As oportunidades e os desafios que a medicina enfrentará nos próximos anos e como se preparar para o futuro da profissão pautaram os debates da segunda edição do Afya Summit, realizado em 23 de agosto de 2025, no Auditório Ibirapuera, em São Paulo.
Produzido pela Afya, maior hub de educação e soluções para a prática médica no Brasil, o evento trouxe uma experiência imersiva por meio da narrativa: “Do futuro para o presente – como transformar a prática médica hoje”. A programação incluiu debates sobre temas essenciais como Tecnologia, Inovação e Humanização, Impacto das Mudanças Climáticas na Saúde, Comunicação Médica, entre outros.
Para continuar a promover a discussão iniciada no Afya Summit, o Portal Afya traz uma série de conteúdos relacionados às temáticas e o prepara para viver a nova experiência da Medicina em 2026.
Entendendo a manipulação cerebral
A manipulação cerebral, seja por meio de tecnologias inovadoras como organoides cerebrais (minicérebros), interfaces neurais ou terapias genéticas, está transformando a medicina e a neurociência. Contudo, esses avanços trazem à tona complexas questões éticas que desafiam pesquisadores, médicos, filósofos e legisladores. Para entender melhor essas implicações, conversamos com Alysson Muotri, biólogo e pesquisador renomado da UC San Diego, que lidera estudos pioneiros sobre o desenvolvimento e funcionamento dos minicérebros.
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Minicérebros e a questão da consciência
Uma das dúvidas mais instigantes é se os minicérebros podem desenvolver algum nível de consciência. Muotri esclarece: “Algumas pessoas acreditam que eles já tenham algum nível de consciência, obviamente não igual ao de seres humanos. É muito difícil confirmar que um ser que não se comunica conosco tenha consciência, por isso usam-se métodos indiretos”. Ele exemplifica com o uso da anestesia: “Ao anestesiarmos os minicérebros em laboratório, suas ondas neurais são eliminadas, exatamente como acontece no cérebro humano. Esse experimento não demonstra que eles têm consciência, mas é um forte indício de que possam ter. Assim que aprendermos a nos comunicar com os minicérebros, será possível ter mais certeza disso”.
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Essa reflexão leva a uma questão central no debate ético: “Em que momento um organoide cerebral deixa de ser apenas um modelo experimental e passa a demandar proteção ética?”. Para Muotri, a resposta é clara: “A partir do momento em que demonstrar um nível superior de consciência, autoconhecimento ou sofrimento”.
Contribuições e impacto científico
Apesar de desafios iniciais, a comunidade científica já reconhece o valor dos minicérebros. “Hoje em dia a maior parte dos neurocientistas vê os minicérebros como uma ferramenta indispensável para o entendimento do cérebro humano”, afirma Muotri. Ele destaca avanços práticos que essas estruturas possibilitaram, como a confirmação da causalidade do vírus da Zika na microcefalia, a investigação das consequências neurológicas da covid-19 e a produção do primeiro medicamento para um subtipo específico de autismo.
Avanços clínicos e ética
Quando questionado sobre quais avanços podem chegar mais rápido à prática clínica, Muotri aponta os novos medicamentos para condições neurológicas e os estudos pré-clínicos. “Atualmente, não existe uma barreira ética, pois não há um consenso sobre a consciência e o estado moral dos minicérebros. Essa situação pode mudar com a chegada de minicérebros mais sofisticados, incorporando inputs sensoriais, por exemplo”.
Transformação da prática médica
Muotri prevê que essas tecnologias terão impacto profundo no cotidiano da neurologia, psiquiatria e genética: “Primeiramente, no entendimento das causas, sejam genéticas e/ou ambientais. Além disso, serão ferramentas indispensáveis no fechamento de diagnósticos complexos e no uso de novos biomarcadores e tratamentos personalizados”.
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Sobre a medicina personalizada e a neurodiversidade, ele destaca: “A personalização da medicina é inevitável. Somos muito diversos geneticamente e na exposição a fatores ambientais. Essa individualidade tem que ser levada em conta na medicina moderna. Antigamente, não tínhamos as ferramentas necessárias para essa personalização e tudo era baseado em estatísticas. Os tempos agora são outros”.
Tratamento x Aperfeiçoamento: limites éticos
Um dos dilemas fundamentais está na distinção entre intervenção terapêutica e aprimoramento. Muotri é categórico: “O objetivo do tratamento. Consegue-se facilmente justificar a manipulação para evitar o sofrimento de um ser humano. Difícil justificar a manipulação para aperfeiçoamento ou controle”.
Essa diferenciação é crucial para o desenho de políticas e regulamentações que garantam o uso responsável dessas tecnologias.
A interdisciplinaridade como chave para a ética
Reconhecendo a complexidade dos temas envolvidos, Muotri ressalta a importância do diálogo entre diferentes áreas do conhecimento: “Vejo como essencial. Desde o começo de minha carreira estive envolvido em questões éticas e aprendi cedo da importância dessa interdisciplinaridade”. Ele conta que seu laboratório inclui filósofos da mente e especialistas em ética que trabalham em conjunto com pesquisadores experimentais para interpretar resultados e comunicar ao público de forma adequada.
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Ou seja…
A manipulação cerebral é uma fronteira científica que pode revolucionar o tratamento de doenças neurológicas e psiquiátricas, mas que exige cuidado ético rigoroso. A possibilidade de consciência em minicérebros, o respeito à identidade e agência dos pacientes, a privacidade dos dados neurais e os limites do uso terapêutico frente ao aperfeiçoamento humano são desafios que precisam ser enfrentados coletivamente.
Como enfatiza Alysson Muotri, “Só quando conseguirmos estabelecer esse diálogo multidisciplinar e entender plenamente as implicações dessas intervenções, poderemos avançar com responsabilidade, garantindo que a inovação científica respeite a dignidade humana e promova o bem-estar coletivo”.
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