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Carreira1 março 2025

Caso clínico: muito além da hepatite c

Como médicos, precisamos nos esforçar para lembrar de que tratamos de pessoas, não de doenças. Toda dor importa, toda angústia importa

Na série especial “Histórias de Cuidado: Relacionamento médico-paciente”, compartilhamos relatos de médicos sobre casos que vivenciaram em sua rotina e como lidaram com cada situação de forma gentil e empática.

O objetivo é explorar a Medicina sob uma perspectiva mais subjetiva, revelando as nuances do cuidado com o paciente.

Boa leitura!

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médico consolando um paciente em um relacionamento de empatia

Caso clínico

A manhã de ambulatório se arrastava preguiçosa, o séquito de estudantes sonolentos, recostados contra as paredes do consultório dava o veredicto: nada de interessante acontecia ali. Todas as quartas, desfilavam pelos vastos corredores daquele nosocômio os mais variados casos da Gastroenterologia Geral: refluxo, H. pylori, colite, intestino irritável, esteatose, cirrose. Sempre havia muito que conversar, exceto naquele dia especialmente cinza.

Aproximava-se do meio-dia, os mais apressados já sem jalecos, tendo as malas organizadas e fechadas, esperavam somente pelo aval do preceptor para partirem. Eis então que chega o encaixe, uma paciente convocada como consulta extra em virtude de um achado laboratorial importante. Rt-PCR HCV-RNA reagente, fora diagnosticada com hepatite C crônica, algo que justificava a elevação de transaminases e os indícios ainda incipientes de hepatopatia crônica vistos na consulta anterior.

Tratava-se de uma senhora, já na casa dos 70 anos, frequentadora errática daquele serviço. Faltas e atrasos eram a regra, o cumprimento das ordens médicas, absolutamente imprevisível, tanto que ganhou a temida pecha de “má adesão terapêutica”, um rótulo tenebroso que nos desperta antipatia desde o primeiro ano da faculdade.

Além da hepatite C, era ainda diagnosticada com hipertensão arterial sistêmica, dislipidemia mista, obesidade grau 2, fibromialgia e osteoartrose de quadris. E, naquela manhã, compareceu com mais de duas horas de atraso.

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A doença e seus desdobramentos

A hepatite C é uma doença muitíssimo interessante, uma das principais causas de cirrose hepática no mundo, capaz de repercutir sistemicamente de formas surpreendentes – crioglobulinemia, glomerulonefrite, até diabetes mellitus! -. E a coisa ficou ainda melhor desde 2015, quando as drogas antivirais de ação direta, disponíveis no sistema público de saúde, vieram para erradicar o vírus com eficácia nunca antes vista.

Esta senhora, por exemplo, se submetida ao tratamento protocolar de apenas três meses, sem praticamente qualquer efeito adverso, teria mais de 90% de chances de curar-se de uma infecção letal. Como não se encantar diante de tal prodígio científico?

A dor real da paciente

Bem, ocorre que aquele indivíduo que se senta diante de nós, sem a mais mínima ideia do que seja o vírus da hepatite C, carregado de preocupações inteiramente alheias aos nossos planos, pode não se deslumbrar tanto assim por estar doente. “Oi, doutor! Como está o senhor? Sei que tô atrasada, mas já queria aproveitar para te pedir para renovar minhas receitas, os remédios de pressão e colesterol. Queria saber também se dá pro senhor pedir uma chapa da minha coluna, minhas costas estão incomodando muito!”.

O médico impaciente franze o cenho e devolve secamente, sem responder uma pergunta sequer: “Convoquei a senhora por conta daquele exame da hepatite C, o resultado infelizmente veio positivo, precisaremos tratar do vírus para evitar problemas maiores. Hoje temos um tratamento muito eficaz oferecido pelo SUS, a senhora deve ficar bem!”.

A senhora parece assustada, aperta a bolsa contra o peito e encara perplexa o grupo de jovens que a observa ao fundo. “Mas de onde eu peguei isso? O tratamento sai caro? É por causa dessa hepatite que sinto tanta dor?”.

Sua reação desperta algo mais poderoso do que a fome e a frustração no jovem preceptor. Ele pode quase sentir a paciente lhe escapando pelas mãos, por sua culpa e de ninguém mais. Ele pede que os alunos se retirem e decide refazer alguns passos, mirando-a com carinho, bem fundo nos olhos, como um velho mestre lhe ensinou, sem dizer uma palavra.

Os achados

E os achados são enfim surpreendentes. Ele descobre ali uma senhora viúva desde os 40 anos, com uma grande espiritualidade, muito participativa em sua comunidade religiosa, arrimo financeiro de uma família desconcertada. Dois homens ainda vivem sob seu teto, o filho mais novo e o neto mais velho, um deles etilista pesado, sem contribuírem com um centavo dentro da casa.

Suas dores são bastante características do quadro de fibromialgia, ela não consegue se engajar em um programa regular de atividades físicas em virtude das limitações financeiras e físicas inerentes às demais co-morbidades, tampouco recebe qualquer medicação para controle da dor crônica.

A despeito de tudo, preserva o ânimo forte e uma natural elegância no trato. Ao fim da consulta, ela recebe alguns esclarecimentos e orientações práticas, uma prescrição de pregabalina, uma requisição dos miraculosos antivirais e uma chuva torrencial de desculpas e elogios daquele pobre médico constrangido por sua grandeza.

O preceptor se lembra por que decidiu se tornar clínico, a paciente sorri por ter encontrado ali um amigo e se despede dizendo: “Foi Deus quem tocou o senhor aqui hoje”. E foi de fato o que pareceu ter acontecido nos minutos finais daquela resplandecente manhã de quarta.

Conclusão

Desde os primórdios de nossa formação, temos a tendência de nos fascinarmos pela rica fisiopatologia de determinadas doenças, pelos tratamentos mais engenhosos, ao mesmo tempo que desprezamos os casos mais vulgares e aqueles que não se enquadram em nossos rigorosos esquemas mentais.

Como médicos, precisamos nos esforçar para lembrar de que tratamos de pessoas, não de doenças. Toda dor importa, toda angústia importa. Precisamos cultivar diariamente essa perspectiva para mantermos a essência humana de nossa prática.

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