Apesar de amplamente divulgada e conhecida pela população leiga, a diabetes continua altamente prevalente e subdiagnosticada em diversas populações, inclusive a brasileira. Atualmente sabemos que a dosagem da hemoglobina glicada (HbA1c) é mais sensível e específico que níveis isolados da dosagem da glicemia de jejum.
Diversas cirurgias de grande porte já possuem a caracterização das dosagem HbA1c como rotina pré-operatória, e associada de um pior prognóstico quando elevado. No entanto, na população submetida a outros tipos de procedimento ainda havia essa carência na literatura. A cirurgia geral engloba um infindável perfil de pacientes, desde procedimentos eletivos de pequeno porte, até grandes cirurgias realizadas em um cenário de urgência em pacientes extremamente graves.
O trabalho publicado na JAMA Surgery, visa buscar qual seria a influência dos níveis pré-operatórios da HbA1c no desfecho cirúrgico dos pacientes submetidos a procedimentos da cirurgia geral.

Métodos
Foram analisados os dados de pacientes entre 2021 e 2023 de um banco de dados que representa 700 hospitais pelo mundo. Foram inicialmente selecionados pacientes maiores de 18 anos com dosagem HbA1c antes da cirurgia, no entanto para excluir algum viés de seleção, uma segunda análise inclui todos os pacientes, mesmo aqueles sem a dosagem.
O desfecho primário determinado foi a presença de qualquer complicação pós-operatória sendo uma complicação clínica e/ou cirúrgica. Uma segunda análise foi o agrupamento das morbidades pós-operatórias nos 10 procedimentos mais realizados na cirurgia geral.
Resultados
Foram incluídos no estudo 282.131 pacientes submetidos a procedimentos cirúrgicos com dosagem prévia da hemoglobina glicada. Destes 36% (101.160) possuíam o diagnóstico prévio de diabetes, com diferentes níveis de controle. Dos pacientes sem o diagnóstico prévio de diabetes (180.971), 10% destes (18.133), possuíam níveis de HbA1c maior que 6,4%, ou seja sem o diagnóstico de diabetes apesar do descontrole glicêmico.
Na análise do desfecho primário ficou determinado que os pacientes diabéticos possuem um pior número de eventos quando comparada a população saudável com uma razão de chance de 1,35 95% IC 1,25-1,139 P<0,001 nos pacientes com níveis de hemoglobina glicada maior que 9%. Mesmo os pacientes diabéticos com ótimo controle glicêmico (<6,0%) a razão de chance era maior com 1,06 95% IC 1,00 – 1,11p=0,03. De maneira semelhante, os pacientes sem o diagnóstico de diabetes, porém com níveis de HbA1c maiores que 6,4%, apresentaram uma razão de chance de 1,11 95% CI 1,04-1,18 P = 0,002.
Na análise de subgrupos por procedimentos, alguns procedimentos não demonstraram a mesma tendência que a amostra completa sendo a mastectomia e a correção laparoscópica de hérnia inguinal inicial estes exemplos.
No entanto colecistectomia por vídeo, apendicectomia por vídeo, gastrectomia vertical por vídeo, colectomia parcial com anastomose videolaparoscopica, ressecção anterior de reto por vídeo com colostomia ou ileostomia, colecistectomia com colangio e o tratamento da hérnia inguinal redutível por vídeo, confirmaram a tendência global de piores desfecho com a presença de níveis elevados de hemoglobina glicada no pré operatório.
Discussão
Este estudo ratifica a importância da estratificação pré-operatória do controle glicêmico com o surgimento de complicações no pós-operatório. Há uma carência na estratificação e uso rotineiro da dosagem da hemoglobina glicada na avaliação pré-operatória e isto deve ser revisto. Na análise multivariada foi possível determinar que tanto os pacientes com diabetes têm piores desfechos quanto maiores o níveis de HbA1c, assim como aquele paciente sem diagnóstico porém com níveis elevados.
A associação de níveis elevados de glicemia e complicação cirúrgica é bem documentada e isto foi uma vez mais documentado neste estudo, demonstrando que em diversos procedimentos há uma piora do desfecho quanto pior for o controle glicêmico.
Esse estudo tem algumas limitações, entre elas, pela natureza retrospectiva apenas uma parcela do banco de dados possuía dosagens de HbA1c pré-operatória. Apesar de ter sido comparada os dados epidemiológicos, isto não exclui algum grau de viés de seleção. Independente disto, foi demonstrado que a disglicemia está associada a piores desfechos. Níveis, mesmo que discretamente elevados, estão relacionados com uma pior evolução.
Para levar para casa
É comum solicitar avaliação de risco cirúrgico e sem dúvida a glicemia de jejum é um dos exames mais solicitados. Este estudo demonstra a importância da hemoglobina glicada neste cenário e a incorporação deste exame pode ser que se torne essencial. Até mesmo mais importante que a glicemia de jejum… quem sabe?
Autoria

Felipe Victer
Editor Médico de Cirurgia Geral da Afya ⦁ Residência em Cirugia Geral pelo Hospital Universitário Clementino fraga filho (UFRJ) ⦁ Felllow do American College of Surgeons ⦁ Titular do Colégio Brasileiro de Cirurgiões ⦁ Membro da Sociedade Americana de Cirurgia Gastrointestinal e Endoscópica (Sages) ⦁ Ex-editor adjunto da Revista do Colégio Brasileiro de Cirurgiões (2016 a 2019) ⦁ Graduação em Medicina pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
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