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Psiquiatria20 maio 2025

Estimulação transcraniana por corrente pulsada e funcionamento social em autistas

Estudo investigou se estimulação transcraniana por corrente pulsada pré-frontal/cerebelar associada a terapia padrão pode melhorar o funcionamento social de crianças com TEA
Por Tayne Miranda

O Transtorno do Espectro Autista (TEA) é um transtorno do neurodesenvolvimento comum e heterogêneo. Segundo dados de uma pesquisa de 2020 nos EUA, uma em cada 36 crianças de 8 anos de idade possuem a condição. A apresentação clínica do TEA se caracteriza por déficits na interação social, na comunicação e comportamentos estereotipados. Além disso, alterações no sono são frequentes e podem intensificar as alterações comportamentais.  

O tratamento do TEA inclui uma combinação de terapias comportamentais e medicações antipsicóticas para manejo de comportamentos desafiadores. Metanálises dessas intervenções, no entanto, mostram uma eficácia controversa. Desse modo, é urgente o investimento em novas abordagens terapêuticas.  

A estimulação transcraniana por corrente pulsada (tPCS) tem se mostrado uma abordagem promissora. Ela é uma técnica de estimulação cerebral não invasiva que modula a atividade cortical por meio de eletrodos de superfície no couro cabeludo ao fornecer correntes pulsadas de baixa intensidade a uma frequência predeterminada, modulando a conectividade funcional, facilitando a coerência inter-hemisférica e melhorando a plasticidade cortical. Seus efeitos ainda não foram estudados no TEA, mas estudos com estimulação transcraniana por corrente contínua mostram um efeito positivo nos sintomas nucleares do TEA. 

O presente estudo visa investigar se tPCS pré-frontal / cerebelar associada a terapia padrão pode melhorar o funcionamento social de crianças com TEA de 3 a 14 anos. Como desfecho secundário foi avaliado uma melhora em alterações do sono.  

Saiba mais: Benefícios da estimulação magnética transcraniana para comorbidades neurológicas e psiquiátricas

Método 

Realizou-se um ensaio clínico randomizado, multicêntrico, duplo-cego e controlado por placebo envolvendo 8 hospitais na China. O estudo seguiu o Standard Protocol Items: Recommendation for Interventional Trials (SPIRIT) e o Consolidated Standards of Reporting Trials (CONSORT). 

Os participantes elegíveis eram crianças com idades entre 3 e 14 anos, diagnosticadas com Transtorno do Espectro Autista (TEA) de acordo com os critérios do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (5ª edição), e com QI igual ou superior a 35, avaliado pela Escala de Inteligência Wechsler Pré-escolar e Primária – 4ª edição, para aquelas entre 3 e 6 anos, e pela Escala de Inteligência Wechsler para Crianças – 4ª edição, para aquelas entre 7 e 14 anos. O período de recrutamento foi de 1º de maio de 2022 a 30 de novembro de 2023. Subtestes não verbais foram utilizados para participantes não verbais, a fim de garantir uma avaliação precisa do potencial intelectual. O diagnóstico de TEA foi realizado por psiquiatras infantis e a avaliação de QI por especialistas em educação. Os critérios de exclusão incluíram epilepsia, craniotomia, dispositivos implantados, condições psiquiátricas graves (por exemplo, psicose, esquizofrenia), infecção ativa no couro cabeludo, apneia obstrutiva do sono, uso atual de benzodiazepínicos, risperidona ou haloperidol, ou uso prévio de estimulação cerebral não invasiva. A lista de randomização foi mantida confidencial por um administrador não envolvido no estudo. 

Todos os participantes foram submetidos a 20 sessões diárias de tPCS ativa ou tPCS simulada em dias úteis consecutivos ao longo de 4 semanas, realizadas por terapeutas cegos à alocação do grupo. Cada sessão de estimulação durou 20 minutos. Os dispositivos tPCS ativos e fictícios eram visualmente e operacionalmente indistinguíveis. Os participantes foram colocados em salas de tratamento separadas e idênticas para evitar interação entre o grupo. 

