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Cardiologia5 maio 2025

Quando a prevenção primária de DCV invade a secundária? 

Estudo revisou as condições clínicas em que o risco na prevenção primária é semelhante ao observado na prevenção secundária na DCV
Por Juliana Avelar

A prevenção primária em saúde cardiovascular refere-se aos esforços realizados para prevenir a primeira ocorrência de doença cardiovascular aterosclerótica (DCV), enquanto na prevenção secundária, o objetivo é prevenir a recorrência de eventos de  em pacientes com DCV estabelecida. 

A avaliação de risco cardiovascular na prevenção primária é geralmente realizada com calculadoras de risco, como a equação de coorte agrupada ACC/AHA (PCE), o Framingham Risk Score ou o modelo europeu SCORE-2 (no Brasil, o mais utilizado é o Escore de Risco Global). 

Além dos fatores de risco cardiovascular tradicionais, as diretrizes de colesterol da AHA/ACC introduziram os fatores que aumentam o risco, como complemento à PCE, para reconhecer que outros fatores podem influenciar o risco de um indivíduo e, assim, melhorar a avaliação de risco.  

Exemplos desses fatores incluem doenças inflamatórias crônicas, doença renal crônica (DRC), índice tornozelo-braquial (ITB) < 0,9 e lipoproteína(a) elevada. Mais recentemente, a AHA publicou a equação PREVENT (Predicting Risk of CVD EVENTS) como um modelo contemporâneo, específico por sexo e livre de raça, para prever risco de doença cardiovascular total (DCV), incluindo DCV e insuficiência cardíaca, em adultos de 30 a 79 anos. 

Em nível populacional, os pacientes em prevenção primária deveriam ser uma população de menor risco comparada à prevenção secundária. No entanto, ambas as categorias englobam um amplo espectro de risco individual. Por exemplo, certos indivíduos com escore de cálcio coronariano (CAC) elevado, geralmente considerados para prevenção primária, apresentam níveis de risco comparáveis aos daqueles com IAM prévio (ou seja, prevenção secundária). Da mesma forma, entre pacientes no grupo de prevenção secundária que gerenciam efetivamente seus fatores de risco, a probabilidade de eventos cardiovasculares recorrentes pode ser equivalente ou até menor do que em alguns indivíduos da prevenção primária. 

A revisão de hoje, publicada em 2024, destaca distinções importantes entre as populações de prevenção primária e secundária e descreve cenários nos quais a prevenção primária se aproxima da prevenção secundária. 

Risco de DCV na População de Prevenção Secundária 

Estudos estratificaram taxas de eventos de DCV entre pacientes de prevenção secundária com base nessas características de alto risco. No ODYSSEY OUTCOMES, a taxa de MACE por 1.000 pessoas-ano foi de 20,4 para pacientes de alto risco e 54,8 para muito alto risco. Nos de muito alto risco, aqueles com múltiplos eventos tiveram taxa de MACE de 80,1 vs. 40,2 para os com um evento mais fatores de risco.  

O ensaio FOURIER mostrou risco significativamente maior entre pacientes com IAM recente, doença coronariana multivascular residual ou múltiplos IAM prévios, com maior
redução absoluta de risco e menor número necessário para tratar com Evolocumabe. Esses estudos demonstram a variabilidade do risco entre pacientes de prevenção secundária 

Nesse contexto, foram desenvolvidos modelos de risco de 10 anos, como o escore SMART para quantificar o risco de eventos vasculares recorrentes nessa população. 

No estudo SMART, pacientes com diversas formas de doença vascular (DAC, doença cerebrovascular, DAP) tiveram um risco mediano de 10 anos de MACE de 17%, mas houve grande variabilidade na estimativa de risco, variando de < 10% em 18% dos pacientes a >30% em 22% dos pacientes. Comparados com adultos de menor risco (< 10%), aqueles com risco ≥30% eram mais velhos, com maior prevalência de doença polivascular e com mais fatores de risco modificáveis fora das metas recomendadas pelas diretrizes, incluindo pressão sistólica, LDL-c, tabagismo e inatividade física. Os autores observaram que, se todos os fatores de risco modificáveis fossem mantidos dentro das recomendações, metade dos pacientes teria risco de 10 anos inferior a 10%.  

