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Psiquiatria25 dezembro 2025

Uso de semaglutida semanal em adultos com transtorno pelo uso de álcool 

Estudo avaliou os efeitos da semaglutida subcutânea administrada uma vez por semana sobre o consumo e a fissura por álcool em adultos com TUA

O consumo de álcool é altamente prevalente, e parte dos indivíduos apresenta Transtorno por Uso de Álcool (TUA), condição associada a múltiplas comorbidades (p.ex., doença hepática) e aumento da morbimortalidade. Apesar disso, poucos buscam tratamento e menos ainda recebem abordagem farmacológica. O artigo de Hendershot CS et al., publicado no JAMA Psychiatry em fevereiro de 2025, revisita a literatura e aponta fatores que contribuem para a limitada adoção de fármacos — como o estigma, o número reduzido de medicamentos aprovados e as lacunas de conhecimento sobre sua efetividade. Ainda assim, fármacos clinicamente aceitos que reduzam o consumo podem trazer benefícios relevantes à saúde.  

Nos últimos anos, cresceu o uso de agonistas do receptor do peptídeo semelhante ao glucagon-1 (GLP-1 RAs) no tratamento da obesidade e do diabetes mellitus. A semaglutida, fármaco dessa classe e de longa duração, tem sido associada a relatos de redução do consumo e do craving (“fissura”) por álcool, o que pode ter implicações clínicas no TUA. Diante disso, os autores conduziram um ensaio clínico randomizado (ECR), duplo-cego, de fase 2, para avaliar os efeitos da semaglutida subcutânea semanal em adultos com TUA não estão em busca de tratamento.  

Como foi feito o estudo? 

  • A pesquisa foi realizada na Faculdade de Medicina da Carolina do Norte e supervisionada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da mesma instituição. Os sujeitos da pesquisa foram recrutados por meio de anúncios públicos e online. 
  • As análises estatísticas definiram uma amostra de 48 participantes randomizados com diagnóstico de TUA, sendo que a maioria apresentava gravidade moderada. Eles não deveriam estar procurando ativamente um tratamento para essa condição. 
  • Critérios de inclusão: 
    • Os participantes deveriam ter entre 21 e 65 anos;  
    • Preencher os critérios do DSM-5 para TUA no último ano;  
    • Relato de consumo de mais de 7 doses para mulheres ou mais de 14 doses para homens de bebidas alcoólicas por semana no último mês;  
    • Pelo menos 2 episódios de consumo excessivo (mínimo de 4 doses para mulheres e 5 para homens);  
    • Disponibilidade para consultas semanas e avaliações laboratoriais antes, durante e após o tratamento.  
  • Critérios de exclusão: 
    • Pacientes que procuravam por tratamento ou tentavam reduzir o consumo; 
    • Uso prévio de agonistas dos receptores de GLP-1;  
    • Uso de medicamentos para perda de peso;  
    • IMC < 23;  
    • Transtorno por uso de tabaco ou transtorno por uso de cannabis (leve), além de outros transtornos por uso de substâncias;  
    • Uso recente de drogas ilícitas (exceto cannabis);  
    • Histórico de diabetes;  
    • Doença clínica ou neurológica atual que impedisse a participação. 
  • A pesquisa possui um desenho híbrido, pois combina avaliações clínicas ambulatoriais com aquelas laboratoriais;  
  • Durante 9 semanas foram administradas semaglutida ou placebo, havendo uma consulta final de avaliação na décima semana;  
  • Os participantes concordaram em participar de uma sessão de ingestão de álcool em laboratório antes do início do tratamento. Na primeira consulta houve a administração da medicação, assim como em mais 8 consultas semanais subsequentes para administração de medicação ou placebo e uma sessão para avaliar a ingestão de álcool após o tratamento (entre as consultas 8 e 9) e uma consulta de alta sem a medicação;  
  • O uso de álcool foi avaliado laboratorialmente antes do início do tratamento e entre as semanas 8 e 9;  
  • A medicação foi administrada da forma padrão, com aumento das doses a cada 4 semanas (0,25 mg/semana no primeiro mês; 0,5 mg/semana no segundo mês e 1 mg/semana na última semana, conforme a tolerância);  
  • Na avaliação laboratorial do consumo, a bebida de preferência do participante era disponibilizada. Ele podia adiar o consumo por até 50 minutos em troca de incentivo financeiro e, em seguida, beber livremente por 120 minutos. A quantidade de álcool a ser ofertada foi definida por fórmulas antropométricas até um teto estabelecido. Mediram-se o consumo total (g) e a concentração de álcool no ar expirado (BrAC), aferida a cada 30 minutos ao longo de toda a sessão. Essas sessões ocorreram antes do tratamento e após (semanas 8–9); 
  • O consumo semanal foi estimado por métodos baseados em calendário e registros diários, avaliando-se média diária de consumo, quantidade e frequência, craving semanal e número de cigarros/dia entre fumantes. As visitas semanais incluíram peso corporal, pressão arterial sistólica/diastólica, eventos adversos e sintomas depressivos. 
  • Limitações: 
    • Tamanho da amostra e curta duração do tratamento; 
    • Opção por doses baixas da semaglutida (por questões relacionadas à segurança e viabilidade); 
    • Pacientes com gravidade do transtorno moderada – diferente de uma parcela de pacientes que busca por tratamento.

