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Neurologia19 dezembro 2025

Dengue e complicações neurológicas: qual é o risco real? 

Estudo avaliou o risco e o impacto de eventos neurológicos em uma coorte de adultos infectados pelo vírus da dengue
Por Danielle Calil

A dengue (DENV) é uma das infecções virais mais prevalentes do mundo, principalmente considerando as alterações climáticas e o aquecimento global que possibilitam a expansão da transmissão desse vírus em regiões temperadas durante períodos favoráveis estações, aumentando ainda mais o impacto potencial deste vírus comum infecção. 

As estimativas da prevalência de eventos neurológicos na infecção aguda por DENV variam bastante na literatura, sendo estimadas entre 0,5% a 21% dos pacientes, com heterogeneidade significativa entre estudos. Ademais, a maioria dos estudos existentes que investigam a associação entre infecção aguda por DEN e eventos neurológicos são significativamente limitados pela inclusão de casos mais graves e hospitalizados infectados pelo vírus, superestimando essas estimativas de prevalência. 

O estudo publicado em 2025 no JAMA Neurology buscou suprir essa lacuna, analisando mais de 65 mil adultos com dengue confirmada, comparados a mais de 1,6 milhão de controles, em um cenário nacional com alta qualidade de registros de saúde em Singapura.  

Métodos 

Trata-se de estudo de coorte retrospectivo, baseado em registros nacionais de Singapura (2017–2023). Singapura é um país onde a infecção pelo DENV é endêmica e possui notificação obrigatória ao Ministério da Saúde dentro de 24 horas após o diagnóstico dessa infecção. A testagem diagnóstica confirmatória para DENV está amplamente disponível em todos os níveis de atenção à saúde no país. 

Foi utilizado um desenho de coorte retrospectiva (Figura 1). Foram incluídos cidadãos singapurenses ou residentes permanentes com 18 anos ou mais, sem informações sociodemográficas faltantes e que estivessem vivos na data-índice (tempo zero – T0). A inclusão ocorreu entre janeiro de 2017 e dezembro de 2023. Para a coorte infectada por DENV, o T0 foi definido como a data da notificação do caso; para os comparadores não infectados, sem qualquer evidência de infecção por DENV no período, o T0 foi atribuído aleatoriamente, seguindo a mesma distribuição temporal dos casos positivos. 

Considerando o surgimento subsequente da covid-19 e o risco já reconhecido de complicações neurológicas agudas de longo prazo após infecção por SARS-CoV-2, indivíduos com infecção documentada por SARS-CoV-2 no registro nacional dentro de 30 dias do T0 também foram excluídos. 

O desfecho primário avaliado foi presença de eventos neurológicos incidentes até 30, 60 e 90 dias após o T0 (notificação da dengue). A presença desses eventos foi avaliada utilizando o banco nacional de registros administrativos de saúde (Mediclaims). Qualquer evento neurológico agudo foi definido como um composto que incluía: distúrbios cerebrovasculares, perda de memória, distúrbios do movimento (por exemplo, tremor, distonia), outros distúrbios neurológicos (fadiga ou mal-estar, distúrbios do sono, tontura, síndrome de Guillain-Barré, mielite transversa, encefalite ou encefalopatia), distúrbios episódicos (como crise epiléptica e cefaleia), neuropatias periféricas, distúrbios sensitivos. 

As análises estatísticas utilizaram overlap weighting para ajuste de covariáveis e regressão logística para estimar odds ratios ajustados (aOR). O estudo ainda avaliou estratos por idade, gravidade, sorologia IgG, e período de circulação de sorotipos, especialmente DENV3.  

Resultados 

Um total de 65.207 adultos singapurenses com infecção por DENV confirmada laboratorialmente (idade média 48,4 anos sendo 53,5% homens) foi comparado a 1.616.865 indivíduos contemporâneos não infectados (idade média 54,8 anos sendo 45,2% homens), após aplicação dos critérios de inclusão e exclusão do estudo. 

Entre aqueles com infecção por dengue, a maioria (≥ 70%) não chegou a ser hospitalizada, e a mortalidade foi baixa (< 1%), com 199 óbitos registrados em até 30 dias após a infecção (~0,3%). 

