Ao longo da era moderna, houve um maior leque de oportunidades para acesso e escolha de terapias modificadoras de doença para esclerose múltipla (EM). Considerando essa maior disponibilidade, diversos estudos observacionais têm demonstrado que uma introdução precoce de terapias de alta eficácia estão associados à melhora de incapacidade, redução de risco de progressão para esclerose múltipla secundariamente progressiva e aumento de probabilidade de NEDA-3 (No Evidence of Disease Activity) em dois anos. Contudo, as diretrizes atuais recomendam uma abordagem de estratificação de risco ou abordagem através de escalonamento dessas terapias a fim de priorizar a segurança e custo-eficácia.
Diante desses dados, com a rápida evolução nas opções terapêuticas de EM e, também, com maiores evidências em literatura, há na prática clínica uma maior variabilidade para opções de abordagem terapêutica nesses pacientes.
Nessa conjuntura, a revista Neurology Clinical Practice publica estudo observacional com o intuito de capturar as decisões da vida real de neurologistas a partir de um cenário clínico de esclerose múltipla fornecido na plataforma eletrônica da revista Neurology.
Métodos
A plataforma eletrônica anônima desse estudo foi lançada na sessão de Practice Current da revista Neurology Clinical Practice na qual foi apresentado um cenário clínico de esclerose múltipla recorrente-remitente desenvolvido por um subespecialista e trainee em EM, que continha 11 questões clínicas desenvolvidas sobre áreas de incerteza nessa condição a serem respondidas pelos participantes.
O cenário clínico consistiu em uma mulher de 36 anos com neurite óptica apresentando uma disdiadococinesia leve assintomática e descrição de uma ressonância de crânio com achados sugestivos de esclerose múltipla. Quanto às questões clínicas fornecidas, as principais perguntas a serem exploradas consistiam em analisar: (1) como é considerada a seleção da droga modificadora de doença na fase inicial da doença; (2) a escolha da terapia para os eventos de surto na esclerose múltipla e (3) a solicitação de contraste com gadolínio nos exames de ressonância de investigação de rotina.
A análise estatística avaliou a frequência das respostas do questionário a partir de diferentes grupos demográficos, seja categorizando o grupo dos respondedores como especialistas ou não em EM ou como a localização da prática clínica em países de alta renda versus baixa renda. A classificação de países de alta versus média-baixa renda foi realizada conforme World Bank Country Classification de 2023.
Resultados: abordagem inicial de esclerose múltipla
Houve um total de 153 respostas oriundas de 42 países. Entre tais respostas, 128 participantes completaram o questionário demográfico; 1/3 se identificaram como especialistas em esclerose múltipla, 1/4 declararam ter visto mais de 20 pacientes com diagnóstico de EM no último ano e 2/3 pertencentes a países de alta renda.
Quanto à seleção inicial de terapia modificadora de doença, os agentes mais selecionados nessa pesquisa foram: dimetil-fumarato (49%), fingolimoide (41.8%) e acetato de glatiramer (37,3%). Ao serem questionados para recomendar apenas um agente, 20,9% responderam dimetil-fumarato, 15,5% natalizumabe e 14,7% fingolimoide. Um dado interessante é que discretamente acima da metade da amostra houve uma recomendação na escolha do caso para terapia de alta eficácia como agente inicial (56,6%, IC 95% 47,6-65,1%). A escolha de agente de alta eficácia foi resposta em maior proporção encontrada nos especialistas de RM do que não-especialistas.
Quanto à escolha de terapia de surto clínico para esclerose múltipla, aproximadamente toda a amostra (95,2%, IC 95% 90,0-97,9) indicou que o tratamento do cenário clínico fornecido seria a partir do uso de corticoides preferencialmente na via intravenosa. Além disso, uma pequena maioria dos participantes (61,3%, IC 95% 52,6-69,4) indicou que escolheria tratar surtos não-incapacitantes de EM, sendo essa decisão com proporção similar entre especialistas e não-especialistas em EM e entre participantes de países de alto e de baixa renda.