Em 2022, o escore SMART foi atualizado para o algoritmo SMART2, que foi recalibrado e validado externamente para estimar o risco residual de 10 anos em adultos de 40 a 80 anos com DCVAS estabelecida. 

Mais recentemente, um estudo de Mok et al. desenvolveu uma ferramenta universal de predição de risco para avaliação de pacientes tanto de prevenção primária quanto secundária. Utilizando dados do estudo ARIC, o modelo incorporou fatores de risco tradicionais (idade, diabetes, tabagismo, hipertensão) e biomarcadores cardíacos (proteína C reativa de alta sensibilidade, troponina T de alta sensibilidade e NT-proBNP), resultando em excelente discriminação e calibração independentemente do status de DCV. Importante: o mesmo conjunto de preditores associou-se a eventos de DCV nas duas populações. Também é relevante que o risco observado em 5 anos no quintil mais alto de risco previsto entre os pacientes de prevenção primária foi maior que nos dois quintis mais baixos da prevenção secundária. Isso ressalta a sobreposição de risco entre indivíduos de prevenção primária com fatores de risco mal controlados e indivíduos de prevenção secundária com bom controle. 

Risco de DAC com base na estimativa de risco em 10 anos 

A calculadora de risco da ACC/AHA (Pooled Cohort Equations – PCE) continua sendo a ferramenta recomendada para indivíduos sem DAC conhecida, e também foi incorporada às diretrizes de hipertensão da ACC/AHA de 2017.  

Adultos com alto risco de DAC com base na PCE (risco em 10 anos > 20%) demonstraram taxas de eventos semelhantes às de alguns pacientes em prevenção secundária de menor risco. Na coorte do estudo MESA (Multiethnic Study of Atherosclerosis), adultos com risco de DAC ≥ 20% em 10 anos (média de 32,4%) apresentaram uma taxa de eventos de 22,8 por 1.000 pessoas-ano — semelhante às taxas observadas em pacientes em prevenção secundária (tipicamente >20 por 1.000 pessoas-ano). Comparados àqueles com risco < 20%, os pacientes com risco ≥20% eram mais velhos, tinham maior prevalência de hipertensão e diabetes e eram mais propensos a estarem em uso de terapia hipolipemiante. 

De forma semelhante, no estudo REGARDS (REasons for Geographic And Racial Differences in Stroke), adultos entre 45 e 79 anos, sem diabetes, que não faziam uso de estatinas (LDL-C entre 70–189 mg/dL), apresentaram uma taxa de eventos de 22,2 por 1.000 pessoas-ano quando o risco estimado pela PCE era ≥20% na presença de fatores de risco estabelecidos, como tabagismo, hipertensão, colesterol total ≥ 200 mg/dL ou HDL-C < 50 mg/dL para mulheres (<40 mg/dL para homens). 

Embora não seja possível fazer comparações diretas com taxas de incidência em populações de prevenção secundária, esses achados sugerem que um risco estimado de DAC ≥20% em 10 anos pode estar associado a uma taxa de eventos semelhante à observada em pacientes com DAC estabelecida de menor risco. 

Cálcio nas artérias coronárias (CAC) 

O escore de cálcio coronariano (CAC) é um marcador altamente específico de aterosclerose coronariana. Diversos estudos de coorte demonstraram que o CAC é uma excelente ferramenta diagnóstica para detectar aterosclerose subclínica e estratificar risco em pacientes assintomáticos em prevenção primária. 

As diretrizes atuais recomendam o uso do CAC em pacientes de risco intermediário para auxiliar na decisão sobre iniciar estatinas — especialmente se o escore for ≥100 unidades Agatston (AU) ou estiver acima do percentil 75 para idade e sexo (recomendação classe 1). 

Nos últimos 10 anos, diversos estudos tentaram identificar valores de CAC que se associem a um risco de eventos semelhante ao de pacientes em prevenção secundária. Em um estudo com dados do MESA, indivíduos com escore CAC ≥ 100 AU apresentaram taxa de eventos de 26,5 por 1.000 pessoas-ano, semelhante à de pacientes com DAC estabelecida que não faziam uso de estatinas. 

