-lhe o braço, caminham juntos até o consultório. O médico os cumprimenta e oferece novos assentos, a dupla se acomoda e organiza seus pertences. Começa mais um glorioso dia de ambulatório.
– Bom dia, seu Moacir! Qual o motivo da visita?
– Doutor, se não se importa, vou explicar para o senhor – intervém a filha. – Estamos muito preocupados com a saúde do pai, principalmente o fígado.
– Está bem. Consegue me especificar um pouco mais? Existe algo lhe incomodando, seu Moacir?
– Veja, doutor, o pai sempre foi de beber e já faz dois anos que a mãe nos deixou. E como ele ainda teima em morar sozinho, a gente decidiu fazer pelo menos uns exames pra ver se tava tudo bem. Daí… – revirou os olhos – deu no que deu, né. Cheio de problema no fígado. A gente ficou desesperado!
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Histórico
O patriarca permanecia impassível, ora observava o médico, ora fitava contemplativo o céu pela janela, nem uma palavra. Tratava-se de um senhor de 84 anos, morava só, bem próximo dos filhos, e vivia de sua modesta aposentadoria.
A família, sempre muito presente, auxiliava em alguns cuidados domésticos desde que se tornou viúvo, fora isso, tratava de seus próprios assuntos. Reunia-se regularmente com amigos no boteco mais próximo para conversar e tomar cachaça, mais especificamente, cerca de 20 a 25 doses de cachaça por semana, há 50 anos.
Do ponto de vista clínico, sem queixas álgicas, gastrointestinais ou cardiorrespiratórias, portador de hipertensão arterial sistêmica desde os 60 anos de idade, medicado com losartana e hidroclorotiazida, sem intervenções cirúrgicas ou internações prévias, histórico familiar irrelevante, ex-tabagista de carga irrisória, cessou aos 30 anos de idade, aproximadamente.
Tinha também uma discreta hipoacusia, provável perda induzida por ruído, recusou o uso de aparelho auditivo, sem prejuízo aparente nas interações sociais. Ao exame físico, notava-se um homem robusto, sem estigmas de hepatopatia crônica, eutrófico, IMC de 21, bom controle tensional, sem outras particularidades.
E, enfim, o motivo do desespero, os exames: ultrassonografia com esteatose hepática moderada; elevação de gamaGT, 50% acima do limite superior da normalidade; hipertrigliceridemia leve; contagem plaquetária normal, provas de função hepática normais, sorologias virais negativas.
– Pois então. Algo a dizer em sua defesa, senhor Moacir de Almeida?
– Isso, doutor! Fala pra ele, diga que o pai não pode ficar bebendo por aí. O senhor precisa ouvir mais a gente, pai. Precisa se cuidar mais!
– E agora, seu Moacir? Está preocupado? – o médico abre um sorriso cúmplice.
– Preocupado? Não, senhor – seu olhar se alumiou. – Já vivi tudo que tinha pra viver nessa vida, agora está nas mãos de Deus.
– Sabe que a senhora teria toda razão? Se estivéssemos tendo essa conversa há uns 30 anos atrás. Acontece que eu cheguei atrasado!
– Como assim, doutor?
– Ora, o seu Moacir vai muito bem e parece ter levado bastante a sério um obscuro ditado: doença não é para quem quer, é para quem pode! Veja, minha senhora, entendo perfeitamente sua preocupação, mas vamos nos exercitar aqui, imagine-se no lugar de seu pai. A senhora não acha que ele leva uma boa vida? Trabalhou bastante, cuidou de sua família, preservou um corpo forte e ainda tem algumas amizades.
– Mas essas amizades levam meu pai ao bar, doutor! E os exames? O senhor acha mesmo que tá tudo bem ter esses exames?
– Acho que tenho diante de mim um homem saudável em tudo que lhe interessa – o médico volta-se para o paciente outra vez – Seu Moacir, eu não tenho qualquer ordem para dar ao senhor. O que quer que ande fazendo, tem dado muito certo. Se me permite uma recomendação, seria bom se moderasse um pouco na cachaça. Evite embriagar-se e, se beber, não dirija! Agendamos o retorno para o próximo ano, que tal?
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Conclusão
O desafio de administrar os anseios familiares se torna mais e mais presente na medida em que a pessoa perde autonomia ou denota fragilidade. É importante atentar às demandas – tantas vezes justas – do núcleo familiar, mas isso não deve sobrepujar a individualidade do paciente, cuja saúde e bem-estar são a máxima finalidade da consulta médica.
A imposição leviana de restrições é receita certa para atribular o cotidiano, semear neuroses e minar a relação médico-paciente. Tantas vezes se aplica cegamente normas rígidas de conduta sem a devida contextualização. Dessa forma, o médico serve ao mesmo tempo como vítima e algoz das ondas intermináveis de terrorismo nutricional e comportamental tão típicas de nosso tempo.
As ditas orientações de estilo de vida requerem ponderação, são ocasião de alívio e esperança, tanto quanto qualquer ato médico deve ser em sua essência.
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