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Endocrinologia31 julho 2024

Crinecerfont: Nova opção no tratamento da hiperplasia adrenal congênita 

Estudo de fase 3 avaliou o impacto do Crinecerfont no tratamento da hiperplasia adrenal congênita (HAC) em crianças. 

A hiperplasia adrenal congênita (HAC) por deficiência da enzima 21-alfa-hidroxilase é um diagnóstico de suma importância e, devido ao risco de vida para neonatos com a condição, hoje a dosagem da 17-hidroxiprogesterona (17-OHP) é contemplada na triagem neonatal por meio do teste do pezinho, com o objetivo de detectar as formas perdedoras de sal e reduzir o risco de mortalidade neonatal. 

A HAC é uma condição genética, autossômica recessiva, que acomete cerca de 1 a cada 10.000 nascidos vivos no estado de São Paulo. Cerca de 95% dos casos ocorrem devido à deficiência da enzima 21-hidroxilase. O nível de funcionamento da enzima pode ocorrer em níveis diferentes a depender do tipo de mutação, o que gera os três fenótipos diferentes que podem ocorrer na doença:  

  • Forma clássica; 
    • Perdedora de sal (< 2% de atividade enzimática); 
    • Virilizante simples (3-7% de atividade enzimática); 
  • Forma não clássica (20-60% de atividade enzimática). 

A forma clássica se manifesta logo na primeira infância, ao passo que a não clássica pode se manifestar em diversos momentos da vida, desde a infância, puberdade (com pubarca precoce, por exemplo), ou vida adulta (com um quadro indistinguível da Síndrome dos Ovários Policísticos — SOP — ou simplesmente como infertilidade).  

Sintetizando de forma breve, a HAC é uma condição onde, devido à falta de atividade enzimática na cadeia da esteroidogênese, há menor produção (ou falta completa, no caso da forma perdedora de sal) de cortisol e em níveis variados de aldosterona. Essa falta leva a um feedback, que estimula a hipersecreção de CRH, que por sua vez estimula a produção de ACTH. O ACTH age novamente na adrenal, estimulando diversas enzimas da cascata. Porém como a 21-hidroxilase não funciona (ou funciona menos), os precursores acabam sendo desviados para a síntese de andrógenos adrenais, como a 17-OHP (marcador diagnóstico da condição), androstenediona e testosterona. Esse é o mecanismo pelo qual os portadores da condição enfrentam hiperandrogenismo e suas consequências, como virilização do sexo feminino e, em alguns casos, macrogenitossomia nos masculinos, aceleração da velocidade de crescimento, puberdade precoce e baixa estatura final.  

Por sua vez, o tratamento atualmente preconizado pela Endocrine Society é o uso da hidrocortisona, um corticoide de curta duração (cerca de 5h) em 3 tomadas diárias. O objetivo do tratamento é a reposição do setor glicocorticoide e reduzir o feedback do ACTH, que acaba por hiperestimular as demais enzimas e leva ao acúmulo de precursores que por fim acaba sendo desviado para o setor andrógeno. Com a redução do ACTH, há redução da produção de 17 OHP, androstenediona e de testosterona, levando também ao tratamento do hiperandrogenismo. 

O problema atual é que, por mais que faça sentido, infelizmente é necessário doses suprafisiológicas de glicocorticoides para o controle dos andrógenos, o que também é nocivo, pois ao longo prazo tais pacientes desenvolvem maiores taxas de obesidade, síndrome metabólica e o próprio uso do glicocorticoide também acaba gerando aceleração na idade óssea e perda de estatura final. O tratamento “perfeito” para a condição seria utilizar uma dose fisiológica de corticoides para a simples reposição do setor e a inibição do hiperandrogenismo. O objetivo no tratamento da HAC é manter níveis baixos de androstenediona e testosterona (que deixa de ser um parâmetro durante a puberdade em meninos) 

Pelas consequências deletérias do uso de doses suprafisiológicas de corticoides, novas alternativas estão sendo estudadas com o intuito de promover sua redução. O crinecerfont é uma dessas substâncias. Trata-se de um antagonista do receptor de CRH (ou antagonista do receptor do fator liberador de corticotrofina tipo 1 – CRF1), o qual inibe a ligação do CRH, impedindo a clivagem da POMC e por consequência, reduzindo o ACTH e por fim seu hiperestímulo ao córtex adrenal, com objetivo de reduzir a produção androgênica. Após estudos curtos de fase 2, foi publicado recentemente no New England Journal of Medicine, em 2024, um estudo de fase 3 avaliando o seu impacto no tratamento da HAC em crianças. 

Crinecerfont Nova opção no tratamento da hiperplasia adrenal congênita 

O estudo   

O “CAHtalyst Pediatric” foi um ensaio clínico randomizado, de fase 3, duplo cego, placebo controlado, multicêntrico (realizado nos EUA, Canadá e Europa), com duração de 48 semanas, que randomizou participantes entre uso de crinecerfont e placebo na proporção 2:1.  

Os critérios de inclusão foram crianças com HAC entre 2 e 17 anos, com necessidade de doses totais de glicocorticoide maiores que o equivalente a 12 mg/m²/d (sendo prednisona ou prednisolona > 1 mg ou hidrocortisona > 4 mg), em doses estáveis pelo menos um mês antes da randomização e com níveis de androstenediona acima da metade superior do intervalo de referência e 17OHP > 2 vezes o limite superior da normalidade (LSN). Ou seja, foram incluídos pacientes com necessidade de doses suprafisiológicas (> 11 mg/m²/d) para manter o controle.  

