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Cardiologia31 outubro 2025

Inflamação e risco cardiovascular 

Relatório abordou o papel da inflamação crônica de baixo grau nas doenças cardiovasculares e risco cardiovascular
Por Juliana Avelar

Nos últimos anos, o papel da inflamação nas doenças cardiovasculares (DCV) tem recebido atenção crescente, levando a uma reavaliação dos paradigmas tradicionais relacionados à patogênese e aos desfechos clínicos dessas doenças. 

Nesse contexto, o ACC publicou recentemente um documento sobre o assunto, que inclui novos achados sobre o envolvimento da inflamação na aterosclerose. 

Hoje está bem estabelecido que a inflamação crônica, silenciosa e de baixo grau, juntamente com mediadores-chave como citocinas e proteínas de fase aguda, desempenha um papel central na formação, progressão e ruptura da placa aterosclerótica, além de contribuir para a trombogênese que leva à síndrome coronariana aguda. 

Além disso, vias inflamatórias moduladas por mecanismos imunorregulatórios promovem disfunção endotelial, infiltração de leucócitos no espaço subendotelial, formação de células espumosas e apoptose — todos processos que alimentam a aterogênese.  

Inflamação e risco cardiovascular 

Paciente em consulta com cardiologista. Imagem de peoplecreations/freepik

Avaliação e estratificação de risco 

Biomarcadores 

Na prática clínica, a inflamação vascular silenciosa é comumente avaliada por meio da dosagem sanguínea de hsCRP (PCR ultrassensível), que fornece informações prognósticas adicionais sobre risco cardiovascular comparáveis às fornecidas pela pressão arterial e pelo colesterol. 

De modo geral: 

  • hsCRP < 1 mg/L → risco cardiovascular baixo 
  • hsCRP 1 – 3 mg/L → risco médio 
  • hsCRP > 3 mg/L → risco elevado, quando interpretado em conjunto com outros fatores tradicionais. 

Valores > 10 mg/L podem indicar processo infeccioso transitório ou outra resposta de fase aguda, devendo ser retestados em 2 a 3 semanas, utilizando-se o menor valor obtido para estratificação.  

Em pacientes estáveis ambulatoriais, a estabilidade e variabilidade de longo prazo da hsCRP são semelhantes às do LDL colesterol e da pressão arterial. Além disso, o conteúdo informativo de longo prazo fornecido pela hsCRP é igual ou superior ao do LDL colesterol. 

Por exemplo, em um estudo prospectivo com quase 28 mil mulheres saudáveis, uma única dosagem aleatória de hsCRP previu melhor os eventos cardiovasculares nos 30 anos seguintes do que LDL colesterol ou lipoproteína(a). Dados semelhantes do estudo EPIC–Norfolk, com mais de 17 mil participantes acompanhados por 20 anos, confirmaram o valor preditivo independente e aditivo de LDL, hsCRP e lipoproteína(a). 

Por isso, a triagem universal de hsCRP, juntamente com LDL e lipoproteína(a), em indivíduos com suspeita de risco aterosclerótico, tem se tornado uma abordagem comum para avaliação e estratificação de risco vascular. A hsCRP deve ser medida em pacientes estáveis, fora de períodos de infecção aguda ou eventos clínicos agudos. 

Recomendações de consenso – Avaliação e biomarcadores 

  • Como os clínicos não tratam o que não medem, a triagem universal de hsCRP em prevenção primária e secundária representa uma oportunidade clínica importante e, portanto, é recomendada. 
  • Embora outros biomarcadores, como IL-6, fibrinogênio e relação neutrófilo/linfócito, também prevejam risco, sua avaliação rotineira adiciona pouco valor além da hsCRP. 

Biomarcadores de imagem 

Técnicas de imagem não invasivas para avaliar inflamação vascular local representam uma estratégia promissora para aprimorar a predição de risco e, potencialmente, guiar o manejo de pacientes com risco inflamatório residual. 

Essas técnicas (RC, RM, US, PET) permitem identificar placas ateroscleróticas inflamadas e inflamação perivascular, ambas fortemente associadas à progressão aterosclerótica e à ruptura de placas. Cada modalidade tem vantagens e limitações específicas, e seu uso ainda é predominantemente em pesquisa. 

Recentemente, foi introduzido um biomarcador promissor derivado da TC — o índice de atenuação da gordura perivascular (perivascular fat attenuation index) — capaz de identificar artérias coronárias inflamadas mesmo sem aterosclerose e placas vulneráveis propensas à ruptura, com base na fenotipagem da gordura perivascular. Este índice demonstrou predizer eventos coronarianos futuros de forma independente do escore de cálcio e de fatores de risco tradicionais. 

Resultados preliminares do ensaio EKSTROM sugerem que colchicina em baixa dose reduz modestamente o volume total de placa após 1 ano em pacientes com DAC estável — achado alinhado aos grandes ensaios que demonstram eficácia da colchicina em DCV aterosclerótica estabelecida. 

