Na medicina, há um momento imprescindível que vai muito além dos exames laboratoriais ou das imagens de alta tecnologia: a conversa inicial entre médico e paciente. Esse encontro é a anamnese, palavra de origem grega (aná, trazer de volta, e mnesis, memória), que significa “recuperar a história do paciente”. Mais que um protocolo, é a primeira etapa do raciocínio clínico e o alicerce da relação médico-paciente.
Uma anamnese bem conduzida permite compreender o contexto de vida, os sintomas, o histórico familiar e até fatores emocionais que influenciam a saúde. Já uma anamnese mal feita pode comprometer diagnósticos e abalar a confiança do paciente, algo difícil de recuperar depois.
Não à toa, muitos estudantes e médicos em início de carreira relatam insegurança ao conduzir esse processo. Perguntas abertas, escuta ativa e a capacidade de interpretar respostas são desafios comuns, mas superáveis com prática, empatia e treino.
E mesmo em tempos de inteligência artificial e exames sofisticados, a anamnese continua sendo insubstituível: é ela que guia a investigação clínica e orienta decisões médicas.
O que é a anamnese?
A anamnese clínica é a coleta estruturada das informações fornecidas pelo paciente. É considerada a primeira e mais importante etapa da consulta médica para um bom raciocínio clínico.
Mais do que levantar dados objetivos, ela envolve escuta ativa, empatia e a capacidade de organizar informações de forma lógica.
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Importância da anamnese na prática médica
Estudos mostram que uma boa anamnese pode direcionar até 80% do diagnóstico clínico (Porto, 2019), antes mesmo de exames complementares. Ela também fortalece a confiança entre médico e paciente, melhora a adesão ao tratamento e contribui para consultas mais resolutivas.
Quais informações devem estar na ficha de anamnese?
A ficha de anamnese organiza os dados de forma padronizada, garantindo que nada relevante seja esquecido. Para a identificação do paciente, são de extrema relevância informações como:
- Nome, idade e gênero
- Cor/etnia
- Estado civil e ocupação
- Escolaridade e religião
- Naturalidade e procedência
- Grau de confiabilidade das informações
Queixa principal (QP)
A anamnese começa pela queixa principal. Recomenda-se o uso de perguntas abertas, que incentivam o paciente a descrever sua queixa com mais liberdade. Em vez de limitar-se a questões como “Está com dor?”, é mais produtivo perguntar “O que o trouxe à consulta?” ou “Como o(a) senhor(a) descreveria o que está sentindo?”.
Essa abordagem não só amplia as pistas diagnósticas, como também valoriza a experiência subjetiva do paciente, fortalecendo o vínculo de confiança na relação médico-paciente.
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História da Doença Atual (HDA/HMA)
Trata-se da descrição da evolução dos sintomas desde o início até a consulta, considerando tempo, intensidade, duração, localização, fatores de melhora ou piora e tratamentos prévios. Esse relato cronológico transforma a queixa principal em narrativa estruturada e orienta o diagnóstico.
Interrogatório sistemático ou sintomatológico (IS/RS)
Também chamado de revisão por sistemas, consiste em uma investigação detalhada e organizada dos principais aparelhos e sistemas do corpo, como respiratório, cardiovascular, gastrointestinal, geniturinário, musculoesquelético, neurológico, endócrino e dermatológico.
O objetivo é identificar sintomas que possam não ter sido mencionados espontaneamente pelo paciente na queixa principal ou na HDA, mas que sejam relevantes para o raciocínio clínico.
Perguntas direcionadas ajudam a detectar sinais iniciais, condições associadas ou diagnósticos diferenciais, garantindo uma visão abrangente do estado de saúde.
O IS funciona como uma etapa de “checagem de segurança” da anamnese, prevenindo omissões importantes e fortalecendo a precisão diagnóstica.
Antecedentes pessoais e familiares (HMP e HMF/HF)
Essa etapa da anamnese reúne informações sobre o histórico de saúde do paciente e de seus familiares, permitindo compreender predisposições, fatores de risco e possíveis causas associadas ao quadro atual.
