Dois terços dos pacientes com insuficiência cardíaca com fração de ejeção preservada (ICFEp) vivem com obesidade, e mais de 90% apresentam adiposidade central aumentada. Os pacientes com o fenótipo de ICFEp associada à obesidade exibem características fisiopatológicas distintas relacionadas com quantidade de gordura corporal em excesso, incluindo maior expansão de volume e remodelamento cardíaco, inflamação sistêmica mais grave e maior restrição pericárdica. No ensaio SUMMIT (A Study of Tirzepatide in Participants With Heart Failure With Preserved Ejection Fraction and Obesity), o tratamento com tirzepatida reduziu desfecho combinado de piora da insuficiência cardíaca nos pacientes com ICFEp relacionada à obesidade, melhorou sintomas, aumentou a capacidade de exercício, aprimorou a função renal e reduziu inflamação, pressão arterial, sobrecarga de volume, lesão cardíaca, massa ventricular esquerda e tecido adiposo paracardíaco.
Os prejuízos no estado de saúde, função de exercício, congestão e inflamação na ICFEp relacionada com obesidade estão diretamente correlacionados à quantidade de gordura corporal em excesso, particularmente ao aumento da gordura visceral. Isso sugere que indivíduos com ICFEp relacionada com obesidade e maior índice de massa corporal (IMC) ou razão cintura-altura (RCA) podem obter maiores benefícios da redução da gordura corporal em comparação com aqueles com obesidade menos grave.
Nesta análise secundária pré-especificada do estudo SUMMIT, foram comparadas as características basais e os efeitos da tirzepatida sobre os desfechos primários e secundários de acordo com a gravidade e a distribuição da obesidade basal.
Métodos
Foram incluídos pacientes com ICFEp associada à obesidade (IMC ≥ 30 kg/m²), idade ≥ 40 anos, insuficiência cardíaca crônica (classe funcional II-IV da NYHA) e fração de ejeção do ventrículo esquerdo ≥ 50%. Para selecionar pacientes com IC mais grave e maior risco, era exigido que apresentassem distância percorrida em 6 minutos entre 100 e 425 m e KCCQ-CSS ≤ 80 no início do estudo, além de descompensação de IC nos 12 meses anteriores ou taxa de filtração glomerular estimada (TFGe) < 70 mL/min/1,73 m². Também precisavam atender a pelo menos um dos seguintes critérios como evidência objetiva de IC: NT-proBNP elevado (definido como > 200 pg/mL em ritmo sinusal ou > 600 pg/mL em fibrilação atrial), aumento do átrio esquerdo por ecocardiografia bidimensional ou pressões de enchimento elevadas em repouso ou durante exercício (medidas invasivas ou não invasivas).
Após um período de triagem de 6 semanas, os pacientes elegíveis foram randomizados 1:1, em duplo-cego, para receber placebo ou tirzepatida 2,5 mg/semana por via subcutânea, além do tratamento usual. A dose da tirzepatida foi aumentada em 2,5 mg a cada 4 semanas (se tolerada) até atingir 15 mg/semana (ou placebo correspondente) após 20 semanas, mantendo a maior dose tolerada (5 a 15 mg) até o final do estudo.
Os desfechos coprimários foram: (1) tempo até morte cardiovascular ou evento de piora de IC adjudicado; (2) mudança no KCCQ-CSS em 52 semanas. Evento de piora de IC foi definido como agravamento dos sintomas requerendo hospitalização, tratamento intravenoso em pronto-atendimento ou intensificação de diurético oral.
Desfechos secundários incluíram mudanças em 52 semanas (vs linha de base) na distância percorrida em 6 minutos, PCR, peso corporal, pressão arterial sistólica e TFGe.