Recomendações de consenso: Biomarcadores de imagem 

Os biomarcadores de imagem para detecção de inflamação vascular representam uma ferramenta promissora em pesquisa, mas não devem ser utilizados rotineiramente na prática clínica neste momento. 

Triagem de hsCRP e inibição da inflamação na prevenção primária 

O Physician’s Health Study, publicado em 1997, foi o estudo epidemiológico pioneiro em prevenção primária a demonstrar, de forma inequívoca, que concentrações elevadas de hsCRP podem atuar como forte preditor de eventos ateroscleróticos futuros (ASCVD) em indivíduos aparentemente saudáveis, de forma independente dos fatores de risco convencionais. 

Uma meta-análise abrangente envolvendo mais de 160 mil indivíduos sem histórico de doença cardiovascular confirmou esses achados, demonstrando que um aumento de 1 desvio-padrão nos níveis de hsCRP está associado a um risco significativamente maior de doença coronariana e morte cardiovascular. Notavelmente, a magnitude da associação entre hsCRP elevada e ocorrência de eventos cardiovasculares foi comparável à da pressão arterial sistólica e superior às observadas para lipídios tradicionais (colesterol total, não-HDL ou LDL) e lipoproteína(a). 

A hsCRP elevada também prediz doença coronariana incidente em pessoas sem fatores de risco modificáveis tradicionais (SMuRFs), ampliando sua utilidade além das categorias clássicas de risco. 

Evidências terapêuticas iniciais 

As primeiras evidências de que a inflamação poderia se tornar um alvo terapêutico vieram dos ensaios clínicos com estatinas, que demonstraram que o uso dessas drogas reduz tanto LDL colesterol quanto hsCRP, sendo que a redução de ambos os parâmetros contribui para os benefícios clínicos observados. 

Uma análise pós hoc do AFCAPS/TexCAPS mostrou que a redução de eventos cardiovasculares maiores com lovastatina não se limitou aos indivíduos com LDL elevado; pacientes com LDL normal, mas hsCRP elevada também tiveram reduções semelhantes no risco relativo em cinco anos. 

O estudo JUPITER, um ensaio clínico randomizado e controlado por placebo, foi o primeiro a investigar o uso de rosuvastatina 20 mg em indivíduos com LDL < 130 mg/dL e hsCRP ≥ 2 mg/L. O estudo foi interrompido precocemente devido ao expressivo benefício clínico, com redução de 47% no desfecho primário. 

Análises subsequentes mostraram que a rosuvastatina também foi eficaz em participantes sem fatores de risco modificáveis tradicionais, mas que apresentavam risco inflamatório isolado — um grupo descrito como “SMuRF-less but inflamed”. 

Estudos recentes também indicam que o ácido bempedoico possui propriedades anti-inflamatórias, com redução de 20% a 30% dos níveis de hsCRP, magnitude semelhante à redução do LDL obtida com o tratamento. Embora tenha sido observado um benefício cardiovascular potencialmente maior em subgrupos de prevenção primária, ainda não se sabe se a redução de hsCRP isoladamente em indivíduos sem DCV estabelecida, tratados com bempedoico, se traduz em benefício clínico direto. 

De forma geral, a contribuição da inflamação de baixo grau para a patogênese da aterosclerose na prevenção primária está bem estabelecida. Apesar de já existir uma base de dados epidemiológica e clínica robusta, ainda não foram conduzidos estudos especificamente desenhados para avaliar a inibição de vias inflamatórias em indivíduos sem DCV estabelecida, embora haja evidências de eficácia da colchicina em subgrupos com escore de cálcio coronariano elevado e em pacientes com gota. 

Recomendações de consenso: Triagem de hsCRP e inibição da inflamação na prevenção primária 

  • A dosagem de hsCRP (> 3 mg/L) pode ser utilizada na prática clínica rotineira para identificar indivíduos em prevenção primária com risco inflamatório aumentado, desde que o paciente não esteja em condição aguda. 
  • Em indivíduos com sobrecarga inflamatória elevada, recomenda-se iniciar precocemente intervenções no estilo de vida, com o objetivo de reduzir o risco inflamatório. 
  • A constatação de níveis persistentemente elevados de hsCRP deve levar à consideração de início ou intensificação da terapia com estatinas, independentemente dos níveis de LDL colesterol. 

Triagem de hsCRP e abordagens anti-inflamatórias na prevenção secundária 

Assim como demonstrado para a prevenção primária, há ampla evidência contemporânea mostrando que, na prevenção secundária, a dosagem de hsCRP identifica de forma eficaz indivíduos com alto risco de eventos cardiovasculares recorrentes. 

Em análises envolvendo mais de 30 mil pacientes tratados com estatinas, participantes de grandes ensaios contemporâneos, a hsCRP mostrou-se um preditor mais forte de infarto do miocárdio recorrente, AVC e morte cardiovascular do que o LDL colesterol. 