Resultados 

Ao término do estudo, a semaglutida promoveu redução significativa no consumo de álcool durante a sessão laboratorial e redução do pico de álcool expirado, com efeito de magnitude moderada a grande em comparação ao placebo. Houve também redução da concentração média de álcool ao longo de toda a sessão.  

Nas avaliações diárias, não se observou efeito significativo sobre a média geral de bebidas/dia (incluindo dias sem beber), nem sobre a frequência (proporção de dias com consumo). Contudo, houve redução significativa da quantidade consumida nos dias de beber, do craving e do número de dias de consumo pesado ao longo do tempo — especialmente na fase de 0,5 mg/semana. Em consequência, a proporção de participantes com zero dias de consumo pesado aumentou no grupo semaglutida, com resposta mais robusta em 0,5 mg/semana do que na dose inicial (0,25 mg/semana). 

Mesmo em doses baixas, os efeitos observados mostraram-se promissores quando comparados aos de medicamentos tradicionais aprovados para TUA.  

Um pequeno grupo de participantes também fazia uso de tabaco. Nesses casos foi observado que a semaglutida levou a maiores reduções no número de cigarros/dia quando comparado ao placebo. Porém, o número de participantes neste caso foi pequeno, reforçando a necessidade de mais estudos para a confirmação desses achados.  

Quanto à segurança, eventos gastrointestinais leves (p.ex., náusea) foram mais frequentes com semaglutida. Não houve eventos adversos graves nem interações com álcool, e não ocorreram descontinuações relacionadas ao tratamento. Os participantes do grupo semaglutida perderam cerca de 5% do peso corporal, enquanto o grupo placebo apresentou discreto ganho. Não houve diferenças em sintomas depressivos, hemoglobina glicada ou pressão arterial.  

Uso de semaglutida semanal em adultos com transtorno pelo uso de álcool 

Conclusões e mensagem prática: semaglutida no transtorno por uso de álcool  

O estudo não buscou elucidar mecanismos, mas dados pré-clínicos apontam para envolvimento do sistema de recompensa e de circuitos de saciedade, coerentes com a redução do craving e do consumo por ocasião dos episódios de beber. 

Cabe ressaltar que tais reduções ocorreram em indivíduos não motivados a mudar, o que reforça a probabilidade de que as mudanças observadas se devam ao efeito farmacológico. 

A semaglutida pode configurar uma estratégia de redução de danos no TUA — com maior impacto sobre a intensidade do uso do que sobre a frequência —, embora não se espere que promova abstinência por si só. São necessários novos estudos com análogos de GLP-1 para corroborar ou refutar esses achados.

Autoria

Foto de Paula Benevenuto Hartmann

Paula Benevenuto Hartmann

Médica pela Universidade Federal Fluminense (UFF) ⦁ Psiquiatra pelo Hospital Universitário Antônio Pedro/UFF ⦁ Mestranda em Psiquiatria e Saúde Mental pela Universidade do Porto, Portugal.

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Referências bibliográficas

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