Resultados
Participantes com insuficiência cardíaca com fração de ejeção preservada (ICFEP) e maior índice de massa corporal (IMC) basal eram mais jovens e mais frequentemente mulheres e brancos, com maiores valores de circunferência abdominal (CA) e razão cintura/estatura (RCE) em comparação àqueles com menor IMC. Os participantes com ICFEP e maior IMC eram mais propensos a apresentar pior classe funcional da NYHA, pior escore no KCCQ-CSS e maior sobrecarga volêmica, apesar de níveis mais baixos de NT-proBNP e uso mais frequente de diuréticos. Esses participantes também apresentaram inflamação sistêmica mais grave (maiores níveis de PCR). Não houve diferenças estatisticamente significativas em distância percorrida no teste de caminhada de 6 minutos (TC6), pressão arterial sistólica ou função renal em relação ao IMC basal.
Dos 731 participantes com ICFEP e IMC ≥ 30 kg/m², 728 (99,6%) apresentavam RCE elevada (≥ 0,5).
Pacientes com maior IMC basal apresentaram maior melhora relacionada ao tirzepatida na distância percorrida no TC6, além de maiores reduções de peso corporal e pressão arterial sistólica. Houve tendência a maior melhora relacionada ao tirzepatida no KCCQ-CSS entre aqueles com IMC basal mais alto. Não houve diferenças no efeito do tirzepatida sobre PCR ou taxa de filtração glomerular estimada (TFGe) conforme o tercil de IMC basal.
Entre os participantes randomizados para tirzepatida, maior perda de peso em 52 semanas associou-se independentemente a maior melhora no TC6 em comparação ao basal, com relação semelhante para mudanças no KCCQ-CSS. Também houve maiores reduções em PCR e pressão arterial sistólica com diminuições mais acentuadas de peso sob uso de tirzepatida. Achados semelhantes foram observados para mudanças na circunferência abdominal durante o tratamento, em que maiores reduções da adiposidade central se associaram a maiores aumentos no TC6 e no KCCQ-CSS. Houve tendências semelhantes para mudanças na circunferência abdominal em relação à PCR e à pressão arterial sistólica, que não atingiram significância estatística. Não houve relação entre mudanças no peso corporal ou circunferência abdominal com tirzepatida e alteração na TFGe em 52 semanas.
Para explorar componentes diferenciais relacionados à “obesidade geral” definida por IMC e à adiposidade central definida por RCE, os participantes foram categorizados em 4 grupos com base em valores de IMC e RCE acima ou abaixo das medianas (36,589 kg/m² e 0,72, respectivamente, expressos como alto vs baixo). Pacientes com ICFEP e IMC elevado, mas RCE baixa, eram os mais jovens, enquanto aqueles com IMC baixo, mas RCE elevada, eram os mais velhos.
Pacientes com baixo IMC, mas alta RCE, apresentaram os maiores níveis de NT-proBNP (266 ng/L), troponina T (15,3 ng/L) e prevalência de sintomas de classe funcional NYHA III-IV (35%), juntamente com a menor distância no teste de caminhada de 6 minutos (252 ± 81 m) e a pior função renal (TFGe: 54,8 ± 22,5 mL/min/1,73 m²). –
Não houve diferenças estatisticamente significativas nos efeitos do tirzepatida sobre os desfechos primários e secundários entre as quatro categorias de pacientes definidos por IMC e RCE acima ou abaixo da mediana, exceto para a mudança no peso corporal em 52 semanas, que foi maior naqueles com IMC elevado.
Discussão: benefícios da tirzepatida nos pacientes com IMC mais alto
Foi observado que os participantes com maior IMC basal eram mais frequentemente mulheres, tinham maior sobrecarga volêmica, sintomas de IC mais graves e inflamação sistêmica mais acentuada no momento da inclusão. Achados semelhantes foram observados naqueles com maior adiposidade central, além de pior capacidade de exercício e maior gravidade da doença renal nos participantes com RCE mais elevada. Embora não tenha havido heterogeneidade nos efeitos do tirzepatida sobre o risco de piora da IC ou morte cardiovascular de acordo com a categoria de IMC, os pacientes com obesidade mais grave no basal apresentaram maior melhora na distância do TC6 em comparação ao placebo, além de reduções mais expressivas no peso corporal e na pressão arterial sistólica, com tendência a maiores melhoras no KCCQ-CSS.
