O consumo de álcool é altamente prevalente, e parte dos indivíduos apresenta Transtorno por Uso de Álcool (TUA), condição associada a múltiplas comorbidades (p.ex., doença hepática) e aumento da morbimortalidade. Apesar disso, poucos buscam tratamento e menos ainda recebem abordagem farmacológica. O artigo de Hendershot CS et al., publicado no JAMA Psychiatry em fevereiro de 2025, revisita a literatura e aponta fatores que contribuem para a limitada adoção de fármacos — como o estigma, o número reduzido de medicamentos aprovados e as lacunas de conhecimento sobre sua efetividade. Ainda assim, fármacos clinicamente aceitos que reduzam o consumo podem trazer benefícios relevantes à saúde.
Nos últimos anos, cresceu o uso de agonistas do receptor do peptídeo semelhante ao glucagon-1 (GLP-1 RAs) no tratamento da obesidade e do diabetes mellitus. A semaglutida, fármaco dessa classe e de longa duração, tem sido associada a relatos de redução do consumo e do craving (“fissura”) por álcool, o que pode ter implicações clínicas no TUA. Diante disso, os autores conduziram um ensaio clínico randomizado (ECR), duplo-cego, de fase 2, para avaliar os efeitos da semaglutida subcutânea semanal em adultos com TUA não estão em busca de tratamento.
Como foi feito o estudo?
- A pesquisa foi realizada na Faculdade de Medicina da Carolina do Norte e supervisionada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da mesma instituição. Os sujeitos da pesquisa foram recrutados por meio de anúncios públicos e online.
- As análises estatísticas definiram uma amostra de 48 participantes randomizados com diagnóstico de TUA, sendo que a maioria apresentava gravidade moderada. Eles não deveriam estar procurando ativamente um tratamento para essa condição.
- Critérios de inclusão:
- Os participantes deveriam ter entre 21 e 65 anos;
- Preencher os critérios do DSM-5 para TUA no último ano;
- Relato de consumo de mais de 7 doses para mulheres ou mais de 14 doses para homens de bebidas alcoólicas por semana no último mês;
- Pelo menos 2 episódios de consumo excessivo (mínimo de 4 doses para mulheres e 5 para homens);
- Disponibilidade para consultas semanas e avaliações laboratoriais antes, durante e após o tratamento.
- Critérios de exclusão:
- Pacientes que procuravam por tratamento ou tentavam reduzir o consumo;
- Uso prévio de agonistas dos receptores de GLP-1;
- Uso de medicamentos para perda de peso;
- IMC < 23;
- Transtorno por uso de tabaco ou transtorno por uso de cannabis (leve), além de outros transtornos por uso de substâncias;
- Uso recente de drogas ilícitas (exceto cannabis);
- Histórico de diabetes;
- Doença clínica ou neurológica atual que impedisse a participação.
- A pesquisa possui um desenho híbrido, pois combina avaliações clínicas ambulatoriais com aquelas laboratoriais;
- Durante 9 semanas foram administradas semaglutida ou placebo, havendo uma consulta final de avaliação na décima semana;
- Os participantes concordaram em participar de uma sessão de ingestão de álcool em laboratório antes do início do tratamento. Na primeira consulta houve a administração da medicação, assim como em mais 8 consultas semanais subsequentes para administração de medicação ou placebo e uma sessão para avaliar a ingestão de álcool após o tratamento (entre as consultas 8 e 9) e uma consulta de alta sem a medicação;
- O uso de álcool foi avaliado laboratorialmente antes do início do tratamento e entre as semanas 8 e 9;
- A medicação foi administrada da forma padrão, com aumento das doses a cada 4 semanas (0,25 mg/semana no primeiro mês; 0,5 mg/semana no segundo mês e 1 mg/semana na última semana, conforme a tolerância);
- Na avaliação laboratorial do consumo, a bebida de preferência do participante era disponibilizada. Ele podia adiar o consumo por até 50 minutos em troca de incentivo financeiro e, em seguida, beber livremente por 120 minutos. A quantidade de álcool a ser ofertada foi definida por fórmulas antropométricas até um teto estabelecido. Mediram-se o consumo total (g) e a concentração de álcool no ar expirado (BrAC), aferida a cada 30 minutos ao longo de toda a sessão. Essas sessões ocorreram antes do tratamento e após (semanas 8–9);
- O consumo semanal foi estimado por métodos baseados em calendário e registros diários, avaliando-se média diária de consumo, quantidade e frequência, craving semanal e número de cigarros/dia entre fumantes. As visitas semanais incluíram peso corporal, pressão arterial sistólica/diastólica, eventos adversos e sintomas depressivos.
