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Endocrinologia28 janeiro 2025

Novos critérios diagnósticos e definições de obesidade

O The Lancet Diabetes & Endocrinology elaborou consenso a respeito do diagnóstico da obesidade, visando contemplar os tópicos onde a classificação falhava em cobrir

A obesidade é uma das condições mais importantes de saúde, afetando mais de 800 milhões de pessoas no mundo e contribuindo para diversas doenças metabólicas, cardiovasculares e musculoesqueléticas. O debate sobre a obesidade em si como uma doença ainda é controverso, com opiniões diferentes mesmo entre especialistas, sobretudo pela falta de caracterização do que de fato seria a “doença obesidade” e suas consequências além de ser um fator de risco para outras condições metabólicas. 

Ademais, até o momento a obesidade era basicamente definida através do índice de Massa Corporal (IMC) > 30 kg/m², não levando em conta outros parâmetros antropométricos como relação cintura quadril ou outros métodos capazes de aferir a gordura corporal com precisão inclusive maior que apenas o uso do IMC. Tal forma de diagnóstico, ainda que prática, sofre críticas por minimizar a importância tanto das demais medidas antropométricas como especialmente por não auxiliar em termos de identificação e categorização de indivíduos com repercussões clínicas advindas do excesso de adiposidade. 

Em resposta a essas limitações, o The Lancet Diabetes & Endocrinology promoveu uma comissão com especialistas de todo o mundo, unindo mais que 76 sociedades para o estudo da obesidade representados por 58 especialistas, que discutiram e revisaram evidências entre 2022 e 2024 para elaborar um novo consenso a respeito do diagnóstico da obesidade, visando contemplar os tópicos onde a classificação falhava em cobrir, sobretudo na caracterização das consequências diretas da obesidade ao indivíduo, indo além de apenas consequências metabólicas classicamente atribuídas à condição. 

O novo conceito adota uma abordagem baseada em evidências advindas de revisões de literatura, análise de grandes bancos de dados populacionais e discussões interdisciplinares, que permitiram que a comissão identificasse lacunas críticas no manejo da obesidade e criasse critérios diagnósticos baseados em impacto funcional, fisiopatologia e composição corporal. Vale destacar que houve concordância em 90 a 100% de todas as recomendações apresentadas no consenso. Neste artigo, revisamos a publicação e trazemos os principais detalhes. 

Leia mais: ICO 2024: Obesidade ao longo da vida

obesidade

Nova definição de obesidade 

O primeiro ponto de destaque é sobre a nova definição de obesidade, ampliando os critérios para além do simples IMC e empregando outras formas de avaliação da adiposidade, como a relação cintura-quadril e, quando disponíveis, métodos complementares de avaliação da composição corporal.  

A nova definição de obesidade é conceituada como uma condição caracterizada pelo excesso de adiposidade, com ou sem distribuição anormal do tecido adiposo, com causas multifatoriais e ainda não completamente compreendida”. 

Logo ao diagnóstico, é importante fazer a distinção entre obesidade pré clínica e clínica, que foi o principal foco do novo documento. Vejamos os critérios adotados para as situações. 

Obesidade pré-clínica e obesidade clínica 

Com o objetivo de categorizar e identificar indivíduos que já sofreram algum impacto pela obesidade, a segunda mudança mais significativa trazida pelos autores é a subdivisão da obesidade em obesidade pré-clínica e obesidade clínica, cada uma com critérios específicos que refletem diferentes estágios e riscos associados à condição.  

Conceitualmente, obesidade pré-clínica foi definida como um “estado de excesso de adiposidade com função preservada de órgãos e tecidos, com risco variável de desenvolvimento de obesidade clínica e outras condições como diabetes tipo 2 (DM2), doenças cardiovasculares, doenças psiquiátricas e outros tipos de câncer”. Basicamente, é uma condição fenotípica, onde há aumento da adiposidade, sem comprometimento de funcionalidades ou consequências. Vale chamar a atenção para não confundir esse estágio com sobrepeso e que todos os indivíduos com obesidade pré clínica devem ser avaliados para descartar obesidade clínica. 