O objetivo primário do estudo foi avaliar a redução dos níveis de androstenediona após 4 semanas de uso do crinecefont. Dentre os desfechos secundários, também foi pré especificado a análise dos níveis de 17OHP nas primeiras 4 semanas. 

Após o período inicial, entre 4 e 28 semanas, o objetivo (secundário) foi avaliar o impacto na redução da dose de glicocorticoide, objetivando manter sempre a androstenediona em níveis normais (permitindo um incremento do basal do paciente em até 120%). Outras análises exploratórias foram realizadas. 

Ao final, foram randomizados 103 participantes e 97% completaram o trial. 

Quanto à população do estudo, a média de idade foi de 12 anos, cerca de 51% do sexo masculino, com IMC médio de Z +1,2 (58% com IMC acima do P85 do CDC). 33% dos participantes masculinos tinham TART já na randomização. O nível inicial de androstenediona foi de 431 ng/dL (ou 4,31 ng/mL) e de 17-OHP foi de 8682 ng/dl (ou 86,82 ng/mL) 

As doses utilizadas (via oral, 2x ao dia) do crinecerfont foram de acordo com o peso: 

  • 10-20 kg: 25 mg; 
  • 20-55 kg: 50 mg; 
  • ≥ 55 kg: 100 mg. 

Crinecerfont foi eficaz em reduzir a androstenediona e a 17-OHP nas primeiras 4 semanas 

O crinecerfont foi eficaz em reduzir a androstenediona nas primeiras 4 semanas, demonstrando sua capacidade em de fato controlar a hiperandrogenemia. A média de androstenediona inicial era de 405 ng/dL no grupo crinecerfont e 483 ng/dL no grupo placebo. Após 4 semanas, a dosagem de androstenediona foi a seguinte: 

  • Crinecerfont: 208 ng/dL (redução de  -197 ng/dL); 
  • Placebo: 545 ng/dL (aumento de +71 ng/dL);
  • Diferença média estimada: -268 ng/dL (favorecendo o grupo crinecerfont; p < 0,001).

Houve também uma redução importante dos níveis de 17-OHP, com uma diferença de 6421 ng/dL (64,21 ng/mL) favorecendo o grupo crinecerfont; p < 0,001. 

O Crinecerfont também foi eficaz em reduzir a dose necessária de glicocorticoides  

Ao final das 28 semanas, o crinecerfont também foi eficaz em reduzir a dose necessária de glicocorticoides. A dose média inicial era o equivalente a 16,4 mg/m²/dia. As doses utilizadas após o uso de crinecerfont foram as seguintes:  

  • Crinecerfont: 12,8 mg/m²/d (redução em 18%);
  • Placebo:  17 mg/m²/d (aumento de 5,6%);
  • Diferença média estimada: -23,5% (favorecendo o grupo crinecerfont; p < 0,001).

Cerca de 30% dos pacientes do grupo crinecerfont conseguiram obter reduções na dose de glicocorticoides para doses fisiológicas (< 11 mg/m²/d); 57% obtiveram reduções para doses fisiológicas ou maiores que 2,5 mg/m² na dose diária. No grupo placebo, houve necessidade de aumentar a dose de glicocorticoide, o que, na opinião dos autores, evidencia a falta de eficácia completa do tratamento atual. 

Apesar dos efeitos apresentados, o estudo foi muito curto para analisar o impacto em desfechos como peso, crescimento e idade óssea. Tais desfechos clínicos deverão ser abordados em estudos de follow-up.  

Segurança  

Nenhuma morte foi registrada durante o estudo e houve mais efeitos adversos graves no grupo placebo (12) do que no grupo crinecerfont (1), não atribuídos à droga. Contudo, os principais eventos adversos observados foram cefaleia (25% vs. 6% no placebo) e pirexia (mas em incidência igual ao placebo, em torno de 23%).  

Perspectivas  

O crinecerfont demonstrou um potencial para o tratamento de HAC ao demonstrar sua capacidade em controlar níveis de androstenediona e 17-OHP, além de reduzir a dose diária de glicocorticoides. Essa medicação pode se tornar uma opção terapêutica para uma condição praticamente “órfã” de outros tratamentos, já que reduzir a dose de glicocorticoides para doses fisiológicas pode melhorar diversos desfechos como obesidade, diabetes, dislipidemia, risco cardiovascular e melhorar o desenvolvimento, promovendo ganho de estatura final.  

Apesar do presente estudo não ter sido feito com esse objetivo, os dados apresentados geram expectativas sobre o impacto clínico que tal medicação pode ter em pacientes com HAC, que carecem de opções para tratamento atualmente.

Autoria

Foto de Luiz Fernando Fonseca Vieira

Luiz Fernando Fonseca Vieira

Endocrinologista pelo HCFMUSP ⦁ Telemedicina no Hospital Israelita Albert Einstein (HIAE) ⦁ Residência médica em Clínica médica pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) ⦁ Graduação em Medicina pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP) - Faculdade de Medicina de Botucatu

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Referências bibliográficas

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