Entre os fatores de risco modificáveis para demência, destaca-se a diabetes mellitus tipo 2, responsável por cerca de 5% da fração atribuível da doença na população. Apesar do reconhecimento desse risco, ainda faltam evidências robustas sobre a eficácia de terapias hipoglicemiantes para prevenção de demência. Em pacientes com diabetes tipo 2 e doença cardiovascular ou fatores de risco cardiovasculares, as diretrizes recomendam classes farmacológicas cardioprotetoras, como inibidores do cotransportador sódio-glicose tipo 2 (SGLT2i) e agonistas do receptor de peptídeo semelhante ao glucagon tipo 1 (GLP-1RA), como tratamentos de primeira linha, com base em estudos clínicos randomizados de fase III que relataram redução significativa de eventos cardiovasculares. Metformina e pioglitazona são considerados, por sua vez, como terapias de segunda linha.
Estudos observacionais prévios sugeriram que essas classes podem ter efeito neuroprotetor, mas os resultados são inconsistentes. Assim, a JAMA Neurology, neste ano, publica revisão sistemática e meta-análise de ensaios clínicos randomizados para investigar se essas terapias possuem associação com redução de risco de demência ou de comprometimento cognitivo.
Métodos
Trata-se de revisão sistemática com meta-análise, com registro na PROSPERO, seguindo as orientações do PRISMA. A busca sistemática foi realizada nas bases de dados PubMed e Embase, abrangendo artigos publicados desde a criação das bases até 11 de junho de 2024.
Os estudos foram considerados elegíveis se contemplassem: (1) ensaios clínicos randomizados; (2) adultos com mais de 18 anos; (3) sob uso de terapias hipoglicemiantes cardioprotetoras recomendadas em diretrizes, com base em achados de ensaios clínicos randomizados de fase III, comparadas a controles; (4) com relatos de demência, comprometimento cognitivo e/ou mudança em escore cognitivo; e (5) tempo mínimo de seguimento de 6 meses. As intervenções hipoglicemiantes elegíveis incluíram as seguintes classes e fármacos: SGLT2is, GLP-1RAs, metformina e pioglitazona.
O desfecho primário desta meta-análise foi demência ou comprometimento cognitivo durante o seguimento. Foi utilizada uma abordagem hierárquica, incluindo ensaios que relataram incidência de demência, ou um composto de demência ou comprometimento cognitivo (caso a demência isolada não fosse informada) no acompanhamento. Os desfechos secundários incluíram subtipos de demência, como demência vascular e demência de Alzheimer, além de mudança em escore cognitivo.
A qualidade metodológica dos ensaios incluídos foi avaliada utilizando a ferramenta Cochrane Risk of Bias 2.
Resultados
Uma busca sistemática de artigos publicados até 11 de junho de 2024 identificou 3.831 artigos; após triagem de títulos e resumos, 505 artigos foram considerados potencialmente relevantes. Após revisão do texto completo e verificação no ClinicalTrials.gov, 26 ensaios clínicos foram incluídos. No total, foram analisados 164.531 participantes oriundos desses 26 ensaios, com idade média de 64.4 anos, sendo 34.9% mulheres. A duração média de follow-up foi de 31.4 meses. Em geral, o risco global de viés foi classificado como baixo para todos os ensaios.
Entre os 26 estudos, 23 ensaios relataram dados sobre incidência de demência ou comprometimento cognitivo durante o seguimento (160.191 participantes); 12 ensaios avaliaram SGLT2is, 10 ensaios avaliaram GLP-1RAs e 1 ensaio avaliou pioglitazona (nenhum ensaio de metformina foi identificado).
Considerando o desfecho primário do estudo, demência ou comprometimento cognitivo foi diagnosticado em 93 participantes no grupo intervenção e em 119 participantes no grupo controle durante o seguimento. A terapia hipoglicemiante, avaliada de forma conjunta quanto às classes das drogas, não foi associada a uma redução significativa no risco de comprometimento cognitivo ou demência (0.12% vs 0.14% em uma média de 31.8 meses de follow-up; OR 0,83 [IC 95% 0,60–1,14]; ARR 0,02% [IC 95% –1,00% a 0,09%]; I² = 6.6%). Por outro lado, considerando a terapia hipoglicemiante com GLP-1RAs (OR 0,55 [IC 95% 0,35–0,86]), mas não com SGLT2is (OR 1,20 [IC 95% 0,67–2,17]), foi estatisticamente associada a redução de comprometimento cognitivo ou demência (valor de p para heterogeneidade = 0.04).