Pacientes com ICFEP e maior predominância de adiposidade central apresentaram IC mais grave em múltiplos domínios em comparação com aqueles com IMC elevado, mas menor adiposidade central. Esses dados reforçam ainda mais a importância da gordura corporal excessiva, em especial a gordura visceral, como determinante da gravidade da IC em pacientes com fenótipo de ICFEP relacionado à obesidade.
Importante destacar que não houve heterogeneidade nos efeitos do tirzepatida sobre o risco de piora da IC ou morte cardiovascular com base nos tercis de IMC ou RCE, nem sobre os componentes individuais desse desfecho. No entanto, houve maior melhora no TC6 nos pacientes com IMC basal mais elevado tratados com tirzepatida em comparação com placebo, além de maiores reduções no peso corporal e na pressão arterial sistólica. Esse resultado difere das análises iniciais do STEP-HFpEF, nas quais não houve evidência de interação entre IMC e resposta ao tratamento nesses desfechos. As razões para essas diferenças permanecem incertas, mas podem estar relacionadas, em parte, ao fato de que o tirzepatida é um agonista duplo dos receptores GLP-1 e GIP, o que promove maior perda de peso em comparação aos agonistas isolados de GLP-1, além de possíveis diferenças farmacodinâmicas associadas à ativação do GIP.
A ausência de linearidade clara na relação dose-resposta entre a redução de peso e as mudanças em PCR e pressão arterial sistólica pode sugerir que os efeitos do tirzepatida não dependem exclusivamente da perda de peso. Esse conceito é apoiado por estudos que mostram efeitos anti-inflamatórios e de redução da pressão arterial com apenas uma dose de agonista do receptor GLP-1, bem como por observações do SUMMIT, no qual a pressão arterial foi reduzida antes mesmo de perdas de peso significativas. A direção dessas relações foi semelhante ao se avaliar mudanças na circunferência abdominal sob tirzepatida, embora sem significância estatística. Isso pode estar relacionado ao fato de que a circunferência abdominal é uma medida indireta e imprecisa da adiposidade visceral, difícil de padronizar e reproduzir com alta precisão.
Limitações do estudo
- Poder estatístico limitado: análises de subgrupos podem não detectar diferenças reais, especialmente com número modesto de eventos nos tercis de IMC e RCQ.
- Categorização em tercis: pode mascarar sinais que seriam mais claros em análise contínua.
- Análises exploratórias sem ajuste para múltiplas comparações: aumenta risco de erro tipo I (falsos positivos).
- População estudada: alta proporção de mulheres e forte representação da América Latina, mas poucos pacientes negros, o que limita a generalização.
- Tratamento de base: uso pouco frequente de antagonistas de mineralocorticoides e inibidores de SGLT2.
- Avaliação da obesidade central: feita por RCQ, menos precisa que RM, TC ou DEXA, mas mais viável em estudo multicêntrico.
Conclusão
A tirzepatida reduz o risco de eventos de piora da IC em pacientes com ICFEp relacionada à obesidade, sem diferenças baseadas na gravidade da obesidade basal ou na distribuição de gordura. No entanto, pacientes com ICFEp e IMC mais elevado podem experimentar melhora mais expressiva na capacidade funcional. Além disso, a melhora nos sintomas da IC, limitações físicas e capacidade de exercício com a tirzepatida estão diretamente correlacionadas com a quantidade de redução do peso corporal e da circunferência da cintura durante o tratamento, apoiando o papel central da gordura corporal excessiva e da adiposidade visceral como alvos terapêuticos fundamentais na ICFEp.
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