Pacientes portadores de câncer avançado ou incurável possuem frequentemente sintomas debilitantes que atrapalham suas atividades de vida diária, grande sofrimento psicológico, alterações no seu círculo social e enfrentam decisões complexas sobre o tipo de tratamento que serão submetidos, seja os tratamentos direcionados para o câncer ou tratamentos de suporte de sintomas.
Os cuidados paliativos realizados por equipe especializada, quando integrados precocemente ao tratamento oncológico direcionado pelo médico oncologista, melhoram sobremaneira a qualidade de vida do paciente, reduzem tratamentos desnecessários direcionados para o câncer (como por exemplo, quimioterapia paliativa) no final da vida e são recomendados por diversas diretrizes e sociedades internacionais de cuidados oncológicos.
Contudo, a implementação desses cuidados paliativos em pacientes provenientes de clínicas da comunidade (não oriundos de centros acadêmicos e de hospitais universitários, por exemplo) — aonde a maioria dos pacientes é tratada — enfrenta barreiras como baixa taxa de utilização, acesso desigual e sem diretrizes locais para encaminhamento e inclusive resistência dos próprios médicos, que muitas vezes associam os cuidados paliativos apenas a paciente em situações de terminalidade iminente da vida.
Saiba mais: Quando encaminhar o paciente com câncer para cuidados paliativos?
Novo estudo
O presente estudo utiliza e testa uma estratégia inovadora para vencer esses desafios descritos acima: ele usa um algoritmo integrado ao prontuário eletrônico dos pacientes, que identifica aqueles elegíveis para cuidados paliativos e automaticamente gera encaminhamentos para clínicas/médicos de cuidados paliativos especializados. O encaminhamento deve ser aprovado pelo médico que está cuidando do paciente, que pode cancelar o encaminhamento automático, mas deve justificar a decisão no prontuário eletrônico.
O artigo é importante pelo fato dele mostrar uma alternativa automática e baseada em algoritmo para o encaminhamento do paciente para uma equipe de cuidados paliativos, no contexto de pacientes oncológicos tratados fora de centros universitário e acadêmicos.
Métodos do estudo
Trata-se de um ensaio clínico randomizado por clusters (portanto, um estudo experimental que randomiza grupos de pessoas, em vez de indivíduos, para avaliar o efeito de uma intervenção) utilizando 15 clínicas comunitárias no estado do Tennessee, nos Estados Unidos da América, que usam o mesmo sistema de prontuário eletrônico, comparando dois grupos:
Um algoritmo no prontuário eletrônico enviava encaminhamentos automáticos para equipe de cuidados paliativos para pacientes com câncer avançado (câncer de pulmão pequenas células ou não pequenas células e cânceres do trato gastrointestinal não colorretal), atentando ao fato de que os médicos responsáveis podiam cancelar o encaminhamento, mas precisavam justificar no prontuário tal decisão. Se não cancelassem em 48 horas, uma enfermeira coordenadora de cuidados paliativos telefonada para os pacientes e oferecia um agendamento de consulta com a equipe de cuidados paliativos.
Outro grupo, controle, era formado por médicos que enviavam os pacientes para a equipe de cuidados paliativos de acordo com sua vontade e avaliação
Critérios de elegibilidade: pacientes portadores dos cânceres citados acima, em estádio III ou IV, maiores de 18 anos, incluídos entre novembro de 2022 e dezembro de 2023. Foram excluídos os pacientes que não tinham consultas agendadas, não tinham visitado o oncologista nas últimas 24 semanas, os que estavam internados e os tiveram consulta com equipe de cuidados paliativos nos últimos 90 dias.
O desfecho primário foi uma consulta de cuidados paliativos concluída, definida como a realização de uma primeira consulta especializada dentro de 12 semanas após a inclusão. Foram consideradas apenas consultas presenciais ou por telemedicina realizadas nas 15 clínicas de oncologia participantes. A escolha desse desfecho deveu-se ao objetivo da intervenção, que era modificar padrões de encaminhamento para cuidados paliativos, e não impactar diretamente desfechos posteriores, como carga de sintomas dos pacientes.
Os desfechos exploratórios incluíram qualidade de vida do paciente, que foi avaliada pela escala FACIT-Pal-14;”sensação de ser ouvido e compreendido”, que foi medida pelo questionário Heard and Understood; análise de cuidados intensivos no fim da vida (terapia sistêmica nos últimos 14 dias de vida – quimioterapia, imunoterapia ou terapia-alvo; encaminhamento tardio para cuidados paliativos (internação com menos de três dias antes da morte).
Foram incluídos 562 pacientes (média de 68,5 anos; 51,2% homens), majoritariamente com câncer de pulmão (77%). A maioria era branca (79,5%) e não hispânica (76,2%), refletindo limitações na diversidade étnica do estudo. Clínicas rurais e urbanas participaram e todas tinham acesso a equipe de cuidados paliativos, seja presencial ou virtual.
Resultados
Aumento significativo em consultas de cuidados paliativos: 43,9% dos pacientes tiveram consultas no braço intervenção contra 8,3% no controle (OR ajustado: 8,9; IC 95%: 5,5–14,6). O efeito foi maior em pacientes com câncer de pulmão (OR 14,1) versus pacientes com cancer do trato gastrointestinal (OR 4,2).
Redução de terapias agressivas no fim da vida: 6,5% receberam quimioterapia nos últimos 14 dias no braço intervenção contra 16,1% no controle (OR 0,3; IC 95%: 0,1–0,7).
Ausência de impacto na qualidade de vida ou comunicação: escalas como FACIT-Pal-14 e “sentir-se ouvido” não mostraram diferenças significativas, possivelmente devido à alta taxa de ausência de resposta (aproximadamente 50%) ou número insuficiente de consultas.
Aceitabilidade: apenas 10,5% dos médicos cancelaram os encaminhamentos automáticos, e 62,6% dos pacientes aceitaram a visita com a equipe de cuidados paliativos quando contatados.
Veja também: Assistência paliativa precoce em cânceres metastáticos no TGI superior
Mensagem prática
Este estudo demonstra que intervenções automatizadas baseadas em algoritmos podem aumentar drasticamente o acesso a cuidados paliativos em clínicas oncológicas comunitárias, onde barreiras culturais e logísticas são extremamente comuns. A redução de terapias fúteis no fim da vida é um avanço relevante, alinhada ao conceito de medicina de qualidade e que preza pelo cuidado humanizado.
Entretanto, a falta de melhora na qualidade de vida sugere que uma única consulta de cuidados paliativos pode ser insuficiente, e, portanto, modelos escalonados (com mais visitas conforme necessidade do paciente) devem ser explorados; também sugere que o algoritmo pode não capturar todos os pacientes sintomáticos, especialmente aqueles com sofrimento psicológico e ausência de suporte social não documentados no prontuário eletrônico.
Uma grande vantagem do modelo automatizado é minimizar a carga emocional decisional dos médicos em um assunto muito delicado e considerado tabu por alguma parcela da população.
Em resumo, a tecnologia pode ser uma aliada poderosa para traduzir diretrizes para a prática real cotidiana, mas deve ser combinada com abordagens humanizadas para otimizar o cuidado centrado no paciente e humanizado.
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