Há pouco tempo, o uso da aspirina no contexto de doença arterial coronariana (DAC) crônica era uma conduta quase que inquestionável. Essa conduta vem sendo questionada por novas evidências que sugerem que a aspirina não traz benefícios na prevenção secundária de pacientes que necessitam de anticoagulante oral. Ensaios como AFIRE, EPIC-CAD e OAC-ALONE mostraram que a monoterapia com anticoagulante seria suficiente para pacientes com DAC estável e fibrilação atrial, porém existia dúvida quanto à manutenção da terapia dupla (Aspirina + anticoagulante oral) em indivíduos de alto risco aterotrombótico, com stents implantados há mais tempo e múltiplas comorbidades.
O AQUATIC trial (Assessment of Quitting versus Using Aspirin Therapy in Patients with Stabilized Coronary Artery Disease after Stenting Who Require Long-Term Oral Anticoagulation), apresentado no Congresso da Sociedade Europeia de Cardiologia (ESC 2025) e publicado recentemente no The New England Journal of Medicine, buscou avaliar se a associação da aspirina com anticoagulação oral traria algum benefício clínico líquido em pacientes com DAC crônica de alto risco trombótico.
Os pacientes foram considerados de alto risco se apresentassem pelo menos uma das seguintes condições:
- Histórico de intervenção coronariana percutânea (ICP) durante uma síndrome coronariana aguda (como infarto com ou sem supra) — desde que o stent tivesse sido implantado há mais de 6 meses antes da inclusão no estudo; ou
- Histórico de ICP há mais de 6 meses (fora de um contexto agudo), associado a um ou mais dos fatores abaixo:
- Diabetes mellitus;
- Doença coronariana multivascular difusa (envolvendo as três artérias principais);
- Doença renal crônica, definida por clearance de creatinina < 50 mL/min;
- Trombose prévia de stent;
- Doença arterial periférica;
- Histórico de ICP complexa, caracterizada por:
- ≥ 3 stents implantados ou ≥3 lesões tratadas;
- Stent na artéria coronária esquerda principal ou última artéria patente;
- Lesão bifurcada tratada com dois stents;
- Comprimento total de stent > 60 mm;
- Recanalização de oclusão coronária total crônica.
O AQUATIC foi um ensaio clínico multicêntrico realizado em 51 centros franceses. Foram incluídos 872 pacientes com doença coronariana crônica, todos com implante de stent há mais de seis meses e em uso contínuo de anticoagulante oral (Varfarina ou DOAC). A média de idade foi de 71,7 anos, 85% eram homens e 89% tinham fibrilação atrial. Além disso, mais de 70% apresentavam histórico de infarto prévio.
Os participantes foram divididos de forma aleatória para receber aspirina 100 mg/dia ou placebo. O desfecho primário foi um composto de morte cardiovascular, infarto do miocárdio, acidente vascular cerebral (AVC), revascularização coronariana, embolia sistêmica ou isquemia aguda de membro. O principal desfecho de segurança foi sangramento maior, conforme os critérios da International Society on Thrombosis and Haemostasis (ISTH). Entre os desfechos secundários, morte por todas as causas, eventos adversos clínicos líquidos (morte, evento isquêmico ou sangramento grave) e qualquer sangramento relevante. A análise estatística seguiu o princípio da intenção de tratar, utilizando modelos de regressão de Cox ajustados por tipo de anticoagulante e regime antitrombótico inicial. O tamanho amostral inicial previsto era de 2.000 pacientes, mas o estudo foi interrompido precocemente, após recomendação do comitê independente de monitorização, devido ao aumento de mortalidade global no grupo que recebeu aspirina.
Após um seguimento mediano de 2,2 anos, o uso de aspirina foi associado a piores desfechos clínicos. O desfecho primário ocorreu em 16,9% dos pacientes no grupo aspirina, contra 12,1% no grupo placebo (HR 1,53; IC95% 1,07–2,18; p=0,02). A mortalidade por todas as causas foi significativamente maior com aspirina (13,4% vs. 8,4%; HR 1,72; IC95% 1,14–2,58; p=0,01), e o risco de sangramento foi maior com uso da aspirina (10,2% vs. 3,4%; HR 3,35; IC95% 1,87–6,00; p<0,001). A ocorrência de trombose de stent foi rara e semelhante entre os grupos.
Os achados AQUATIC sugerem que, mesmo entre pacientes de alto risco aterotrombótico e com stents prévios, a adição de aspirina à anticoagulação não reduz eventos isquêmicos; o que se observou foi o oposto: aumento significativo de mortalidade e maior risco de hemorragia grave. Esses dados fortalecem o entendimento de que na fase crônica, a monoterapia é a conduta que traz um melhor equilíbrio entre eficácia na redução de eventos trombóticos e menor risco hemorrágico. Importante destacar que a aspirina ainda não perdeu totalmente seu espaço, devendo ser utilizada nas fases mais precoces após a intervenção coronariana. Esses resultados alinham-se a ensaios prévios e fortalecem as evidências de que a monoterapia com anticoagulante na DAC crônica (de pacientes que necessitam de anticoagulação) é segura e eficaz, mesmo em indivíduos com risco trombótico maior.
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