Já obesidade clínica foi definida como uma “doença crônica e sistêmica, caracterizada por alterações funcionais em órgãos e tecidos ou no indivíduo como um todo em decorrência do excesso de adiposidade, podendo culminar em lesões graves de órgão alvo, tais como infarto agudo do miocárdio, AVC e insuficiência renal”. 

De forma pragmática, segue a definição, com seus critérios: 

Critérios diagnósticos para obesidade pré-clínica 

  • Presença de excesso de gordura corporal 

O IMC ≥ 30 kg/m²* (ou acima no limite estipulado para idade – no caso de obesidade infantil – sexo e etnia) e outro método adicional que confirme o excesso de adiposidade, como métodos antropométricos (ex: circunferência abdominal, razão cintura-altura, razão cintura-quadril) ou de avaliação direta (ex: densitometria de corpo inteiro ou bioimpedância). 

*Exceto se IMC > 40 kg/m², onde o excesso de adiposidade pode ser pragmaticamente definido ou se houver alteração em duas ou mais medidas antropométricas, independentemente do IMC. 

  1. Ausência de disfunção orgânica mensurável 
  2. Função física preservada 

Critérios diagnósticos para obesidade clínica 

Basicamente, a obesidade clínica requer um ou dois critérios principais: redução de funcionalidade orgânica/tecidual em decorrência da obesidade ou limitações significativas nas atividades diárias devido à obesidade: 

Confirmação da obesidade pelos métodos descritos acima e um ou ambos os critérios: 

  • Disfunção orgânica documentada (Evidências de comprometimento funcional ou estrutural em órgãos, identificadas por sinais, sintomas ou exames complementares, como): hipertrofia ventricular esquerda ou insuficiência cardíaca com fração de ejeção preservada, esteatose hepática com inflamação (NASH), apneia obstrutiva do sono moderada a grave (confirmada por polissonografia), alterações metabólicas significativas, como HbA1c ≥ 6,5% (DM) ou dislipidemia aterogênica. 
  • Limitações funcionais evidentes 

(Ex: Redução na capacidade de realizar atividades diárias devido à obesidade, queixas frequentes de dor articular severa ou dispneia ao esforço). 

De forma mais detalhada, o consenso aponta para 18 sistemas que devemos analisar para caracterizar a obesidade clínica. Seguem os itens listados: 

  1. Sistema Nervoso Central (SNC): Sinais de aumento da pressão intracraniana, como perda de visão e/ou cefaleias recorrentes. 
  2. Vias aéreas superiores: Apneias/hipopneias durante o sono devido ao aumento da resistência nas vias aéreas superiores. 
  3. Respiratório: Hipoventilação e/ou falta de ar e/ou sibilos devido à redução da complacência pulmonar e/ou diafragmática. 
  4. Cardiovascular (ventricular): Redução da função sistólica do ventrículo esquerdo – Insuficiência Cardíaca com Fração de Ejeção Reduzida (ICFER). 
  5. Cardiovascular (atrial): Fibrilação atrial crônica/recorrente. 
  6. Cardiovascular (pulmonar): Hipertensão arterial pulmonar. 
  7. Cardiovascular: Fadiga crônica, edema de membros inferiores devido à disfunção diastólica – Insuficiência Cardíaca com Fração de Ejeção Preservada (ICFEP). 
  8. Cardiovascular (trombose): Trombose venosa profunda (TVP) recorrente e/ou doença tromboembólica pulmonar. 
  9. Cardiovascular (arterial): Pressão arterial elevada. 
  10. Metabolismo: Conjunto de hiperglicemia, altos níveis de triglicerídeos e baixos níveis de colesterol HDL. 
  11. Fígado: Doença hepática gordurosa não alcoólica (DHGNA) com fibrose hepática. 
  12. Renal: Microalbuminúria com redução da taxa de filtração glomerular estimada (TFGe). 
  13. Urinário: Incontinência urinária recorrente/crônica. 
  14. Reprodutivo (feminino): Anovulação, oligomenorreia e síndrome dos ovários policísticos (SOP). 
  15. Reprodutivo (masculino): Hipogonadismo masculino. 
  16. Musculoesquelético: Dor crônica e severa nos joelhos ou quadris associada à rigidez articular e redução da amplitude de movimento. 
  17. Linfático: Linfedema nos membros inferiores causando dor crônica e/ou redução da amplitude de movimento. 
  18. Limitações das atividades diárias: Limitações significativas, ajustadas pela idade, na mobilidade e/ou em outras Atividades Básicas da Vida Diária (banho, vestir-se, uso do banheiro, continência e alimentação). 