Os riscos de eventos recorrentes foram particularmente altos em pacientes com hsCRP > 2 mg/L, mesmo quando o LDL estava < 70 mg/dL, revelando uma necessidade clínica não atendida de estratégias anti-inflamatórias na prática contemporânea. A associação mais robusta foi observada para morte cardiovascular, sugerindo que a inflamação não controlada está relacionada a eventos potencialmente fatais. 

A triagem ampla de praticamente todos os pacientes em prevenção secundária para identificar “risco inflamatório residual” representa uma oportunidade clínica relevante. Felizmente, a colchicina em baixa dose (0,5 mg/dia), um anti-inflamatório acessível, demonstrou eficácia em dois grandes ensaios clínicos randomizados (COLCOT e LoDoCo2) na redução de 25% dos eventos cardiovasculares recorrentes em pacientes com aterosclerose estável crônica. 

Por outro lado, no ensaio CLEAR-SYNERGY, que avaliou colchicina e espironolactona em um desenho fatorial 2×2 em pacientes com infarto agudo do miocárdio com supra de ST, a colchicina não foi eficaz quando iniciada no cenário agudo. 

Apesar disso, meta-análises atualizadas, incluindo o CLEAR-SYNERGY, mostram uma redução global de 25% no risco relativo de eventos cardiovasculares maiores com o uso de colchicina em prevenção secundária. 

Atualmente, a colchicina em baixa dose está aprovada pela FDA para reduzir risco de infarto, AVC, revascularização coronária e morte cardiovascular em adultos com doença aterosclerótica estabelecida ou múltiplos fatores de risco. 

Como a colchicina é metabolizada renal e hepaticamente, seu uso deve ser restrito a pacientes com função renal e hepática preservada e suspenso temporariamente se houver uso concomitante de medicamentos que alterem seu metabolismo, como claritromicina, cetoconazol, fluconazol ou ciclosporina. Apesar de evidências sólidas de eficácia e segurança, seu uso permanece pouco frequente globalmente. 

Recomendações de consenso: hsCRP e terapia anti-inflamatória na prevenção secundária 

  • Em pacientes com doença cardiovascular conhecida, tratados ou não com estatinas, a hsCRP é pelo menos tão poderosa quanto o LDL para predizer eventos vasculares recorrentes, destacando a importância do risco inflamatório residual. 
  • Em pacientes sob estatina, deve-se considerar intensificação da dose para alta intensidade se a hsCRP permanecer > 2 mg/L, independentemente do LDL. 
  • A colchicina em baixa dose reduz eventos cardiovasculares em pacientes com aterosclerose estável e é o primeiro agente anti-inflamatório aprovado para essa finalidade. 
  • A colchicina deve ser usada como adjuvante à terapia hipolipemiante; não mostrou eficácia quando iniciada em eventos isquêmicos agudos e deve ser evitada em doença hepática ou renal significativa. 

Vias inflamatórias e fatores comportamentais e de estilo de vida 

Evidências recentes de grandes coortes prospectivas mostram que padrões alimentares pró-inflamatórios estão associados a maior risco de DCV, enquanto dietas anti-inflamatórias, como a dieta mediterrânea suplementada com azeite extravirgem ou nozes, reduzem inflamação e eventos cardiovasculares maiores em pacientes de alto risco. 

A ingestão regular de peixes ricos em EPA e DHA está associada a redução consistente de mortalidade total e eventos cardiovasculares em múltiplos estudos prospectivos internacionais. 

Por outro lado, doses elevadas de suplementação de ômega-3 (> 1 g/dia) têm sido associadas a aumento do risco de fibrilação atrial, destacando a importância da dose adequada. 

Outros comportamentos também influenciam a inflamação: 

  • Atividade física regular reduz os níveis basais de PCR por múltiplos mecanismos, incluindo melhora da função endotelial e sensibilidade à insulina, redução da produção de citocinas pró-inflamatórias e aumento da produção de SPMs. 
  • Tabagismo é uma fonte importante de inflamação sistêmica, aumentando citocinas pró-inflamatórias e reduzindo a produção e eficácia de mediadores resolutivos. 

Recomendações de consenso: Vias inflamatórias e estilo de vida 

  • Priorizar padrões alimentares anti-inflamatórios, como dieta mediterrânea ou DASH, enfatizando frutas, legumes, grãos integrais, leguminosas, nozes e azeite de oliva. 
  • Aumentar o consumo de peixes ricos em ômega-3, com 2 a 3 refeições de peixe por semana, preferencialmente peixes gordos. 
  • Reduzir carnes vermelhas e processadas, carboidratos refinados e bebidas açucaradas. 
  • Praticar 150 minutos de atividade física moderada ou 75 minutos de atividade intensa por semana. 
  • Cessar tabagismo para reduzir inflamação crônica de baixo grau. 
  • Manter peso saudável, contribuindo para redução da inflamação sistêmica e do risco de DCV.

Autoria

Foto de Juliana Avelar

Juliana Avelar

Médica formada pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Cardiologista pelo Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia

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