A lesão cerebral aguda (LCA) envolve contextos patológicos como o traumatismo cranioencefálico (TCE), hemorragia subaracnóidea aneurismática (HSAa) e hemorragia intracerebral (HIC) e representa uma das principais causas de morbidade e mortalidade no ambiente neurocrítico.
A anemia é uma complicação frequente nesses pacientes e tem sido associada a desfechos neurológicos desfavoráveis, uma vez que impacta diretamente na redução de oxigênio ofertado ao cérebro.
Entretanto, diferentes estratégias e limiares de hemoglobina para indicação de necessidade transfusional são praticados, sendo um tema controverso.
Estratégias restritivas de transfusão, com limiares de Hb ≤ 7– 8 g/dL, visam reduzir riscos como sobrecarga volêmica, imunossupressão e infecções. Por outro lado, estratégias liberais, com limiares de Hb ≤ 9 –10 g/dL, têm o objetivo de melhorar a oxigenação cerebral em um contexto de autorregulação comprometida.
Neste cenário, a meta-análise atualizada de Nguyen et al., publicada em 2025 no periódico Critical Care, reuniu as evidências mais recentes e relevantes de ensaios clínicos randomizados comparando estratégias transfusionais em pacientes com lesão cerebral aguda.
Métodos
Trata-se de uma revisão sistemática com meta-análise conduzida segundo as diretrizes PRISMA 2020 e Cochrane Handbook. O protocolo foi previamente registrado na plataforma PROSPERO.
Critérios de inclusão
- Ensaios clínicos randomizados comparando estratégias de transfusão liberal versus restritiva;
- Pacientes adultos com LCA internados em unidades de terapia intensiva;
- LCA incluindo TCE, HSAa ou HIC;
- Intervenções com limiares transfusionais:
Liberal: transfusão iniciada com Hb ≤ 9–10 g/dL;
Restritiva: transfusão iniciada com Hb ≤ 7–8 g/dL.
- Relato de ao menos um dos seguintes desfechos clínicos: sepse ou choque séptico, mortalidade na UTI, desfecho neurológico desfavorável, síndrome do desconforto respiratório agudo (SDRA), tromboembolismo venoso e mortalidade hospitalar.
Fontes de dados
Buscas sistemáticas foram realizadas nas bases PubMed, Embase e Cochrane Central até janeiro de 2025, incluindo também referências de revisões anteriores. Dois revisores independentes selecionaram e extraíram os dados dos estudos.
Desfecho primário
- Desfecho neurológico desfavorável em 6 meses (definido por escalas como mRS ≥ 4, GOS 1–3 ou GOS-E 1–5, conforme cada estudo);
- Ocorrência de sepse ou choque séptico.
Desfechos secundários
- Mortalidade na UTI;
- Mortalidade hospitalar;
- TEV (trombose venosa profunda ou embolia pulmonar);
- SDRA.
Análise estatística
Os desfechos foram analisados por meio de razão de risco (RR) com intervalos de confiança (IC) de 95%. Heterogeneidade foi avaliada pelo teste de Cochran (Q) e I². Modelos de efeitos aleatórios (DerSimonian e Laird) foram utilizados. A qualidade da evidência foi avaliada via GRADE.
Resultados
Foram incluídos cinco ECRs, totalizando 2.399 pacientes:
- 1.191 no grupo de transfusão liberal;
- 1.208 no grupo de transfusão restritiva.
Entre os estudos, três foram publicados em 2024 (HEMOTION, TRAIN e SAHARA) e representaram a maior parte da amostra. Quatro estudos incluíram pacientes com TCE, e um estudo focou exclusivamente em HSAa.
As características dos participantes incluídos foram:
- Idade média: entre 48 e 59 anos;
- Predominância de homens (55–75%);
- Hemoglobina inicial média próxima a 9 g/dL;
- Tempo entre evento e randomização: mediana de 50–70 horas.
Desfecho neurológico desfavorável
O maior risco de desfecho neurológico desfavorável após 6 meses ocorreu no grupo de estratégia restritiva em comparação com estratégia liberal (RR 1,13; IC 95% 1,06–1,21; p = 0,0003), indicando um aumento absoluto de risco de aproximadamente 6%.