Uma análise posterior do MESA mostrou que um escore de CAC ≥ 1.000 AU corresponde a uma taxa anual de eventos cardiovasculares maiores 3,4 por 100 pessoas-ano — semelhante à observada em pacientes de alto risco com DAC estável em tratamento (3,3). Nessa análise, os adultos com CAC ≥ 1.000 AU eram mais velhos (idade média de 71 anos), mas apenas 30% estavam em uso de estatinas. Portanto, não se sabe como essas taxas comparariam com as de pacientes em prevenção secundária que recebem tratamento ideal. 

Outro estudo, com 4.949 adultos do registro CONFIRM, comparou a taxa de MACE entre indivíduos com CAC > 300 AU e pacientes com DAC estabelecida. As taxas de MACE foram semelhantes: ~20% nos dois grupos, traduzindo em 73,9 e 77,8 eventos por 1.000 pessoas-ano, respectivamente. 

Entre pacientes com diabetes, CAC entre 300–375 AU associou-se a risco equivalente ao da prevenção secundária. Estudo recente de Razavi et al. identificou que a presença de calcificação significativa da artéria coronária esquerda (≥ 25% do vaso ou escore específico ≥ 300) e diabetes foram associados a risco cardiovascular muito alto — com taxa de mortalidade cardiovascular 5 vezes maior — em pacientes de prevenção primária com CAC ≥ 1.000 AU. 

Esses dados sugerem que um escore de CAC ≥ 300 AU, especialmente em pacientes com diabetes, está associado a risco de MACE semelhante ao de pacientes em tratamento para DAC estabelecida. Além disso, CAC ≥ 1.000 AU pode representar uma população de prevenção primária com risco muito alto e taxa de eventos semelhante à de pacientes de prevenção secundária de muito alto risco. 

Entretanto, é importante lembrar que esses dados são observacionais e epidemiológicos. É provável que os pacientes com DAC estabelecida tenham recebido tratamento mais intensivo dos fatores de risco do que aqueles com CAC elevado. Assim, se estratégias semelhantes de tratamento forem aplicadas, a incidência de MACE pode ser diferente.  

Com as evidências crescentes de que pacientes de prevenção primária com escore de CAC muito alto apresentam risco semelhante ao de pacientes com DAC estabelecida, muitos especialistas têm defendido o uso de terapias não estatínicas (como inibidores de PCSK9) para esse grupo. O estudo VESALIUS-CV (Efeito do Evolocumabe em Eventos Cardiovasculares Maiores em Pacientes de Alto Risco Cardiovascular Sem Infarto do Miocárdio ou AVC Prévio; NCT03872401) é um ensaio randomizado em andamento que avaliará a eficácia dos inibidores de PCSK9 nessa população. 

Diabetes 

Entre os fatores de risco do PCE, o diabetes mellitus (DM) é frequentemente citado como o mais impactante depois da idade. Contudo, estudos mais recentes desafiam essa ideia. Uma meta-análise com 13 estudos e 45.108 participantes mostrou que indivíduos com DM, mas sem infarto prévio, tinham 43% menos chance de infartar em comparação com indivíduos sem DM, mas com infarto prévio. Outro grande estudo com 1.586.061 adultos entre 30 e 90 anos também mostrou risco muito menor de DAC em pacientes com DM sem DAC prévia, comparados a indivíduos com DAC sem DM. 

Um estudo sobre escore de CAC mostrou que indivíduos com DM e CAC zero apresentaram taxa de sobrevida semelhante à de indivíduos sem DM e CAC zero. 

Essas observações indicam que o DM isoladamente não é necessariamente um equivalente de risco cardiovascular. No entanto, quando coexistem com outros fatores ou marcadores de risco (como CAC elevado ou Lp(a) alto), os efeitos sobre o risco de DAC podem ser multiplicativos — tanto em prevenção primária quanto secundária. 

Doença Renal Crônica (DRC) 

Indivíduos com DRC apresentam maior risco de eventos de DAC aterosclerótica (ASCVD) e maiores taxas de mortalidade em comparação com a população geral. Diversos estudos demonstraram que a redução da taxa de filtração glomerular estimada (TFGe) e a proteinúria acima de 300 mg/dia estão independentemente associadas a um aumento do risco de eventos cardiovasculares, mesmo em populações de baixo risco. Embora a DRC já tenha sido classificada como equivalente ao risco de DAC, pesquisas recentes sugerem que o risco de infarto do miocárdio (IM) em pacientes com DRC, embora elevado, não é equivalente ao de indivíduos com histórico prévio de IAM. 

