Distúrbios abdominais relacionados à interação intestino-cérebro, como a Síndrome do Intestino Irritável (SII) e a Dor Abdominal Funcional Não Especificada (DAF-NE), são comuns em crianças e adolescentes, afetando cerca de 13,5% dessa população. Essas condições impactam negativamente a qualidade de vida e estão frequentemente associadas a transtornos como ansiedade, depressão e absenteísmo escolar.
Apesar do conhecimento sobre esses distúrbios ter avançado, ainda há variabilidade nas condutas terapêuticas e carência de dados robustos na população pediátrica. As novas diretrizes conjuntas da ESPGHAN e NASPGHAN (Sociedades Europeia e Norte Americana de Gastroenterologia, Hepatologia e Nutrição pediátrica, respectivamente), oferecem uma análise crítica da literatura atual e recomendações práticas para padronizar o tratamento com base em evidências.
Métodos
A elaboração das diretrizes seguiu a metodologia GRADE, reconhecida internacionalmente por sua rigorosidade na avaliação da qualidade das evidências e na formulação de recomendações. O grupo desenvolvedor, composto por especialistas em gastroenterologia pediátrica, psicologia e metodologia científica, avaliou cerca de 86 ensaios clínicos randomizados, com ênfase na efetividade e segurança das intervenções em crianças de 4 a 18 anos. A seleção dos desfechos seguiu um processo prévio de consenso e as decisões foram ratificadas por votação estruturada.
Resultados – Principais recomendações por categoria:
Intervenções recomendadas com forte evidência:
- Hipnoterapia
- Reduz significativamente a dor abdominal.
- Recomendada como intervenção de primeira linha.
- Evidência: moderada.
- Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC)
- Melhora a frequência e intensidade da dor, com impacto positivo no funcionamento psicológico e escolar.
- Evidência: baixa, mas consistente.
Intervenções com recomendação condicional:
- Estimulação elétrica do campo nervoso auricular (PENFS)
- Promissora para casos refratários; evidência moderada.
- Probióticos multi cepas e simbióticos
- Possível benefício, especialmente com Lactobacillus rhamnosus GG em pacientes com SII.
- Óleo de hortelã-pimenta com revestimento entérico
- Pode aliviar dor abdominal funcional, mas com evidência limitada.
- Amitriptilina e domperidona
- Efeitos modestos; uso com cautela e sob supervisão especializada.
Intervenções não recomendadas:
- Buspirona, mebeverina, drotaverina, citalopram, yoga
- Falta de eficácia demonstrada em estudos pediátricos.
- Cirurgia
- Contraindicada em todos os casos.
Boas práticas clínicas sugeridas:
- Educação inicial do paciente e família sobre o diagnóstico funcional: reforçar a ausência de causas orgânicas e explicar o papel da comunicação intestino-cérebro.
- Cautela com dietas restritivas: devem ser sempre orientadas por nutricionista para evitar riscos nutricionais e transtornos alimentares.
- Probióticos OTC: orientar o paciente quanto à escolha de produtos com cepas estudadas e eficácia comprovada.
Conclusão: diretriz para SII e Dor Abdominal Funcional na pediatria
As novas diretrizes da ESPGHAN/NASPGHAN oferecem uma base sólida e prática para o manejo da SII e da DAF-NE na infância e adolescência. As evidências apoiam fortemente o uso de terapias psicossociais, como hipnoterapia e TCC, como pilares do tratamento. Por outro lado, diversas intervenções farmacológicas frequentemente usadas na prática não demonstraram benefício significativo. Há ainda espaço para pesquisas futuras, especialmente com foco em segurança e impacto a longo prazo.
Mensagem prática
Na prática clínica, é comum o pediatra ou gastroenterologista pediátrico sentir-se pressionado a “prescrever algo” diante da dor persistente e da angústia familiar, diante de uma condição clínica que é de fato desafiadora. Esta diretriz reforça que a escuta qualificada, a validação dos sintomas e a educação sobre o diagnóstico funcional são ferramentas terapêuticas potentes. A abordagem biopsicossocial precisa ser o centro da condução, com ênfase na restauração da funcionalidade da criança (volta à escola, alimentação regular, sono adequado), mais do que na eliminação imediata da dor. Ao considerar tratamentos como hipnoterapia ou TCC, vale investir em articulação com psicólogos experientes em dor crônica funcional pediátrica, mesmo que a oferta seja limitada no sistema de saúde.
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