A heterogeneidade da amostra foi baixa.
Sepse ou choque séptico
A ocorrência foi significativamente maior no grupo estratégia restritiva (RR 1,42; IC 95% 1,08–1,86; p = 0,01). Subanálises revelaram que essa diferença foi particularmente evidente em pacientes com TCE e quando o limiar liberal adotado foi ≤ 9 g/dL.
Outros desfechos
- Mortalidade na UTI: Sem diferença significativa (RR 1,00; IC 95% 0,84–1,20; p = 0,96);
- Mortalidade hospitalar: Sem diferença (RR 0,98; IC 95% 0,76–1,26; p = 0,89);
- TEV: Incidência semelhante entre os grupos (RR 0,88; IC 95% 0,56–1,38; p = 0,58);
- SDRA: Embora uma preocupação comum, não houve aumento significativo no grupo de estratégia liberal (RR 1,05; IC 95% 0,69–1,61; p = 0,81).
Análises de subgrupos
- Estratégias liberais com Hb ≤ 9 g/dL apresentaram benefício mais evidente do que com Hb ≤ 10 g/dL.
- Em pacientes com HSAa, o benefício da estratégia liberal foi menor, sugerindo efeito mais marcante dessa ferramenta nos pacientes com TCE.
Sensibilidade e qualidade da evidência
- Análises de sensibilidade mostraram robustez dos achados.
- Evidência considerada de alta qualidade para os desfechos de sepse e desfecho neurológico desfavorável segundo GRADE.
Discussão
Esta meta-análise sugere que uma estratégia de transfusão liberal em pacientes neurocríticos com anemia é superior à restritiva quanto à redução de sepse e melhora dos desfechos neurológicos em 6 meses (principalmente em um contexto de funcionalidade global).
Os achados são particularmente relevantes em populações com TCE, nas quais a autorregulação cerebral está comprometida de forma contundente, alterando equilíbrio de demanda e oferta de oxigênio, que pode ser facilitado pela otimização dos níveis de hemoglobina.
Importante ressaltar que tanto o trauma cerebral quanto a anemia são correlacionados com um estado clínico de imunossupressão transitória, podendo ser relacionado com infecções oportunistas e quadros sépticos. No aspecto objetivo de controle da anemia, estudos prévios já relataram a correlação do grau de anemia e gravidade da sepse em pacientes críticos.
Apesar disso, a ausência de benefício em mortalidade direta e a semelhança nos eventos adversos reforçam a necessidade de individualizar as decisões transfusionais, sempre considerando a presença de comorbidades ou disfunções cardíacas e renais. O risco teórico de complicações como edema cerebral, vasoespasmo e SDRA deve ser considerado em subgrupos específicos, principalmente naqueles como HSAa.
Limitações do estudo
Embora metodologicamente sólida, esta meta-análise apresenta limitações que merecem consideração crítica.
A principal refere-se à heterogeneidade clínica e terapêutica entre os estudos incluídos, com predomínio de pacientes com traumatismo cranioencefálico e representação limitada de outras etiologias de lesão cerebral aguda, como hemorragia subaracnóidea aneurismática. Isso restringe a extrapolação dos achados para subgrupos específicos.
Além disso, houve variação nos limiares de hemoglobina adotados para definir estratégias liberal e restritiva, o que pode impactar na interpretação dos efeitos observados.
O número reduzido de ensaios clínicos também limita o poder estatístico para avaliar desfechos secundários menos frequentes.
Mensagem final
Em pacientes com lesão cerebral aguda, uma estratégia liberal de hemotransfusão (Hb ≤ 9 –10 g/dL) foi associada a menor incidência de sepse e desfechos neurológicos desfavoráveis em comparação à estratégia restritiva (Hb ≤ 7– 8 g/dL), sem impacto negativo na mortalidade.
Os resultados sustentam a reavaliação dos limiares transfusionais em protocolos neurocríticos, com ênfase na definição de estratégias individualizadas em equilíbrio com demais nuances e particularidades clínicas dos pacientes.
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