Imediatamente após a tPCS, os participantes de ambos os grupos receberam uma terapia comportamental de 1 hora, administrada por terapeutas ocupacionais cegos, incluindo análise do comportamento aplicada (ABA), ensino estruturado, ludoterapia, e terapia da fala, de forma alternada, de modo que cada terapia foi administrada 5 vezes durante o período de tratamento de 20 sessões. 

A medida de desfecho primária foi o Autism Treatment Evaluation Checklist (ATEC), um questionário que inclui 77 itens divididos em 4 subescalas: fala, linguagem e comunicação; sociabilidade; consciência sensorial e cognitiva; e saúde, condição física e comportamento. As medidas de desfecho secundárias foram o Autism Behavior Checklist (ABC) e o Childhood Sleep Habits Questionnaire (CSHQ). O ABC é uma ferramenta de triagem com 57 itens distribuídos em 5 subescalas: sensorial, relacionamento social, uso do corpo e de objetos, linguagem e autocuidados sociais, sendo que pontuações mais altas indicam maior gravidade dos sintomas. Em ambas as escalas pontuações mais altas indicam sintomas mais graves. O CSHQ é um instrumento preenchido pelos pais para avaliar os padrões de sono das crianças, composto por 50 itens distribuídos em 8 dimensões do sono. Cada item é avaliado em uma escala likert de 3 pontos, com base na frequência, e uma pontuação de 41 ou mais sugere prováveis problemas de sono. As três avaliações foram aplicadas por dois avaliadores cada, todos pediatras ou terapeutas ocupacionais qualificados, tanto na linha de base quanto após 20 sessões de tPCS. A pontuação final dos participantes foi a média das avaliações dos dois examinadores.  

Os pesquisadores que avaliaram os desfechos não tiveram acesso à alocação dos grupos porque não estavam envolvidos na randomização, alocação ou tratamento. A equipe do estudo que administrou os tratamentos com tPCS desconhecia a alocação dos grupos e tratou apenas um grupo. 

Resultados 

340 participantes foram randomizados entre 2 grupos (170 por grupo). Antes de iniciar o tratamento, 14 pacientes foram excluídos por conta do uso de antipsicóticos ou outros tratamentos concomitantes não aprovados. Após o início do tratamento, 11 pacientes descontinuaram devido a restrições de viagem e 3 deixaram sem especificar a razão. 

No total, 312 participantes (155 no grupo intervenção, 157 no grupo controle) completaram o tratamento e entraram na análise, sendo 248 meninos (79,5%) e 64 meninas (20,5%), idade média 5,1 anos (1,6), 276 (88,5%) com idade entre 3-6 anos e 36 (11,5%) com idade entre 7-14 anos. Não houve diferenças significativas ​​nas variáveis sociodemográficas e clínicas. 

Desfecho Primário após o Tratamento 

A média (DP) da pontuação total no ATEC foi de 67,0 (22,3) no grupo tPCS simulado (sham) e de 60,1 (20,0) no grupo tPCS ativo, com reduções de −4,13 (8,7) pontos (5,8%) e −7,17 (10,5) pontos (10,7%), com uma melhora significativamente maior no grupo tPCS ativo em comparação ao grupo tPCS simulado (diferença: −3,50; IC 95%: −5,56 a −1,43; P < 0,001; tamanho do efeito: 0,04), graças a uma diferença significativa no subdomínio de sociabilidade (diferença: −1,72; IC 95%: −2,57 a −0,88; P < 0,001; tamanho do efeito: 0,05). Os demais subdomínios do ATEC não apresentaram diferenças significativas. 

