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Clínica Médica31 julho 2024

Diabetes e infecções: o que precisamos saber

Não mais apenas no senso comum, mas de forma científica e crítica, sabemos que o diabetes está relacionado a um maior risco de infecções.

É quase senso comum que a presença de diabetes (DM) pode aumentar o risco de infecções. E às vezes de fato para por aí, no senso comum. Assumimos que o diabetes é um fator de risco, mas não elaboramos de fato quais infecções estão mais associadas, quais estão intimamente relacionadas à presença ou não de diabetes, qual o tratamento e prevenção recomendados nessa condição ou mesmo quais infecções (ou seu tratamento) podem fazer o caminho oposto, ao desencadear diabetes em indivíduos previamente sãos.  

Após a pandemia da covid-19 (condição onde o diabetes é um claro fator de risco – a chance de mortalidade chega a ser 2x maior do que na população geral), esse assunto voltou a tomar a atenção dos clínicos e hospitalistas. Então, nada mais justo do que revisitá-lo com base em uma excelente revisão publicada recentemente, em 2024, na revista Diabetologia, principal periódico de diabetes da Europa. Os autores dividiram a revisão, de forma didática, entre os princípios fisiopatológicos gerais e as principais infecções relacionadas ao diabetes.  

Veja também: 1,8 bilhão de pessoas estão sob risco de saúde devido ao sedentarismo, diz OMS

Profissional de saúde explicando a paciente com diabetes sobre o risco de infecções

Por que indivíduos com diabetes tem maior risco de infecções?  

Indivíduos com diabetes têm maior risco de infecções por uma série de fatores. Podemos, didaticamente, dividir da seguinte forma:  

Integridade de mucosas e da pele (parte especial da imunidade inata, a “barreira”)

Pacientes com diabetes geralmente, devido ao ressecamento da pele, apresentam maior chance de fissuras, lesões e alterações na colonização da pele, sendo muito mais comum a colonização por S. aureus, por exemplo. Além disso, a presença de úlceras aumenta significativamente a solução de continuidade, facilitando a entrada de patógenos.  

Problemas na imunidade inata

Além da própria barreira, há outros elementos da imunidade inata tais como pior resposta do sistema complemento, com menor ativação por consequência da opsonização de bactérias e formação do complexo de ataque à membrana (MAC). Há menor migração de neutrófilos e menor ativação de células NK, particularmente em indivíduos com DM1.   

Problemas na resposta imune adaptativa

Há menor ativação de linfócitos Th1, Th2 e Th17, levando a maior risco de algumas infecções tais como a tuberculose.  

Outros fatores

A insuficiência vascular e a presença de neuropatia sensitiva periférica e autonômica também contribuem, promovendo piora da resposta imune local e facilitando o surgimento de lesões que se caracterizam como porta de entrada para infecções. Além disso, pode ocorrer um aumento da permeabilidade intestinal e disbiose, permitindo, da mesma forma que na pele, maior entrada de patógenos por via intestinal. 

Agora, vamos revisar as infecções que estão mais associadas ao diabetes.  

Quais infecções estão intimamente ligadas ao diabetes?  

Existem algumas infecções que estão intimamente ligadas ao diabetes. Algumas são praticamente exclusivas dessa população, tais como:  

  • Mucormicose rinocerebral (sobretudo em indivíduos com cetoacidose/acidose metabólica/graves) 
  • Otite externa maligna (cerca de 90% dos casos ligados ao diabetes; normalmente causadas por Pseudomonas aeruginosa e raramente por Aspergillus Sp. 
  • Panoftalmite (ocorre mais comumente após cirurgias de catarata) 
  • Gangrena de Fournier (>60% das vezes ocorre em indivíduos com DM)

Ainda, existem complicações graves de infecções relativamente comuns que também são característicos de indivíduos com diabetes, tais como a pielonefrite enfisematosa e a colecistite enfisematosa, relacionadas à presença de bactérias anaeróbias. 

Ganham ainda um papel de destaque na revisão a pneumonia e empiema causados por Klebsiella sp., mais comum na população diabética, além de abscesso de outras infecções causadas por essa bactéria, como abscesso de psoas, abscesso perirrenal e hepático.

Curiosamente, os autores mencionam também o risco de melioidose, uma grave infecção causada pela bactéria Burkholderia pseudomallei, que é resistente à fagocitose em ambientes de hiperglicemia (mais de 50% dos casos ocorrem em indivíduos com DM). Essa infecção se caracteriza por acometimento pulmonar ou abscessos localizados e sepse, sendo extremamente rara no Brasil (apenas relatos de casos), mas comum na Ásia e Oceania.  

Quais outras infecções estão associadas ao diabetes?  

Virtualmente, um indivíduo com diabetes tem um risco de 1,5 a 4 vezes maior de desenvolver uma infecção quando comparado à população geral e 2 a 4 vezes mais chance de ser hospitalizado devido à condição. Contudo, existem os sítios mais importantes que vale a pena a menção, devido tanto a maior incidência como a maior morbimortalidade associada a elas.

As mais pronunciadas são as infecções renais (risco 3,0 a 4,9x maior), osteomielite (4,4 a 15,7x) e infecções do pé (6,0 a 14,7x). Além do risco de incidência, a gravidade tende a ser também maior na maioria das situações. Um exemplo é o risco de morte 2x maior em indivíduos com covid-19.  