Essa categorização tem como objetivo abordar a obesidade em diferentes estágios, reconhecendo que o excesso de gordura corporal, por si só, não é suficiente para predizer complicações e enfatizando problemas associados à obesidade que não necessariamente metabólicos. Enquanto a obesidade pré-clínica foca no risco potencial de progressão, a obesidade clínica enfatiza o impacto direto na função orgânica e nas limitações da vida diária. 

Estruturando a avaliação clínica 

Para melhor entendimento e “tradução” para a prática clínica, o consenso sugere uma abordagem estruturada para a definição e classificação da obesidade: 

Passo 1 (screening): IMC acima de valores de corte tradicionais para etnia/idade 

Passo 2: Confirmar excesso de adiposidade através de um dos métodos: medidas antropométricas (relação cintura-quadril, circunferência abdominal, etc) ou mensuração direta da massa de gordura (ex: DEXA ou bioimpedância). Se normal, obesidade excluída (Ex: excesso de massa magra, atletas). Se confirmado, prosseguir avaliação. 

Passo 3: Análise clínica através de história, exame físico e exames complementares – avaliar sinais e sintomas de limitações na vida diária ou de disfunção de órgãos. Se presentes, definimos como obesidade clínica; se ausente, pré-clínica. 

Nova definição traz implicações importantes para prática clínica 

A nova definição traz implicações importantes para a prática clínica. O foco na obesidade clínica oferece um diagnóstico mais preciso para priorizar intervenções mais agressivas, como farmacoterapia e cirurgia bariátrica.  

Por outro lado, ao se reconhecer a obesidade pré-clínica, podemos lançar mão de medidas preventivas para retardar ou impedir sua progressão, com ênfase em mudanças no estilo de vida e monitoramento regular. Estudos mostram que cerca de 25-30% das pessoas com obesidade pré-clínica evoluem para obesidade clínica em cinco anos, destacando a importância do rastreamento precoce. 

Até o momento, a indicação de tratamento farmacológico é realizada baseada no IMC > 30 kg/m² ou IMC > 27 kg/m² e comorbidades associadas. O painel não aprofunda exatamente no tema, mas sugere que na obesidade pré clínica, a maioria dos indivíduos poderia receber uma abordagem focada em mudança de estilo de vida e não farmacológica ou cirúrgica, salvo em situações especiais onde o tratamento possa trazer outros benefícios, como em indivíduos que serão submetidos a cirurgias, por exemplo, ou a critério clínico. 

Outro ponto importante é o fato da nova definição não se limitar à complicações metabólicas, mas abranger comprometimentos em diversos sistemas que possam estar relacionados à obesidade. 

Limitações do IMC e como superá-las 

Ao revisar as limitações do IMC, a comissão reforçou que, embora ele continue útil para triagem populacional, sua falta de especificidade pode levar a diagnósticos imprecisos. Pacientes com altos níveis de massa muscular podem ser erroneamente classificados como obesos, enquanto indivíduos com obesidade sarcopênica ou altos níveis de gordura visceral podem ser subdiagnosticados. Para superar essas limitações, a comissão recomenda o uso de medições adicionais, como a razão cintura-quadril e métodos complementares de avaliação da gordura corporal, como a densitometria de corpo inteiro (DEXA), sempre que possível. Essa abordagem oferece uma avaliação mais precisa da composição corporal e dos riscos associados. 