Hipercolesterolemia Primária Grave / Hipercolesterolemia Familiar 

A hipercolesterolemia familiar (HF) é um distúrbio monogênico comum que afeta cerca de 1 em cada 200 pessoas no mundo. 
Em uma análise de 6 coortes dos EUA, pacientes com fenótipo de HF (LDL-c ≥190 mg/dL) apresentaram risco aumentado para ASCVD em comparação com controles (LDL-c <130 mg/dL). As taxas de eventos de ASCVD em indivíduos com HF com mais de 60 anos são comparáveis às observadas em populações de prevenção secundária. 

O risco de ASCVD em pacientes com HF pode ser modificado por testes genéticos para variantes patogênicas conhecidas, como no receptor de LDL-c, APOB (apolipoproteína B) e PCSK9. Em um estudo, em comparação com pacientes com LDL-c ≤130 mg/dL e sem mutação de HF, aqueles com LDL-c ≥190 mg/dL e sem mutação de HF tiveram um risco seis vezes maior de DAC, enquanto aqueles com LDL-c ≥190 mg/dL e mutação de HF apresentaram um risco 22 vezes maior. Isso sugere que o teste genético pode ter um papel na avaliação de risco personalizada e direcionada em pacientes com HF, permitindo identificar um subconjunto com risco de ASCVD comparável ao de pacientes em prevenção secundária. 

A pontuação de cálcio coronariano (CAC) em pacientes com HF também pode ajudar a identificar indivíduos de maior risco. Em um estudo prospectivo com 206 adultos com HF heterozigótica, escores elevados de CAC estiveram associados a uma taxa de eventos cardiovasculares maiores semelhante à descrita em populações de prevenção secundária. Aqueles com escore CAC entre 1–100 ou >100 apresentaram 26,4 e 44,1 eventos por 1000 pessoas-ano, respectivamente, após mediana de 3,7 anos de acompanhamento. Vale destacar que essa coorte era relativamente jovem (idade média 45±14 anos) e a maioria utilizava estatinas. 

Lipoproteína(a)

Lp(a) é uma lipoproteína plasmática composta por uma partícula de LDL ligada de forma covalente à apolipoproteína(a). A Lp(a) elevada é considerada uma característica que aumenta o risco, segundo as diretrizes de colesterol do ACC/AHA de 2018. 

Atualmente, não há um valor limiar de Lp(a) que seja considerado equivalente ao risco de ASCVD em prevenção secundária. No entanto, na presença de outros fatores de risco, como diabetes mellitus (DM) ou escore CAC elevado, adultos com Lp(a) elevada podem ter risco de ASCVD próximo ao de populações em prevenção secundária. Em uma análise agrupada de 5 coortes dos EUA, pacientes com DM e Lp(a) nos percentis < 50, 50–< 75, 75–< 90 e ≥ 90 apresentaram 20,2, 26, 26,7 e 32,1 eventos de ASCVD por 1000 pessoas-ano, respectivamente. 

Além disso, uma análise dos estudos MESA e Dallas Heart mostrou que adultos com Lp(a) ≥50 mg/dL e escore CAC ≥100 apresentaram incidência acumulada de ASCVD > 20% em 10 anos, o que se aproxima da taxa de eventos observada em populações de prevenção secundária. 

Conclusão

As diretrizes atuais apoiam diferentes estratégias de redução de risco para prevenção primária e secundária, com base em observações anteriores que indicavam que um histórico de eventos de ASCVD está associado a maior risco de eventos futuros do que qualquer combinação de fatores de risco tradicionais em indivíduos sem histórico documentado de ASCVD. 

Entretanto, evidências substanciais dos últimos anos sugerem que a avaliação de risco é muito mais complexa, com sobreposição importante entre determinadas populações de prevenção primária e secundária. A diversidade de risco dentro de cada categoria indica que esse sistema binário pode estar obsoleto e simplificado em excesso, o que reforça a necessidade de uma abordagem mais sofisticada e individualizada para avaliação de risco. Futuras diretrizes devem considerar fortemente a transição do conceito de prevenção primária e secundária para um espectro contínuo de risco, para que as estratégias terapêuticas sejam guiadas — em vez de definidas — pela presença de ASCVD documentada.

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Referências bibliográficas

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