- Antecedentes pessoais: incluem doenças prévias (crônicas ou agudas), alergias medicamentosas ou alimentares, cirurgias, internações, uso contínuo de medicamentos, vacinas e hábitos de vida (alimentação, tabagismo, etilismo, atividade física, ocupação e exposição a riscos ambientais);
- Antecedentes familiares: investigam a presença de condições hereditárias ou de alta prevalência em parentes próximos, como hipertensão, diabetes, câncer, doenças cardiovasculares e psiquiátricas, ajudando a identificar padrões genéticos e ambientais.
Ao incorporar esses dados à avaliação, o médico enriquece o raciocínio clínico, prevê riscos futuros e fortalece a prevenção, além de oferecer um cuidado mais personalizado e alinhado ao contexto de vida do paciente.
Hábitos de vida (CHV)
Avaliar os hábitos de vida do paciente é fundamental para compreender fatores que influenciam sua saúde e o risco de doenças crônicas.
- Sono: qualidade, duração, interrupções e padrões que possam afetar energia, humor e funções cognitivas;
- Alimentação: tipo de dieta, frequência de refeições, ingestão de nutrientes e hábitos alimentares que impactam peso, metabolismo e doenças;
- Álcool e tabaco: consumo atual e passado, frequência e quantidade, essenciais para avaliação de risco cardiovascular, hepático e oncológico;
- Atividade física: intensidade, frequência e tipo de exercício, importantes para saúde cardiovascular, muscular e mental.
Essa abordagem permite identificar fatores modificáveis e orientar mudanças de estilo de vida para prevenção e promoção da saúde.
História psicossocial (HPS)
Avaliar o contexto psicossocial do paciente ajuda a compreender fatores externos que influenciam sua saúde física e mental.
- Cultural: crenças, valores e práticas que podem afetar hábitos de saúde e adesão a tratamentos;
- Econômico: condições financeiras que impactam acesso a cuidados médicos, alimentação adequada e medicamentos;
- Social: rede de apoio, relações familiares e comunitárias, além de fatores de estresse ou proteção social.
Essa análise permite ao médico planejar intervenções mais realistas, personalizadas e eficazes, considerando o paciente em seu contexto de vida.
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Como aplicar a anamnese na rotina médica
A anamnese é a base de toda avaliação clínica e deve ser adaptada ao contexto da prática médica:
- Atenção primária: utilizada em consultas iniciais em UBS, ambulatórios ou pronto-atendimentos, permitindo identificar problemas de saúde comuns, fatores de risco e necessidade de encaminhamentos;
- Especialidades médicas: cada área foca em questões específicas da sua prática, mas mantém a estrutura básica da anamnese, garantindo um registro completo e consistente.
Essa abordagem sistemática permite otimizar o tempo, melhorar a relação médico-paciente e aumentar a precisão diagnóstica.
Habilidades essenciais para uma boa anamnese
- Escuta ativa: priorizar a atenção ao relato do paciente, percebendo detalhes e emoções.
- Comunicação clara e humanizada: usar linguagem acessível, evitando termos técnicos desnecessários.
- Organização das informações: registrar dados de forma lógica e estruturada, facilitando o raciocínio clínico e a tomada de decisões.
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Anamnese e formação médica
A anamnese é um dos primeiros conteúdos da semiologia médica, disciplina essencial na graduação. Desde os primeiros contatos com pacientes simulados até os estágios práticos, o estudante treina esse método, que será usado durante toda a vida profissional.
Mais que um procedimento técnico, a anamnese completa é um exercício de confiança, escuta e organização clínica. Para o jovem médico, dominá-la é tão importante quanto interpretar um exame ou prescrever um medicamento. Afinal, é a partir da história do paciente que nasce o diagnóstico e, com ele, o cuidado de qualidade.
Autoria

Redação Afya
Produção realizada por jornalistas da Afya, em colaboração com a equipe de editores médicos.
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