Infecção urinária e inibidores do SGLT2 (iSGLT2)
Os inibidores do cotransportador-2 de sódio e glicose (iSGLT2) são cada vez mais usados por pacientes com diabetes mellitus (DM) tipo 2 ou com insuficiência cardíaca (IC), tanto com fração de ejeção reduzida (ICFER) quanto preservada (ICFEP).
Um dos efeitos colaterais dessa classe é a ocorrência de infecções do trato gênito-urinário (ITU), que pode se tornar uma barreira para o uso crônico, apesar das recomendações das diretrizes.
Recentemente foi publicada uma revisão sobre o assunto. Abaixo seguem os principais pontos abordados.
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Mecanismos de ação e efeitos adversos
O SGLT2 reabsorve a maior parte da glicose filtrada no túbulo proximal, prevenindo a glicosuria e os iSGLT2 induzem a excreção da glicose na urina de forma sustentada (40 a 80g/dia). Em pacientes com DM, essa excreção aumenta ainda mais, a depender da sua concentração sérica.
Um outro efeito é a natriurese transitória e o aumento do sódio na mácula densa, no néfron distal, gera feedback negativo nas arteríolas glomerulares aferentes, com constrição e redução do fluxo sanguíneo glomerular, que gera redução da pressão e da filtração intraglomerular. Isso leva a menor dano renal, já que hiperfiltração gera inflamação e fibrose.
Existem ainda efeitos protetores cardiorrenais que atuam por outros mecanismos: ação direta nos cardiomiócitos, via inibição do trocador de sódio e hidrogênio, aumento da produção energética priorizando a cetogênese e aumento da função mitocondrial, melhora da função endotelial e inibição do sistema nervoso simpático, além de propriedades anti-inflamatórias.
A glicosúria induzida pela medicação pode favorecer o crescimento de microorganismos e facilitar a ocorrência de ITU, além de ter efeito na indução de virulência da Escherichia coli, patógeno comum do trato gênito-urinário. Já a causa mais comum de infeção genital é a infecção pela Candida albicans e a glicose é um dos fatores que influenciam no seu crescimento.
Benefício dos iSGTL2
DM: eficácia intermediária a alta no efeito hipoglicemiante. Auxilia no controle da DM e reduz risco cardiovascular e renal, independente do controle glicêmico.
IC: melhora desfechos em pacientes com IC, reduzindo mortalidade e internações por IC. Os estudos avaliaram o uso de dapagliflozina e empagliflozina e os benefícios ocorreram independente da presença de DM. Assim, tem classe I de recomendação para pacientes com ICFER (≤ 40%), IC limítrofe (41-49%) e ICFEP (≥ 50%) pela diretriz europeia e classe I para ICFER e IIa para IC limítrofe e ICFEP pela diretriz americana, porém esta foi publicada antes do grande estudo DELIVER, que avaliou ICFEP.
Doença renal: o início da medicação leva à queda transitória da taxa de filtração glomerular (TFG), sem associação com perda de função renal progressiva e geralmente seguida de um declínio menor da função renal ao longo do tempo, independente da presença de DM. Assim, é recomendada quando há DM2 e doença renal crônica (DRC) quando a TFG é ≥ 20ml/min/1,73m2. Também há benefício na DRC com proteinúria, mesmo na ausência de DM, porém essa indicação ainda não foi incorporada às diretrizes atuais.
Infecções associadas ao iSGLT2
Desde a aprovação da medicação foram feitos alertas em relação a ocorrência de ITU grave (uro-sepse e pielonefrite) e fasceíte necrotizante do períneo (síndrome de Fournier).
ITU
A incidência de ITU variou nos ensaios clínicos e não houve diferença em relação ao grupo placebo na maioria deles, exceto no VERTIS CV, que avaliou ertugliflozina em pacientes com doença vascular, e no EMPEROR-Preserved, que avaliou emplagliflozina em pacientes com ICFEP.
Uma metanálise com 72 estudos pequenos não mostrou maior risco de ITU nos pacientes que usaram iSGLT2 e outra mais recente, que avaliou pacientes sem DM, mostrou maior risco de ITU com a medicação. A ocorrência de infecções complicadas também variou entre os estudos, principalmente pela variação na sua definição.
Em estudos observacionais, a incidência de ITU foi de aproximadamente 1,9% e as análises não mostraram relação com ISGLT2 quando comparado a inibidores de DPP-4 ou análogos de GLP-1. Interessante que o risco dessa infecção parece maior nas primeiras 2 semanas de tratamento.
Infecção genital micótica
Esse tipo de infecção é mais comum em pacientes que usam ISGLT2, principalmente mulheres. A incidência nos ensaios clínicos variou de 0,8% a 6,4% no grupo tratamento e 0,8% a 1,8% no grupo placebo.
Uma metanálise mostrou maior ocorrência no grupo tratamento, com RR de 3,37 e o mesmo resultado foi encontrado em pacientes sem DM. Estudos observacionais também mostraram maior ocorrência em pacientes com iSGLT2 comparado a inibidor de DPP4.
Síndrome de Fournier
É infecção rara, mas letal, decorrente da infecção de tecidos superficiais e profundos da região genital e perineal. Os estudos não mostraram aumento em pacientes que usaram a medicação comparado a placebo ou agonistas do GLP-1 e a associação com iSGLT2 não pode ser confirmada.
Fatores de risco para infecções associadas a iSGLT2
Um dos fatores de risco é o próprio DM, assim como seu mal controle. Os pacientes com DM tiveram maior ocorrência que os pacientes que utilizam a medicação por IC ou DRC. Além disso, a combinação com inibidor de DPP-4, estatinas, bloqueador do receptor de angiotensina II e bloqueador de canal de cálcio parece aumentar o risco. Outros fatores de risco são idade ≥ 65 anos, TFG ≤ 60 e proteinúria.
Fatores de risco para infecção genital micótica
O DM, sua duração e mal controle glicêmico são fatores de risco. Outros fatores são uso concomitante de sulfonilureia ou insulina, obesidade, principalmente em mulheres, pós-menopausa e, nos homens, circuncisão é associado a menor risco.
Implicações clínicas
O benefício da medicação é muito maior que o risco da infecção, mesmo em quem tem fatores de risco e é importante ressaltar que história de infecção não é contraindicação ao uso dos iSGLT2.
A presença dos fatores de risco deve ser um alerta para maior ênfase nas medidas de prevenção, como orientações sobre seu risco, sinais e sintomas que podem surgir e manutenção de boa higiene perineal.
Não há indicação de profilaxia antimicrobiana ou de coleta de cultura de urina antes do início do tratamento e caso ocorra ITU ou infecção genital micótica, não há recomendação de suspender a medicação, já que seus benefícios se mantêm. A suspensão temporária pode ser considerada em caso de infecção ameaçadora à vida e deve ser reiniciada na maioria dos casos, porém o momento ideal não é definido.
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Comentários e conclusão
Os dados sobre infecção são limitados, principalmente em pacientes sem diabetes, mas parece que a ocorrência de infecção genital micótica ocorre mais em pacientes em uso de iSGLT2. ITU e Fournier não parecem ocorrer com maior frequência.
Ainda, se a infecção se comporta de forma diferente na população que usa iSGLT2 comparado à população em geral não é sabido e mais estudos são necessários para esclarecimento.
O risco de suspender a medicação é maior que o risco das infecções e essa deve ser mantida, mesmo em vigência de infecção.
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