Nos últimos 30 anos, as diretrizes clínicas passaram de quase inexistentes a ferramentas centrais na tomada de decisão em saúde. Entretanto, com essa popularização surgiram novos desafios: diretrizes baseadas em evidências fracas, conflitos de interesse, metodologias opacas e dificuldade de aplicação prática.
Durante a palestra do Dr. Morris no congresso da European Society for Paediatric Gastroenterology, Hepatology and Nutrition (ESPGHAN 2025), ele apresentou os princípios por trás da nova diretriz conjunta ESPGHAN/NASPGHAN sobre o uso de probióticos para dor abdominal funcional em crianças. Ele não apenas explorou o conteúdo da diretriz, mas destaca uma mudança fundamental na metodologia de desenvolvimento, defendendo maior transparência, rigor e aplicabilidade.
A evolução das diretrizes clínicas
As diretrizes são fundamentais, mas não infalíveis. Vários problemas podem comprometer sua utilidade:
- Falta de evidência robusta: muitas áreas clínicas ainda carecem de ensaios controlados bem conduzidos.
- Atualização lenta: diretrizes podem levar anos para refletir novos achados.
- Recursos limitados: desenvolver diretrizes exige equipe, tempo e financiamento.
- Conflitos de interesse: decisões podem ser influenciadas por vieses pessoais ou institucionais.
- Fragilidade metodológica: há risco de metodologias pobres serem adotadas como solução para evidências fracas.
A nova abordagem: Diretriz ESPGHAN/NASPGHAN como modelo
A diretriz conjunta propôs uma série de inovações metodológicas com foco em qualidade, transparência e aplicabilidade:
- Colaboração internacional: A parceria entre sociedades europeias e norte-americanas trouxe robustez e diversidade.
- Pré-publicação dos métodos: aumenta a confiabilidade e permite escrutínio externo.
- Síntese primária própria: ao invés de confiar em revisões publicadas, a força-tarefa realizou novas meta-análises e revisões sistemáticas.
- Uso rigoroso da metodologia GRADE: da avaliação da evidência à formulação das recomendações, com padronização da linguagem (“forte”, “condicional”, etc.).
Os cinco pilares das recomendações baseadas em grade
Metanálise
Mais do que observar a linha do efeito ou o “diamante” do forest plot, é preciso compreender:
- Quantos estudos apontam efeito real?
- Há consistência entre os resultados?
- Qual o desfecho clínico analisado (frequência ou intensidade da dor, por exemplo)?
Avaliação do risco de viés
Cada estudo incluído é avaliado de forma individualizada, com base na ferramenta Cochrane. A abordagem inclui:
- Contato direto com autores para obter dados adicionais.
- Contextualização: por exemplo, em intervenções psicológicas onde o cegamento é inviável, o julgamento deve ser proporcional.
- Avaliação do impacto do viés: em meta-análises com poucos estudos, um único estudo com alto risco pode distorcer o resultado global.
Classificação da certeza da evidência
A classificação (alta, moderada, baixa, muito baixa) não é uma escala linear. Cada mudança de nível exige um conjunto de critérios:
- Imprecisão: intervalos de confiança amplos?
- Inconsistência: os estudos contam a mesma história?
- Magnitude do efeito: o resultado é clinicamente relevante?
Magnitude do efeito
Uma redução de 0,6 episódios de dor por semana é clinicamente significativa? Depende. A força-tarefa estabeleceu limiares prévios de relevância clínica, permitindo julgamentos mais objetivos e reprodutíveis.
Formulação da recomendação
Com base na evidência, mas também em fatores contextuais, como:
- Disponibilidade da intervenção.
- Aceitabilidade pelo paciente.
- Custo e viabilidade.
GRADE se diferencia de sistemas anteriores, como a pirâmide de Oxford, ao reconhecer que nem toda revisão sistemática é superior a um bom ensaio clínico individual.
Conclusão
A diretriz conjunta ESPGHAN/NASPGHAN representa não apenas um avanço no conteúdo clínico, mas uma mudança de paradigma na forma de produzir diretrizes. O foco desloca-se do consenso de especialistas para um processo metodológico robusto e transparente, que valoriza a evidência, reconhece suas limitações e propõe recomendações que podem ser compreendidas, aplicadas e discutidas com os pacientes.
Mensagens práticas
- GRADE não é uma escala de opinião, mas um sistema estruturado de julgamento baseado em evidência;
- A qualidade do processo de síntese é tão importante quanto a qualidade dos estudos incluídos;
- Recomendações devem ser contextualizadas e não se basear unicamente em estatísticas;
- Transparência e documentação clara fortalecem a confiabilidade da diretriz;
- A decisão final deve considerar evidência, viabilidade e preferência do paciente, que é o verdadeiro centro do cuidado.
Como você avalia este conteúdo?
Sua opinião ajudará outros médicos a encontrar conteúdos mais relevantes.