Desfecho Secundário após o Tratamento 

A média (DP) da pontuação total no ABC foi de 66,3 (18,1) no grupo tPCS simulado (sham) e de 64,2 (15,7) no grupo tPCS ativo, com reduções médias (DP) de −1,6 (8,6) pontos (2,4%) e −6,0 (7,7) pontos (8,5%), respectivamente, com uma melhora significativamente maior no grupo tPCS ativo (diferença: −4,00; IC 95%: −5,75 a −2,26; P < 0,001; tamanho do efeito: 0,06), graças a uma diferença significativa no subdomínio sensorial (diferença: −0,86; IC 95%: −1,50 a −0,22; P = 0,009; tamanho do efeito: 0,02). Nenhum dos outros subdomínios do ABC apresentou diferença significativa. 

Na avaliação das alterações no sono, a média (DP) da pontuação total no CSHQ após o tratamento foi de 56,3 (16,7) no grupo tPCS simulado e de 53,2 (17,4) no grupo tPCS ativo, com reduções de −1,9 (3,9) pontos (3,3%) no grupo sham e −4,2 (5,2) pontos (7,3%) no grupo ativo com maior melhora no grupo tPCS ativo (diferença: −2,19; IC 95%: −3,20 a −1,19; P < 0,001; tamanho do efeito: 0,06), particularmente no subdomínio de sonolência diurna (diferença: −0,85; IC 95%: −1,30 a −0,39; P < 0,001; tamanho do efeito: 0,04). Nenhum dos outros subdomínios do CSHQ apresentou diferença significativa. 

Análises exploratórias pós hoc com regressão linear indicaram que a melhora na pontuação total do CSHQ não esteve significativamente associada à melhora (redução) na pontuação total do ATEC em nenhum dos grupos. Análises exploratórias adicionais, que utilizaram uma redução de 10% ou mais nas pontuações pós-tratamento como critério de mudança clinicamente significativa, revelaram que 84 de 155 participantes (54,2%) do grupo tPCS ativo atingiram esse desfecho com a pontuação total do ATEC, em comparação a 48 de 157 (30,6%) no grupo sham. Do mesmo modo, 63 de 155 (40,6%) do grupo ativo alcançaram esse resultado com as pontuações do ABC frente a 31 de 157 (19,7%) do grupo sham. 

Ambas as intervenções foram bem toleradas. Os seguintes efeitos colaterais ocorreram: leve dor de cabeça (n = 19) e vermelhidão temporária no couro cabeludo (n = 27) nos locais dos eletrodos, com resolução espontânea dentro de 30 minutos após a interrupção da estimulação. Nenhum participante abandonou o estudo por conta dos efeitos adversos.  

Discussão 

A tPCS melhorou significativamente o funcionamento social de crianças com TEA, graças a melhora na sociabilidade e questões sensoriais no grupo tPCS ativo. Houve também ganhos em habilidades de linguagem, que perdeu significância após a aplicação da correção de Bonferroni (método estatístico que visa evitar um resultado falso positivo quando se realizam múltiplas comparações simultâneas em uma mesma análise). 

O grupo tPCS ativo mostrou melhora expressiva na sonolência diurna em comparação com o grupo tPCS simulado. A melhora no sono não esteve associada à melhora no funcionamento social, sugerindo mecanismos independentes. 

Limitações 

  • 88,5% da amostra consistia em crianças menores de 7 anos, o que pode limitar a generalização dos resultados para crianças mais velhas, bem como para aquelas que estão em uso de medicações excluídas do estudo (benzodiazepínicos, risperidona e haloperidol); 
  • A despeito de inúmeras medidas terem sido tomadas para cegamento, não houve uma avaliação formal de cegamento; 
  • Seguimento de longo prazo não foi feito por questões logísticas ligadas à pandemia de COVID-19. 

Impactos para a Prática Clínica 

  • 20 sessões (1 mês) de estimulação transcraniana por corrente pulsada tPCS pré-frontal-cerebelar em crianças de 3 a 14 anos com TEA é segura e resultou em melhora do funcionamento social e do sono em comparação com a estimulação simulada. 

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Referências bibliográficas

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