A maioria das cirurgias realizadas atualmente são cirurgias não cardíacas e, com a mudança demográfica da população, cada vez mais estamos operando pacientes mais idosos e com mais fatores de risco cardiovasculares ou doença já estabelecida. As complicações cardiovasculares no perioperatório ocorrem geralmente em decorrência do estresse hemodinâmico e cardíaco a que os pacientes são submetidos e são mais frequentes em pacientes com doença cardiovascular (DCV) já estabelecida.
Baseado nisso, foram publicadas novas recomendações da European Society of Cardiology com objetivo de prevenir morbidade e mortalidade cardiovascular no perioperatório: infarto/injuria miocárdica relacionada ao perioperatório, trombose de stent, insuficiência cardíaca (IC) aguda, arritmias com alteração hemodinâmica, embolia pulmonar (EP), acidente vascular cerebral isquêmico (AVCi) e morte. Abaixo, seguem os principais pontos desta diretriz.
Avaliação de risco
O risco cardiovascular é determinado por dois fatores principais: o risco relacionado ao paciente e o relacionado ao tipo de cirurgia ou procedimento.
Risco relacionado ao procedimento
Depende do tipo e duração da cirurgia e da urgência do procedimento ou intervenção. Além disso, o tipo de anestesia pode influenciar no risco de complicações de pacientes com risco cardiovascular intermediário ou alto. Estima o risco de morte, IAM ou AVC em 30 dias e é dividido em baixo, intermediário ou alto:
– Baixo (< 1%): cirurgia de mamas, dentárias, tireóide, oftalmológicas, cirurgias ginecológicas menores, ortopédicas menores (por exemplo, menisco), cirurgias de reconstrução, superficiais, urológicas menores (RTU de próstata), ressecção pulmonar menor por vídeo.
– Intermediário (1-5%): cirurgias de carótida assintomática (angioplastia ou endarterectomia), endarterectomia de carótidas sintomática, correção endovascular de aneurisma de aorta, cabeça e pescoço, intraperitoneais, intratorácicas menores, neurológicas ou ortopédicas maiores (quadril e coluna), angioplastia arterial periférica, transplante renal, urológicas ou ginecológicas maiores.
– Alto (> 5%): ressecção de adrenal, vasculares arteriais maiores e de aorta, cirurgia pancreática duodenal, ressecção hepática, cirurgia de ducto biliar, esofagectomia, revascularização de membro inferior aberta por isquemia aguda ou amputação, pneumectomia (por vídeo ou aberta), transplante pulmonar ou hepático, correção de perfuração intestinal, cistectomia total.
Outro ponto importante é que procedimentos de urgência tem risco maior que procedimentos eletivos e isto deve ser levado em conta na avaliação.
Risco relacionado ao paciente
Este risco é estimado a partir de características do paciente, como idade, presença de fatores de risco cardiovasculares ou DCV já estabelecida e comorbidades. É essencial conhecer o risco do paciente, pois podemos avaliar a possibilidade de tratamento não cirúrgico, se este estiver disponível, ou realizar mudanças na técnica anestésica.
– Pacientes com menos de 65 anos, sem história de DCV ou fatores de risco cardiovasculares
Se esses pacientes não tiverem sintomas ou alteração de exame físico sugestivos de DCV são considerados de baixo risco e podem prosseguir com cirurgias de risco baixo ou intermediário sem avaliação adicional.
Se mesmo nas condições acima houver história familiar de cardiomiopatia genética (dilatada, hipertrófica, arrítmica, restritiva ou miocárdio não compactado), devem realizar eletrocardiograma (ECG) e ecocardiograma (eco).
Se a cirurgia for de alto risco devem realizar eletrocardiograma (ECG) e podemos considerar a coleta de biomarcadores, principalmente em maiores de 45 anos.
– Pacientes com 65 anos ou mais ou fatores de risco cardiovasculares
Em caso de cirurgias de risco intermediário ou alto, devem realizar avaliação adicional com exames e realizar o controle dos fatores de risco, além de serem avaliados em relação a capacidade funcional.
Em caso de cirurgias de baixo risco, não há necessidade de avaliação adicional.
– Pacientes com DCV estabelecida
Em caso de cirurgias de baixo risco não há necessidade de avaliação adicional. Se a cirurgia for de risco intermediário recomenda-se ECG, coleta de biomarcadores e avaliação da capacidade funcional e em caso de cirurgias de alto risco acrescenta-se avaliação específica do cardiologista.
– Pacientes com sintomas ou exame físico alterado
Neste caso o paciente deverá ser investigado de acordo com o sintoma (dispneia, dor torácica, edema) ou alteração do exame físico (sopros, edema).
Devemos também fazer uso dos escores de risco, que auxiliam na estimativa de risco e seu resultado deve utilizado adicionalmente à avaliação descrita acima. Existem diversos escores de risco que utilizam tanto características dos pacientes quanto o tipo de cirurgia para seu cálculo.