Na avaliação dos desfechos do estudo: 

  • Após 30 dias da infecção por dengue: Os participantes infectados, comparados aos indivíduos não infectados, apresentaram maior chance de qualquer evento neurológico composto (OR ajustada (aOR) 9,69; IC 95%, 6,59–14,90), bem como maior chance de: perda de memória (aOR, 3,19; IC 95%, 1,36–8,69); distúrbios do movimento (aOR, 7,10; IC 95%, 2,49–29,18); outros eventos neurológicos (aOR, 14,32; IC 95%, 8,61–26,04). 
  • Resultados semelhantes foram observados nos seguimentos de 60 e 90 dias. 

É importante destacar que as chances aumentadas de eventos neurológicos (composto) permaneceram elevadas ao avaliar subgrupos como casos ambulatoriais e hospitalizados; indivíduos DENV-IgG–positivos e DENV-IgG–negativos; períodos de predominância dos sorotipos DENV1/2 e DENV3 – quando comparados aos indivíduos não infectados. 

Indivíduos com DENV3 apresentaram aumento significativo de risco de perda de memória de início recente (aOR, 3,32; IC 95%, 1,34–9,76) e distúrbios do movimento (aOR, 5,13; IC 95%, 1,71–21,88) quando comparados aos não infectados. O pequeno número de eventos neurológicos durante períodos dominados por DENV1/2 impediu estimativas semelhantes.  

Dengue e complicações neurológicas: qual é o risco real? 

Discussão: Dengue e complicações neurológicas

Este estudo apresenta uma importante robustez, considerando sua amostra de base populacional, ao investigar o risco de eventos neurológicos após dengue aguda. Os achados no estudo mostram que a dengue pode desencadear uma variedade ampla de manifestações neurológicos (inclusive em casos leves e não hospitalares). Ainda assim, o impacto absoluto populacional é modesto, (representando menos de 1 evento adicional por 100 indivíduos), reforçando que complicações graves são, de fato, incomuns. 

As manifestações neurológicas na infecção por dengue podem ser atribuídas a diversos mecanismos fisiopatológicos, incluindo invasão viral direta, complicações sistêmicas da infecção aguda e síndromes autoimunes pós-infecciosas. Evidências experimentais mostram perda neuronal e comprometimento funcional mediados pelo DENV em modelos animais. 

Entre os pontos fortes desse estudo, destaca-se: o uso de registros nacionais abrangentes para classificar casos de dengue (com confirmação diagnóstica, o que reduz erros de classificação) e identificação de eventos neurológicos com uso de bases de dados nacionais de reivindicações de saúde (minimizando perdas de seguimento). 

Por outro lado, algumas limitações merecem ser pontuadas. Algumas variáveis que podem ser consideradas potenciais fatores de confusão (ex. indicadores de condição socioeconômica eram limitados ao tipo de moradia e à renda domiciliar por área) não foram possíveis ajustes por dificuldade de mensuração; não foram contempladas infecções assintomáticas de dengue que geralmente são subnotificadas; além do sorotipo viral ter sido inferido com base na circulação predominante (e não por sequenciamento individual, o que pode gerar erro de classificação). Por fim, os resultados podem não ser generalizáveis para outras populações, especialmente não asiáticas, e não se aplicam a populações pediátricas.  

Mensagem prática 

  • A dengue aumenta o risco de novos eventos neurológicos nas semanas seguintes à infecção, sobretudo: perda de memória e distúrbios de movimento. 
  • Ainda assim, o risco absoluto desses eventos neurológicos é baixo (<1 caso adicional a cada 100 infectados). 
  • O sorotipo DENV3 pode representar risco aumentado de complicações neurológicas. 
  • Pacientes com alterações neurológicos após dengue devem ser acompanhados, especialmente aqueles com idade avançada ou sintomas persistentes.

Autoria

Foto de Danielle Calil

Danielle Calil

Médica formada pela Universidade Federal Fluminense em 2016. ⦁ Neurologista pela Universidade Federal do Rio de Janeiro em 2020. ⦁ Fellow em Anormalidades do Movimento e Neurologia Cognitiva pelo Hospital das Clínicas da UFMG em 2021. ⦁ Atualmente, compõe o corpo clínico como neurologista de clínicas e hospitais em Belo Horizonte como o Centro de Especialidades Médicas da Prefeitura de Belo Horizonte, Hospital Materdei Santo Agostinho e Hospital Vila da Serra.

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Referências bibliográficas

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