Considerando os desfechos secundários do estudo, foi avaliada a associação de terapia hipoglicemiante com subtipos de demência, na qual foi evidenciado os seguintes achados:
Demência vascular: 10 ensaios clínicos relataram taxas de demência vascular no seguimento (94.648 participantes). A demência vascular foi diagnosticada em 6 participantes no grupo intervenção e 16 participantes no grupo controle em que a terapia hipoglicemiante não foi significativamente associada a uma redução de demência vascular (0,01% vs 0,03% em follow-up médio de 35,7 meses; OR 0,45 [IC 95% 0,19–1,07]; I² = 0,0%). Este resultado foi consistente entre as classes de medicamentos (SGLT2i OR 0,35 [IC 95% 0,09–1,36]; GLP-1RA OR 0,38 [IC 95% 0,18–1,61]; valor de p para heterogeneidade = 0,93).
Demência na doença de Alzheimer: 12 ensaios relataram taxas de demência de Alzheimer (115.840 participantes). A demência de Alzheimer foi diagnosticada em 56 participantes no grupo intervenção e 51 participantes no grupo controle em que a terapia hipoglicemiante não foi associada a uma redução significativa de demência de Alzheimer (0,09% vs 0,09% em follow-up médio de 37,1 meses; OR 1,20 [IC 95% 0,82–1,77]; I² = 0,0%). Este resultado foi consistente entre as classes de fármacos (SGLT2i OR 1,99 [IC 95% 0,59–6,71]; GLP-1RA OR 1,85 [IC 95% 0,52–6,57]; pioglitazona OR 1.07 [IC 95% 0,70–1,65]).
Demência por corpos de Lewy: 4 ensaios relataram taxas de demência por corpos de Lewy (47.287 participantes). Essa demência foi diagnosticada em 1 participante no grupo intervenção e 3 participantes no grupo controle em que a terapia hipoglicemiante não foi associada a redução significativa de demência por corpúsculos de Lewy (0,004% vs 0,01% em follow-up médio de 37,9 meses; OR 0,58 [IC 95% 0,12–2,86]; I² = 0,0%).
Demência frontotemporal: Não foi possível realizar meta-análise para esse subtipo considerando dados insuficientes para essa análise.
Discussão: controle glicêmico reduz risco de demência?
Este estudo demonstra que, de modo geral, as terapias hipoglicemiantes cardioprotetoras não reduziram significativamente a incidência de demência. No entanto, ao avaliar a intervenção com os GLP-1RAs, houve uma associação positiva, sugerindo possível benefício neuroprotetor. A ausência de efeito dos SGLT2is pode estar relacionada a diferenças de população, eventos de demência menos frequentes ou menor poder estatístico. Além disso, as taxas de demência relatadas foram mais baixas que as observadas em estudos de coorte, provavelmente devido ao perfil mais jovem dos participantes e ao curto tempo de seguimento (média de 31.4 meses).
Ainda assim, os achados presentes nessa meta-análise acrescentaram novas informações à literatura existente. Uma meta-análise de 2023 de ensaios clínicos randomizados, por exemplo, não demonstrou redução significativa no risco de demência e incluiu 21 ensaios, abrangendo inibidores de DPP-4, GLP-1RAs e SGLT2is.
Uma limitação desta meta-análise é que a maioria dos ensaios clínicos não avaliou sistematicamente os participantes para demência, resultando em uma taxa baixa de eventos. Outras possíveis razões para a baixa taxa de eventos incluem a idade média relativamente jovem dos participantes e o tempo de seguimento relativamente curto. Entretanto, como todos os ensaios clínicos foram controlados por placebo, estima-se que as razões de risco relativas não apresentem viés.
Futuramente teremos novas evidências acerca desse tema. Atualmente, há vários ensaios clínicos randomizados em andamento avaliando os efeitos neuroprotetores dos GLP-1RAs e SGLT2is. Os autores dessa publicação, inclusive, citam estudos em curso em populações com doença de Alzheimer inicial ou comprometimento cognitivo leve, como os ensaios EVOKE (NCT04777396) e LIGHT-MCI (NCT05313529), além de estudos com voluntários saudáveis com fatores de risco vascular, como o OxSENSE (NCT06363487).
Mensagem prática
Nesta meta-análise de ensaios clínicos randomizados, a terapia hipoglicemiante não apresentou associação com redução de risco em demência ou comprometimento cognitivo, ainda que os resultados com a classe de GLP-1Ras tenham demonstrado possível benefício neuroprotetor. Ensaios clínicos futuros são necessários para explorar evidências mais sólidas acerca desse tema.
Como você avalia este conteúdo?
Sua opinião ajudará outros médicos a encontrar conteúdos mais relevantes.