Ainda, vale destacar que a grande maioria dos estudos não categoriza os indivíduos que tem DM1 e quais tem DM2, porém os dados disponíveis na literatura apontam para um risco ainda maior em DM1. Para se ter uma ideia, numa coorte inglesa de mais de 100.000 pessoas, o risco de uma infecção em pacientes com DM1 foi 3,7x maior do que na população geral, com risco de morte 7,7x maior, enquanto em indivíduos com DM2, o risco foi de 1,9x maior de incidência e também 1,9x maior de mortalidade por infecções.  

Vamos às mais relevantes:  

Infecções do tra3to urinário

Indivíduos com DM têm maior risco de bacteriúria assintomática, apesar disso não se relacionar com maior chance de infecções sintomáticas do trato urinário. Portanto, não é recomendado o tratamento de bacteriúria assintomática em indivíduos com DM. Além disso, como já mencionado antes, é específico do diabetes ocorrer formas enfisematosas das infecções, como cistites e pielonefrites enfisematosas. Ademais, infecções comuns como ITU por E. coli e candidíase também são mais comuns. A neuropatia autonômica é um fator predisponente devido à menor sensibilidade à distensão vesical, promovendo maior resíduo miccional e refluxo vesicoureteral.   

Infecções do trato respiratório

Aqui, os destaques são a tuberculose, covid-19, influenza e pneumonias bacterianas. Apesar de não se restringir a essas condições, são as mais importantes em termos de incidência e aumento de risco de desfechos negativos relacionados ao DM.  

  • Tuberculose: 2 a 3 vezes mais comum, sendo que há maior risco de falha do tratamento. A presença de DM, no entanto, não altera a recomendação da terapia inicial. 
  • Covid-19: controverso quanto ao risco de aquisição, porém a mortalidade é cerca de 2x maior em indivíduos com DM. Cerca de 17% das mortes por covid-19 estavam associadas ao DM. 
  • Influenza: DM pode aumentar o risco de complicações como morte em adultos jovens (15-50a) e mortalidade geral em até 4 vezes. Além disso, existe maior risco de eventos cardiovasculares durante a fase aguda da infecção 
  • Pneumonias: um estudo australiano apontou um risco 5,8x maior de pneumonia em indivíduos com DM1 comparados à população geral. Outros estudos mostram que indivíduos com DM, de forma geral, têm um risco 1,3 a 2,6x maior de adquirir pneumonias.

Infecções da pele

Pacientes com DM, sobretudo aqueles com neuropatia autonômica afetando a função sudomotora, resultando em xerose cutânea, estão mais suscetíveis à alterações na colonização da pele (maior prevalência de S. aureus) e lesões.  

Um destaque nesta sessão é para indivíduos com pé diabético ou úlceras em membros inferiores.  

Vale também a menção honrosa para o maior risco geral de infecções de sítio cirúrgico e sepse.  

As infecções também podem desencadear diabetes  

As infecções também podem desencadear diabetes tanto por efeito direto do patógeno, como pela resposta inflamatória ou pelo tratamento necessário para a erradicação da infecção.  

Devido à resposta inflamatória, necessária para o combate à infecção, há um aumento na produção de hormônios de estresse, tais como cortisol, GH, catecolaminas e glucagon, promovendo maior resistência insulínica. Ademais, a presença de citocinas inflamatórias como TNF alfa e IL-1 também levam à menor sinalização da insulina, culminando em maior gliconeogênese e produção hepática de glicose e menor captação periférica, levando à hiperglicemia.

Tal mecanismo também ocorre piorando o controle glicêmico de indivíduos com DM já diagnosticado e infecção vigente (portanto, em indivíduos com piora aguda do controle glicêmico, vale a pena atentar a possíveis infecções).  

Os autores ainda reforçam a importância da ação direta de alguns patógenos na gênese do diabetes, com destaque para o HCV e HIV. O HCV pode promover piora de resistência insulínica através da inflamação hepática e também agir diretamente no downregulation do IRS-1 (Rreceptor substrato de insulina tipo 1), fundamental para a sinalização intracelular de insulina. Outros virus, como Coxsackie B1, rubéola e CMV estão associados ao surgimento do DM1.

Quanto às bactérias, vale lembrar do papel das infecções gengivais, onde a periodontite e gengivite podem promover aumento da resposta inflamatória sistêmica e aumentar risco de DM e piora de DM. O tratamento dessas condições pode, inclusive, levar a melhoras na HbA1c de cerca de 0,3% 3 a 6 meses depois. 

Recomendações gerais sobre tratamento e prevenção  

A revisão ressalta a importância de seguirmos guidelines locais para a adequada cobertura de patógenos, mas chama a atenção, por exemplo, para o maior risco de infecções por S. aureus devido à maior colonização (cerca de 30% mais do que na população não diabética) e chance de MRSA. 

A recomendação de vacinação para a população diabética também varia de acordo com cada país, mas é importante frisar a necessidade de seguir o calendário local. Vacinas como covid-19, influenza, hepatite B, tríplice bacteriana e pneumocócica devem fazer parte da cobertura, dentre outras.  

Saiba mais: Testes moleculares para nódulos de tireoide: como estamos?

Conclusões  

Agora não mais apenas no senso comum, mas de forma científica e crítica, sabemos que o diabetes está relacionado a um maior risco de infecções, desde condições especificamente relacionadas ao DM, como a mucormicose, a infecções comuns como pneumonias e do trato urinário.  

É relevante lembrarmos o maior risco de doenças causadas por agentes específicos nessa população como S. aureus e Klebsiella, bem como a importância do controle glicêmico e do tratamento preventivo através da vacinação e cuidados com as lesões cutâneas, quando presentes. 

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Referências bibliográficas

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