Publicado recentemente no European Heart Journal uma revisão estado da arte sobre a relação entre consumo de café e desfechos cardiovasculares (Coffee and cardiovascular disease). Será que essa bebida tão presente no cotidiano do brasileiro oferece benefícios cardiovasculares? Qual a plausibilidade biológica que justificaria um benefício para a saúde cardiovascular? Vamos trazer o resumo dos principais pontos dessa revisão.
Discussão
No café estão presentes, além da cafeína, diversos outros compostos bioativos como polifenóis, minerais, fibras solúveis e diterpenos. Sabe-se que a cafeína pode provocar aumento agudo da pressão arterial e estimular o sistema nervoso central, mas, em consumidores habituais, esse efeito costuma ser atenuado. Também se conhece que o café possa atuar sobre a diurese, a sensibilidade à insulina, o microbioma intestinal e estimular uma maior atividade física espontânea. O modo de preparo influencia a composição final, de forma que cafés não filtrados contêm diterpenos, substâncias capazes de elevar o LDL; o café filtrado não apresenta esse efeito.
Em relação a hipertensão arterial, o consumo de café eleva de forma transitória a pressão arterial em indivíduos que fazem uso não habitual, efeito não observado em consumidores crônicos. Uma meta-análise de ensaios controlados com mediana de 56 dias observou que o café foi associado a aumentos significativos, porém modestos da pressão arterial. Com uma dose mediana de cinco xícaras por dia, observou-se um aumento de 2,4 mmHg na pressão arterial sistólica e um aumento de 1,2 mmHg na pressão arterial diastólica. Em relação ao consumo crônico, estudos prospectivos de coorte sugerem um efeito protetor ou nulo em consumidores moderados. O consumo baixo/moderado (uma a duas xícaras por dia) não foi associado a um risco aumentado de hipertensão e o consumo moderado/elevado (três ou mais xícaras de café por dia) foi associado a um risco progressivamente menor de hipertensão.
Quanto à dislipidemia, o que parece ser um fator mais importante é o método de preparo. O café não filtrado contém dois diterpenos (cafestol e caueol), substâncias conhecidas por elevar o colesterol sérico. Resultados agrupados de seis ensaios randomizados mostraram que o alto consumo de café não filtrado (mediana de seis xícaras por dia) aumentou os níveis de colesterol LDL em 0,39 mmol/L em comparação com o café filtrado. Uma meta-análise de ensaios randomizados indicou que o café filtrado não aumentou os níveis de colesterol sérico em comparação com a ausência de consumo de café. Um trabalho de coorte do UK Biobank, mostrou que um consumo de café expresso (duas ou mais xícaras por dia vs nenhum consumo) foi significativamente associado a um LDL mais alto (0,11 mmol/L a mais em homens e 0,16 mmol/L em mulheres). Um grande estudo observacional na Noruega não encontrou um aumento na mortalidade com o consumo de café não filtrado em comparação com o não consumo. No entanto, análises secundárias sugeriam um aumento de mortalidade geral e cardiovascular associada ao consumo de café não filtrado em homens mais velhos, especialmente aqueles que bebiam nove ou mais xícaras por dia.
Quanto ao diabetes mellitus (DM), estudos de coorte em diferentes países (Europa, EUA, Ásia) mostraram que o consumo crônico está ligado a um menor risco de desenvolvimento de DM. Uma meta-análise de 30 estudos prospectivos mostrou que a ingestão de cerca de cinco xícaras/dia reduziu o risco em aproximadamente 30% e que a a relação dose-resposta é linear, de forma que, para cada xícara adicional por dia, o risco foi 6% menor. O efeito protetor foi observado independente da cafeína sugerindo que compostos não cafeínicos (como polifenóis e trigonelina) podem contribuir para o benefício. Após ajuste para potenciais fatores de confusão (como tabagismo ou dieta) não houve mudança na estimativa de efeito. O benefício é atenuado quando o café foi consumido com açúcar ou adoçantes artificiais.
Embora convencionalmente se esperasse que o risco de DAC aumentasse com o consumo de café, estudos observacionais prospectivos recentes não confirmaram esses achados. Uma meta-análise de 30 estudos de coorte prospectivos indicou que o consumo moderado de café esteve associado a um risco menor de DAC. Em uma coorte norueguesa, o risco de morte por DAC foi menor entre os participantes que consumiam café filtrado moderadamente (uma a quatro xícaras por dia). No entanto, o consumo de nove ou mais xícaras de café não filtrado foi significativamente associado a um risco de 30% maior de morte por DAC em homens e mulheres.
Apesar de existir um relativo consenso de que o café é pró-arritmogênico, as evidências em geral sugerem que o consumo moderado de café está associado a um risco reduzido de arritmias. Dois grandes estudos de coorte descreveram uma correlação estatisticamente inversa entre o uso crônico de café e as taquiarritmias.
O estudo
Uma análise mais recente do UK Biobank, envolvendo mais de 500.000 indivíduos, revelou um risco significativamente menor de taquiarritmias combinadas (incluindo extrassístoles atriais e ventriculares, taquicardia supraventricular, fibrilação atrial (FA) e taquicardia ventricular) entre aqueles que consumiam mais café cafeinado no início do estudo. Especificamente em relação a FA, estudos individuais e meta-análises apontam para nenhuma alteração no risco de FA. Há uma única exceção que indica um aumento no risco arrítmico. No ensaio randomizado cruzado Coffee and Real-time Atrial and Ventricular Ectopy (CRAVE), a randomização para o café cafeinado foi associada significativamente a maior frequência de ectopias ventriculares.
As evidências apontam para um padrão em “J” na relação ao consumo do café e insuficiência cardíaca. Entre consumidores moderados, especialmente em torno de quatro xícaras diárias, há um menor risco. Um estudo observacional inicial sugeriu um risco aumentado de insuficiência cardíaca com o consumo maior do que cinco ou mais xícaras de café por dia.
Considerações finais: café e o risco de doenças cardiovasculares
A avaliação do efeito do café na saúde cardiovascular é complexa pois a quantificação de “xícaras” de acordo com o tipo de grão, a forma de preparo, o horário, o uso de aditivos e a variação ao longo do tempo podem levar a um risco de confusão e viés de seleção. A maior parte das evidências são observacionais, além de existir muita dificuldade metodológica para randomização quanto ao consumo ou abstinência, limitando uma conclusão definitiva. O que podemos inferir é que os dados de literatura são favoráveis e sugerem que o consumo entre uma a quatro xícaras de café por dia oferecem proteção cardiovascular. Se por um lado, não é possível ainda termos uma “certeza” de benefício, na pior das hipóteses, para felicidade dos apreciadores de café, o consumo dentro de limites razoáveis é atualmente considerado seguro e pode integrar programas de estilo de vida saudável.
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