Já quanto à investigação com neuroimagem, praticamente metade dos participantes (48,6%, IC 95% 40,2-57,1) indicaram que a paciente do cenário fornecido na pesquisa deveria ser avaliada em follow-up de 6 meses, enquanto o outro terço da amostra sugeriu em follow-up de 3 meses. Além disso, praticamente metade (49,3%, IC 95% 40,9-57,8) descreveu realização de neuroimagem anualmente enquanto a outra descreveu a cada 6 meses. Quanto ao uso do contraste no exame de neuroimagem, 69,2% (IC 95% 60,9-76,5) indicaram que repetiriam a neuroimagem com uso do gadolíneo, sendo essa resposta mais presente em participantes de países de baixa renda comparados à alta renda.
Discussão
Aproximadamente metade dos participantes preferiram escolha de terapias de alta eficácia em indivíduo recém-diagnosticado com EM (67,5% especialistas em EM versus 52,4% não-especialistas). Essa resposta reflete orientações declaradas pregressamente por outras instituições como Canadian MS Working Group Recommendations e American Academy of Neurology Pratice Guidelines em 2020 e em 2018, respectivamente, e favorecem a abordagem de estratificação de risco do paciente com esclerose múltipla para selecionar a droga modificadora de doença. Ainda assim, a maioria dos respondedores nessa pesquisa ilustraram o paciente como EM grave, mas apenas 2/3 selecionaram terapias de alta eficácia para início. O ensaio clínico DELIVER-MS, com expectativa de finalização em 2026, é o estudo que tentará responder melhor esse questionamento.
A maioria na amostra (87,7%) indicou preferência de uso de corticosteroides em via intravenosa comparada à via oral para manejo de surto clínico de EM. Esse achado foi surpreendente, considerando duas metanálises recentes que demonstraram a via oral de corticoides como não inferior à via intravenosa, além da presença de ensaio clínico randomizado de 2018 que comparou ambas as vias em pacientes com surto de neurite óptica aguda com 6 meses de follow-up. O interessante da via oral é a conveniência e a redução de custos ao paciente e ao sistema de saúde. Algumas hipóteses levantadas pelos autores para a polarização dessa resposta no estudo pode ser a facilidade de administração da dose equivalente na via intravenosa comparada à oral, a garantia de compliance e a redução de percepção de efeitos adversos.
A preferência de ressonância de crânio com uso de contraste venoso foi evidenciada em 69,2% da amostra, uma resposta com maior proporção encontrada em não especialistas de EM. As recomendações em 2021 pela Magnetic Resonance Imaging in Multiple Sclerosis-Consortium of Multiple Sclerosis Centres-North American Imaging in Multiple Sclerosis Cooperative Consensus sugerem performance do exame de imagem contrastado para àqueles pacientes que apresentem lesões difusas e confluentes crônicas de esclerose múltipla assim como para àqueles com necessidade de exame de imagem basal antes do início de DMT ou com última imagem há mais de 1 ano. Portanto, o uso de exames não contrastados pode ser aplicado para identificação de leucoencefalopatia multifocal progressiva e para detecção adequada de novas ou de aumento de lesões em T2 para indivíduos com EM com carga baixa-moderada de doença.
Em geral, essa publicação se trata de um estudo descritivo e exploratório que, pelo seu desenho, claramente apresenta limitações. Dentre elas, destaca-se a população que é selecionada para indivíduos que usufruam os jornais e mídias da American Academy of Neurology, de modo que as respostas possam não ser representativas para padrões globais. Além disso, houve uma baixa amostra de respondedores especialistas de EM no estudo e, portanto, os resultados dessa pesquisa não devem ser considerados como um consenso de especialistas.
Mensagem final: esclerose múltipla
Embora nesse estudo observacional tenha ocorrido uma discreta preferência para escolha de terapias modificadoras de alta eficácia em EM, as opiniões sobre terapia apropriada ainda permanecem divididas e incertas. Por outro lado, o estudo revelou opiniões polarizadas quanto à terapia com corticoterapia para surtos não-incapacitantes de EM e uso de exames contrastados com gadolínio para investigação de rotina. Considerando os resultados desse estudo observacional com evidências recém-publicadas na literatura, há espaço claro e necessário na atualização de diretrizes de prática clínica para esclerose múltipla a fim de proporcionar melhores recomendações e direcionamento para esses questionamentos.
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