Escores de risco
Os escores citados pela diretriz são
– Escore de Lee (RCRI): que estima risco de morte, IAM ou parada cardiorrespiratória (PCR) em 30 dias e é baseado em 6 variáveis (doença cardíaca isquêmica, doença cerebrovascular, história de IC, creatinina ≥ 2, cirurgia de alto risco e diabetes em uso de insulina) e é bastante prático de calcular.
– ACS NSQIP: do Colégio Americano de Cirurgia, que estima a probabilidade de complicações graves e de qualquer complicação em 30 dias e parece ter um poder discriminativo semelhante ao RCRI, porém necessita de uma calculadora específica. Esses dois escores tem acurácia moderada para cirurgias vasculares.
– O escore SORT estima mortalidade em 30 dias e se baseia em: classificação de ASA, urgência da cirurgia, tipo e gravidade da cirurgia, câncer e idade ≥ 65 anos.
– O escore (AUB)-HAS2 é que foi desenvolvido mais recente e estima a ocorrência de morte, IAM ou AVC em 30 dias e classifica o paciente em risco baixo (0-1), intermediário (2-3) ou alto (> 3) baseado em 6 variáveis (história de doença cardíaca, sintomas de angina ou dispneia, idade ≥ 75 anos, anemia, cirurgia vascular, cirurgia de emergência). Este escore parece ser superior ao RCRI.
Atualmente não há recomendação de se preferir um escore em relação ao outro e o ideal é avaliar o escore de forma conjunta à avaliação clínica.
Fragilidade
A fragilidade deve ser rastreada em pacientes idosos que serão submetidos a cirurgia de risco intermediário ou alto, pois há impacto em mortalidade, auxilia em uma estimativa de expectativa de vida e chance de complicações pós operatórias como delirium, dependência funcional e necessidade de cuidados especiais no pós operatório.
Os escores mais recomendados para rastreamento de fragilidade são o Frailty Index e o Frail Phenotype. Uma abordagem mais simples pode ser obtida com o Clinical Frailty Scale. Caso seja feito o diagnóstico de fragilidade, isto deve ser abordado com a família e caso optado por cirurgia, cuidados adicionais podem ser tomados.
Capacidade Funcional
A capacidade funcional normalmente é avaliada de forma subjetiva e pacientes com < 4 METS tem sido considerados como tendo baixa capacidade funcional. A estimativa da capacidade funcional pelo escore DASI (https://www.mdcalc.com/duke-activity-status-index-dasi#evidence) parece ser mais precisa e, a partir desse escore, pode-se fazer o cálculo em METS, a partir do VO2 máximo.
Exames complementares
Eletrocardiograma
Deve ser realizado em todos os pacientes com 65 anos ou mais ou com DCV estabelecida ou fatores de risco cardiovasculares ou sintomas sugestivos de DCV que serão submetidos a cirurgias de risco intermediário ou alto. Sua realização não é recomendada em pacientes de baixo risco.
Biomarcadores
As troponinas I ou T ultra-sensíveis quantificam injuria miocárdica e o BNP e NT-próBNP quantificam o estresse hemodinâmico na parede do ventrículo. Esses biomarcadores complementam a avaliação clínica de risco e tem um valor prognóstico incremental alto para complicações cardíacas perioperatórias, incluindo morte, PCR, IC aguda e taquiarritmias.
Sua coleta é recomendada para pacientes com DCV estabelecida, com fatores de risco cardiovasculares, com 65 anos de idade ou mais, ou que apresentem sintomas sugestivos de doença cardiovascular antes de cirurgias de risco intermediário ou alto e 24 horas e 48 horas após.
Ecocardiograma transtorácico
Recomendado para pacientes com baixa capacidade funcional e/ou BNP ou NT-próBNP aumentados ou presença de sopro em pacientes que serão submetidos a cirurgia de alto risco.
Também deve ser considerado se houver sintomas novos sem explicação, alteração de ECG ou biomarcadores em pacientes que realizarão cirurgias de risco intermediário. Não deve ser realizado de rotina.
Teste ergométrico
Não deve ser realizado para avaliação de isquemia, a não ser que não haja exames com imagem disponíveis ou o objetivo seja avaliar capacidade funcional em casos duvidosos.
Exames de imagem com estresse
Indicado para pacientes que farão cirurgia de alto risco e tem baixa capacidade funcional e alta probabilidade de doença coronária ou alto risco cardiovascular. Podem ser considerados para pacientes revascularizados previamente que farão cirurgia de alto risco e estão assintomáticos, porém com baixa capacidade funcional, ou quando a cirurgia é de risco intermediário e existe preocupação em relação a isquemia em paciente com fatores de risco e baixa capacidade funcional. O eco estresse com dobutamina parece ser melhor que a cintilografia, pois mostrou melhor relação com predição de eventos em alguns estudos.
Avaliação da anatomia coronariana
Avaliação com angiotomografia de coronárias ou angiografia invasiva (cateterismo) tem as mesmas recomendações que no contexto não pré-operatório. Ou seja, deve ser realizada se tiver indicação do ponto de vista da avaliação cardiovascular, não no intuito de redução de eventos relacionados a cirurgia.
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