A hemorragia subaracnóidea aneurismática (HSAa) é condição grave e com alta morbimortalidade diante do risco de complicações neurológicas precoces e tardias após a ruptura do aneurisma. A anemia ocorre em mais de 50% dos casos de HSAa e está associada a piores desfechos clínicos em razão da redução de oferta de oxigenação cerebral. Embora a hemotransfusão possa melhorar essa oferta, ainda não está claro se essa intervenção está associada a melhora clínica nesses pacientes. Inclusive, em diretrizes recentes, as recomendações sobre hemotransfusão nessa população são limitadas e conflitantes considerando que esses dados são baseados em pequenos estudos observacionais.
A New England Journal of Medicine, em 2024, publica o estudo SAHARA que se propõe a suprir essa lacuna. Trata-se de ensaio clínico randomizado que comparou estratégia de hemotransfusão liberal versus hemotransfusão restritiva para pacientes anêmicos com hemorragia subaracnóidea aneurismática.
Métodos
Trata-se de ensaio clínico randomizado, multicêntrico, aberto, com avaliação cega dos desfechos propostos. Foi conduzido em centros de neurointensiva presentes no Canadá, Austrália e Estados Unidos.
Foram incluídos adultos ≥ 18 anos com primeiro evento de HSAa com nível sérico de hemoglobina ≤ 10g/dL dentro dos primeiros 10 dias de admissão hospitalar. Participantes com hemorragia subaracnóidea não-aneurismática, sangramento ativo com instabilidade hemodinâmica ou contraindicações à hemotransfusão foram excluídos.
Os participantes elegíveis foram randomicamente divididos em dois grupos, razão 1:1, para (1) Grupo com estratégia liberal (administrado hemoconcentrado quando Hb ≤ 10) e (2) Grupo com estratégia restritiva (administrado hemoconcentrado quando Hb ≤ 8).
O desfecho primário foi avaliação de desfecho neurológico funcional desfavorável (escala de Rankin modificado ≥ 4) após 12 meses do ictus cerebrovascular. Desfechos secundários como avaliação de independência funcional (através da escala Functional Independence Measure – FIM), de qualidade de vida (European QoL Five Dimension – EQ-5D-5L e Visual Analogical Scale – VAS), vasospasmo e isquemia cerebral tardia nos primeiros 21 dias de hospitalização foram investigados.
Resultados
O estudo piloto foi conduzido entre 2015 e 2016 com 60 pacientes. Após essa fase, entre março de 2018 e julho de 2023, 682 pacientes foram recrutados para o estudo, totalizando, portanto, 742 participantes. Entre os 742 participantes elegíveis, 9 declinaram consentimento e 1 óbito, resultando em 364 participantes para o grupo de estratégia liberal para hemotransfusão e 361 para o grupo de estratégia restritiva para hemotransfusão.
As características sociodemográficas da amostra consistiram em idade média de 59.4 anos, 82% mulheres, com incidência de condições clínicas coexistentes similares entre os grupos. Além disso, as características clínicas e radiológicas da HSAa foram também similares entre os grupos. A média para hemotransfusão foi de 9,6g/dL no grupo de estratégia liberal e de 7,6g/dL no de estratégia restritiva. Houve violação de protocolo em 2,2% no grupo de estratégia liberal e em 0,9% no de estratégia restritiva.
Foi encontrado desfecho neurológico desfavorável após 12 meses em 122/364 (33,5%) no grupo de estratégia liberal e de 136/361 (37,7%) no grupo de estratégia restritiva (RR 0,88; IC 95% 0,72-1,09, p = 0,22).
Os desfechos secundários analisados, em geral, não apresentaram diferenças significativas entre os grupos (exceto para avaliação de vasospasmo em neuroimagem). Quanto à avaliação de independência funcional, o escore total médio no FIM foi de 82,8 (±54,6) no grupo liberal e 79,8 (±54,5) no grupo restritivo, indicando uma diferença não significativa (diferença média: 3,01; IC 95% -5,49 a 11,51). A avaliação de qualidade de vida também foi similar entre os grupos na aplicação do índice EQ-5D-5L que apresentou valores médios idênticos entre os grupos (0,5 ±0,4), enquanto o escore na escala visual analógica (VAS) foi ligeiramente maior no grupo liberal (52,1 ±37,5) em comparação ao grupo restritivo (50 ±37,1), mas sem significância estatística (diferença média: 2,08; IC 95% -3,76 a 7,93). Na avaliação de presença de vasoespasmo, foi observado em 31,5% dos pacientes no grupo liberal e 40,7% no grupo restritivo, representando uma redução significativa no grupo liberal (RR 0,77; IC 95% 0,63–0,95). Por fim, quanto à avaliação de isquemia cerebral tardia, não houve diferenças significativas entre os grupos (17,5% no grupo liberal versus 19,9% no grupo restritivo; RR 0,88; IC 95% 0,64–1,21).
A incidência de reações adversas à hemotransfusão foi similar entre ambos os grupos.
Discussão: Hemotransfusão liberal versus restritiva em hemorragia subaracnóidea
Não foi encontrada diferença significativa para desfecho funcional desfavorável entre as estratégias de hemotransfusão em pacientes anêmicos com HSAa.
Dois grandes estudos em populações neurocríticas fornecem contextos adicionais para interpretar os achados do SAHARA. O primeiro estudo avaliou pacientes com traumatismo cranioencefálico e anemia, comparando estratégias liberal (hemoglobina ≤ 10 g/dL) e restritiva (hemoglobina ≤ 7 g/dL). Esse ensaio não identificou diferenças significativas nos desfechos funcionais após 6 meses. O segundo estudo incluiu uma população neurocrítica heterogênea, na qual 23% eram pacientes com HSAa. Nesse caso, uma estratégia liberal (hemoglobina < 9 g/dL) foi associada a melhores desfechos funcionais em comparação à restritiva (hemoglobina < 7 g/dL). Essas variações destacam como diferenças em limiares transfusionais e composição das populações podem influenciar os resultados.
A natureza aberta do estudo pode ter introduzido viés, minimizado pela avaliação cega dos desfechos. Além disso, desfechos como vasoespasmo e isquemia cerebral tardia dependem de definições que não são plenamente consensuais.
Mensagem final
Em pacientes com hemorragia subaracnóidea aneurismática (HSAa) e anemia, uma estratégia liberal de hemotransfusão não reduziu o risco de desfecho funcional desfavorável em comparação à estratégia restritiva. Estudos futuros devem explorar desfechos centrados no paciente e medidas mais sensíveis para capturar diferenças clínicas significativas.
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