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Carreira2 dezembro 2024

Caso clínico: Remédios ou forró?

Paciente desmotivado e com má aderência ao tratamento. Como agir de forma a melhorar seu estilo de vida e manter a saúde em dia?
Por Ester Ribeiro

Na série especial “Histórias de Cuidado: Relacionamento médico-paciente”, compartilhamos relatos de médicos sobre casos que vivenciaram em sua rotina e como lidaram com cada situação de forma gentil e empática.

O objetivo é explorar a Medicina sob uma perspectiva mais subjetiva, revelando as nuances do cuidado com o paciente.

Boa leitura!

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Caso de hoje

Ele chegou cabisbaixo, o rosto marcado pelo cansaço e pela tristeza. Sua esposa, a acompanhante, se esforçava para parecer otimista, talvez para aliviar o peso do momento, talvez para não me deixar constrangida diante do sofrimento de seu Arnaldo.

A cada orientação que eu dava, ela respondia com um sorriso encorajador; ele, por sua vez, suspirava e olhava para cima e para os lados, como quem buscasse uma saída – ou uma fuga do consultório. Em determinado momento, a formalidade não fazia sentido. Puxei uma cadeira para me sentar mais perto e perguntei, apertando sua mão entre as minhas:
— Seu Arnaldo, o que está acontecendo de verdade? Tenho a impressão de que nenhum remédio que eu prescreva vai resolver o que o senhor está sentindo, não é?

Ele suspirou profundamente e, com um olhar perdido, respondeu:

— Doutora, é inútil. A vida perdeu o sentido. Tudo o que eu amava já passou. Viver agora é só fazer dieta, tomar remédio, abrir mão de tudo… e isso só piora. Vejo minha família se divertindo lá fora, fazendo churrasco, dançando forró, tudo o que eu gostava. Mas fico preso dentro de casa, olhando de longe, pensando que daqui a alguns anos todos eles vão estar como eu. Nada disso faz sentido. — Com resignação, ele completou. — Não me passe remédios para prolongar essa vida vazia. Não estou interessado em diminuição de mortalidade. Não vou seguir as orientações e me privar dos poucos prazeres que ainda me restam.

Olhei para ele com compaixão e, após uma pausa, disse:
— Seu Arnaldo, sabia que o Guimarães Rosa escreveu algo que talvez o senhor entenda bem? Ele dizia que “a vida quer da gente coragem”. Talvez a coragem de aceitar o que passou e buscar o sentido em algo novo.

Ele pareceu surpreso com a ausência de cobranças, broncas e de novas restrições. Por fim, sorri e completei:

— Não vou lhe passar nenhum novo remédio. Vamos tirar alguns que não são essenciais e ver como o senhor se sente daqui a dois meses.

Seu Arnaldo sorriu, com um olhar de esperança renovada.

— Tudo bem, doutora… Quem sabe eu não me anime e lhe chame pra um forró.

Leia mais: Caso clínico: Medicina e poesia salvam

Muito mais receitas…

Essa história nos lembra que a prática médica vai muito além de receitas, exames e diretrizes. Às vezes, um momento de escuta genuína e de compaixão pode transformar mais do que qualquer tratamento.

Pacientes como seu Arnaldo não buscam apenas um diagnóstico ou uma nova prescrição; eles procuram sentido, alívio para o que os aflige na alma, algo que nenhum remédio pode fornecer. Ao lado das ciências médicas, há mais que merece espaço em nosso tempo de consultório.

O médico professor Abel Salazar dizia: “O Médico que só sabe Medicina nem Medicina sabe”. A empatia, a sensibilidade para enxergar o paciente como um ser completo e não apenas como um caso clínico, é fundamental para uma medicina verdadeiramente eficaz.

Que não percamos de vista a importância de olhar além dos protocolos e de, sempre que possível, cruzar a mesa fria do consultório e nos aproximar da pessoa, não apenas da doença.

Autoria

Foto de Ester Ribeiro

Ester Ribeiro

Graduada em Medicina pela PUC  de Campinas. Médica Nefrologista pelo Hospital Santa Marcelina de Itaquera. Título em Nefrologia pela Sociedade Brasileira de Nefrologia.

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