Dessa forma, o painel recomenda que o IMC seja utilizado de forma isolada apenas como um “surrogate” (ou seja, um “substituto”) para avaliação de saúde a nível populacional ou para screening, e não como uma ferramenta individual indicadora de saúde. 

Nova definição também busca ressaltar o impacto clínico do tratamento 

A nova definição também busca ressaltar o impacto clínico do tratamento além da perda de peso em si. Tradicionalmente usada como principal indicador, não deve ser mais o único critério. O foco deve ser a melhoria da função orgânica, qualidade de vida e redução de riscos a longo prazo. Essa mudança é fundamental para evitar o estigma associado à obesidade e promover cuidados mais centrados no paciente. 

Outros pontos relevantes 

Ainda que não seja o foco, o consenso também define como “remissão da obesidade clínica” não como a resolução da obesidade, mas sim como a resolução parcial ou completa das disfunções orgânicas relacionadas à obesidade.  

O consenso também aborda a definição em crianças e adolescentes, utilizando a definição de obesidade pré clínica com ajuste para os valores de corte de IMC e medidas antropométricas para idade e como obesidade clínica com base em comprometimento sistêmico, descrito como alterações em 13 itens, como Sistema Nervoso Central (SNC), Vias aéreas superiores (Apneias ou hipopneias durante o sono devido ao aumento da resistência nas vias aéreas superiores), respiratório, cardiovascular (pressão arterial elevada ajustada para idade, sexo e altura), metabólico (hiperglicemia, intolerância à glicose, dislipidemia (aumento de triglicerídeos, LDL elevado ou HDL reduzido), esteatose hepática, renal (microalbuminúria), Incontinência urinária recorrente ou crônica, reprodutivo (feminino) como síndrome dos Ovários Policísticos (SOP), musculoesquelético (alinhamento): Dor recorrente ou crônica, ou quedas frequentes devido a desalinhamento das pernas ou pés planos, musculoesquelético (tibial): Dor crônica ou mobilidade limitada associada à deformidade em vara da tíbia, musculoesquelético (femoral): Dor aguda ou crônica, quedas ou mobilidade limitada devido ao deslizamento da epífise femoral proximal ou limitações das atividades diárias. 

Ainda, há o estímulo ao uso de nomenclaturas como “condições associadas à obesidade” para doenças cuja fisiopatologia estejam intimamente relacionadas à condição (ex: DM2, esteatose hepática) e chamar de comorbidades apenas condições não relacionadas diretamente. 

Veja também: Tecido adiposo guarda memória epigenética mesmo após perda de peso

Perspectivas e realidade brasileira 

Em termos de saúde pública, a nova classificação pode acarretar importantes implicações para o planejamento e alocação de recursos. Dados epidemiológicos podem ser revisados para incorporar as novas definições e priorizar indivíduos com impacto clínico da obesidade. Além disso, a nova definição pode promover a equidade no manejo da obesidade, priorizando intervenções baseadas em impacto funcional em vez de medidas estéticas ou arbitrárias de peso.  

A redefinição proposta pela comissão representa um marco significativo na evolução do diagnóstico e manejo da obesidade. Ao abordar a complexidade da condição de maneira mais holística, ela estabelece as bases para intervenções mais eficazes, equitativas e baseadas em evidências.  

Contudo, sua implementação global exigirá esforços coordenados entre governos, instituições de saúde e a comunidade científica, com o objetivo de transformar a obesidade em uma prioridade na agenda de saúde pública. Sabemos que infelizmente, em nosso país, não dispomos nem mesmo de uma opção medicamentosa para tratamento da obesidade no SUS e as filas de cirurgia bariátrica são gigantescas. É possível que, através de uma classificação mais adequada onde conseguimos distinguir indivíduos de maior risco, possamos observar a priorização no manejo daqueles que mais necessitam. 

Para a nossa prática clínica, vale o exercício de começarmos a adotar os novos critérios de obesidade pré clínica e clínica e observar o impacto que tal abordagem pode trazer para nossos pacientes. 

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Referências bibliográficas

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