- Limitações:
- Tamanho da amostra e curta duração do tratamento;
- Opção por doses baixas da semaglutida (por questões relacionadas à segurança e viabilidade);
- Pacientes com gravidade do transtorno moderada – diferente de uma parcela de pacientes que busca por tratamento.
Resultados
Ao término do estudo, a semaglutida promoveu redução significativa no consumo de álcool durante a sessão laboratorial e redução do pico de álcool expirado, com efeito de magnitude moderada a grande em comparação ao placebo. Houve também redução da concentração média de álcool ao longo de toda a sessão.
Nas avaliações diárias, não se observou efeito significativo sobre a média geral de bebidas/dia (incluindo dias sem beber), nem sobre a frequência (proporção de dias com consumo). Contudo, houve redução significativa da quantidade consumida nos dias de beber, do craving e do número de dias de consumo pesado ao longo do tempo — especialmente na fase de 0,5 mg/semana. Em consequência, a proporção de participantes com zero dias de consumo pesado aumentou no grupo semaglutida, com resposta mais robusta em 0,5 mg/semana do que na dose inicial (0,25 mg/semana).
Mesmo em doses baixas, os efeitos observados mostraram-se promissores quando comparados aos de medicamentos tradicionais aprovados para TUA.
Um pequeno grupo de participantes também fazia uso de tabaco. Nesses casos foi observado que a semaglutida levou a maiores reduções no número de cigarros/dia quando comparado ao placebo. Porém, o número de participantes neste caso foi pequeno, reforçando a necessidade de mais estudos para a confirmação desses achados.
Quanto à segurança, eventos gastrointestinais leves (p.ex., náusea) foram mais frequentes com semaglutida. Não houve eventos adversos graves nem interações com álcool, e não ocorreram descontinuações relacionadas ao tratamento. Os participantes do grupo semaglutida perderam cerca de 5% do peso corporal, enquanto o grupo placebo apresentou discreto ganho. Não houve diferenças em sintomas depressivos, hemoglobina glicada ou pressão arterial.

Conclusões e mensagem prática: semaglutida no transtorno por uso de álcool
O estudo não buscou elucidar mecanismos, mas dados pré-clínicos apontam para envolvimento do sistema de recompensa e de circuitos de saciedade, coerentes com a redução do craving e do consumo por ocasião dos episódios de beber.
Cabe ressaltar que tais reduções ocorreram em indivíduos não motivados a mudar, o que reforça a probabilidade de que as mudanças observadas se devam ao efeito farmacológico.
A semaglutida pode configurar uma estratégia de redução de danos no TUA — com maior impacto sobre a intensidade do uso do que sobre a frequência —, embora não se espere que promova abstinência por si só. São necessários novos estudos com análogos de GLP-1 para corroborar ou refutar esses achados.
Autoria

Paula Benevenuto Hartmann
Médica pela Universidade Federal Fluminense (UFF) ⦁ Psiquiatra pelo Hospital Universitário Antônio Pedro/UFF ⦁ Mestranda em Psiquiatria e Saúde Mental pela Universidade do Porto, Portugal.
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